“I’m Not There”: um trilha sensacional para um filmaço

por Marcelo Costa

Um filme sensacional merece uma trilha sonora sensacional. Nem sempre funciona assim, mas tudo fica mais fácil se o objeto do filme é um dos artistas vivos mais geniais da música americana, no caso Bob Dylan. “I’m Not There”, longa de Todd Haynes que foi um dos destaques das mostras de São Paulo e do Rio de Janeiro deste ano, rendeu um CD duplo que segue a risca a estética do filme: apresenta várias personas de Bob Dylan através da voz de mais de duas dezenas de convidados. Mesmo juntando tanto gente – e seguindo três vias diferentes de trabalho – o resultado é excelente.

Lee Ranaldo, do Sonic Youth, montou um supergrupo para acompanhar os “sem banda”: Steve Shelley na bateria (Sonic Youth), Nels Cline (Wilco) numa guitarra, Tom Verlaine (Television) na outra, Tony Garnier (Bob Dylan Band) no baixo, Smokey Hormel (parceiro de Miho Hatori) também na guitarra, e John Medeski (do grupo Medeski, Martin and Wood) nos teclados. É essa turma descolada que faz a cama para Eddie Vedder soltar a garganta na matadora “All Along the Watchtower” (a versão de Jimi Hendrix é eterna); Stephen Malkmus chapar em “Ballad of a Thin Man” (um show à parte de Medeski) e soar mais básico em “Maggie’s Farm”; e Karen O (Yeah Yeah Yeahs) cantar – sim, ela canta – “Highway 61 Revisited” (que já tinha ganho uma versão sujona de PJ Harvey anos atrás).

Quem não está com a Million Dollar Bashers recebeu o apoio (não menos especial) do Calexico. É o caso de Jim James, vocalista do My Morning Jacket, que canta a bela “Goin’ To Acapulco”; do ex-Byrds Roger McGuinn na sensacional “One More Cup of Coffee” (ok, a versão do White Stripes é foda, foda, foda); de Willie Nelson na ótima “Señor (Tales of Yankee Power)”; de Charlotte Gainsbourg (que está no elenco do filme) que canta uma versão suave de “Just Like a Woman”; e do Iron & Wine, parceiros de palco do Calexico, numa versão de “Dark Eyes” cheia de sons e efeitos.

“I’m Not There” ainda conta com aqueles que se bancaram sozinhos (ou com suas próprias bandas) e, inevitavelmente, os melhores resultados saíram daqui. O grande momento do álbum é a versão cheia de charme de Cat Power (acompanhada por sua Memphis Rhythm Band) para a oportuna “Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again”. No mesmo nível de genialidade estão Jeff Tweedy (“Simple Twist of Fate”), Mark Lanegan (“The Man in the Long Black Coat”), The Hold Steady (“Can You Please Crawl Out Your Window?”) e, um pouco abaixo, o Yo La Tengo (“Fourth Time Around”). O garoto Marcus Carl Franklin, que interpreta no filme um Dylan menino sob o codinome de Woody, impressiona com “When the Ship Comes In” enquanto o único momento fora de sintonia é a versão chorosa de Antony & The Johnsons para “Knockin’ on Heaven’s Door” (até a do Guns é melhor).

A faixa título recebeu uma versão de guitarras graves bancada pelo Sonic Youth, mas brilha na versão densa do próprio Bob Dylan. “I’m Not There”, a canção, nunca havia sido lançada comercialmente e aparece agora retirada de uma gravação inédita de 1967 retirada de algum dos milhares de bootlegs que mapeiam a vida do compositor desde seus primeiros anos. Na letra, um Dylan tristonho canta o fim de um romance: “Ela chora dia e noite / Quando estou lá corre tudo bem / Mas tudo muda quando não estou lá / Não pertenço a ela / Não pertenço a ninguém”. Só está pequena pérola perdida no tempo já valeria o filme e mais algumas crônicas, mas a trilha sonora do filme de Todd Haynes vai além: exibe uma porção de Bob Dylan’s para se ouvir, ouvir e ouvir enquanto a noite escurece até virar madrugada para o dia clarear, nos abraçar e nos devolver ao mundo real. Mas não sonhe só com essas canções: vá atrás das versões originais, verdadeiros tesouros em forma de música.

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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