O coração de ouro de Neil Young

Texto por Marcelo Costa

“Estou com um aneurisma no cérebro”
“O que???”
“Isso mesmo. Estou com um aneurisma no cérebro. Vou para Nova York na próxima terça-feira, e eles vão fazer um negócio. É muito louco o que eles vão fazer. Eles vão abrir a minha cabeça e colocar umas molinhas lá, que são biodegradáveis, e isso vai fazer meu corpo produzir um tecido que vai acabar com o aneurisma.”
“O que???”

Quem relata o diálogo acima é Chad Cromwell, baterista e percussionista da Stray Gators, no DVD duplo “Heart of Gold”. A Stray Gators é uma das duas bandas que se alterna acompanhando Neil Young (o cara do aneurisma) desde sempre (a saber, a outra é a Crazy Horse). O bate papo entre os dois aconteceu no estúdio, quando a banda e Neil Young finalizavam o álbum “Prairie Wind”, de 2005. Aos 60 anos, o roqueiro canadense estava a dois anos sem compor material inédito, e sua fase de vacas magras acabou exatamente após a cirurgia para cuidar do aneurisma. Enquanto o músico se recuperava, um novo repertório florescia. “Foi como se ele se lembrasse de coisas e quisesse falar sobre elas”, relembra a mulher Pegi Young, que também acompanha Neil na estrada, como backing vocal.

A inspiração em torno do projeto “Prairie Wind” foi tanta que se fez necessário registrar um filme sobre o novo repertório. Neil optou pelo cineasta Jonathan Demme, que – entre outras coisas – fez o clássico “Stop Making Sense”, dos Talking Heads. A cidade escolhida foi Nashville, berço não só de “Prairie Wind”, mas também de clássicos como “Harvest” (1972), um dos vários momentos luminosos da carreira de Neil Young. O local do show também foi escolhido a dedo. O palco do Nashville’s Grand Ole Opry, no bonito Ryman Auditorium, já recebeu as maiores lendas da música country e folk. O resultado desta união de Neil Young com a Stray Gators e Jonathan Demme é um exercício de estilo e classe amparados por boa música. Ou, sendo mais direto, um filme que emociona.

Desde sempre, Neil Young divide sua inspiração musical em três caminhos. Um destes caminhos é barulhento, sônico, e quem sempre acompanha Neil nesta jornada de microfonia é a banda Crazy Horse, que já pariu álbuns clássicos como “Everybody Knows This Is Nowhere” (1969) e “Rust Never Sleeps” (1979) (entre tantos outros), e acaba de chegar às lojas com o tempestuoso “Live At Fillmore East”, registro de um show de 1970. O formato Neil Young & Crazy Horse registra longos improvisos calcados em solos de guitarra, mais de dez minutos de duração para cada canção.

A via do meio encontrada por Neil é se apoiar em alguma banda e recriar sua arte. Desta forma, Neil já se uniu ao grupo rockabilly Shocking Pink para lançar “Everybody’s Rockin'” (1983), ao grupo de jazz Bluetones para lançar “This Note’s For You” (1988) e ao Pearl Jam para lançar “Mirror Ball” (1995). Já o outro vértice da história de Neil Young é calmo, embalado por violões, harmônica e steel guitars. É quando o canadense dá voz a sua persona de retratista folk, e despeja sobre o público canções emocionantes sobre amores, desilusões e o luar em Harvest. É esta persona que ganha contornos poéticos no palco do Ryman Auditorium, apoiado por uma banda extremamente competente, que ainda conta com o apoio vocal (e de violões) da cantora Emmylou Harris. Em 20 canções, Neil Young apresenta (na ocasião, pela primeira vez) o repertório do álbum “Prairie Wind”, e resgata canções do álbum “Harvest”, como “Old Man”, “The Needle And The Damage Done” e “Heart of Gold”, além de faixas luminosas como “Harvest Moon” (em que Chad Cromwell toca… vassoura!) e “Comes a Time”.

A iluminação é simples e bela, com o dourado se sobressaindo. Neil Young começa o show de chapéu (que o acompanha durante toda a apresentação) e terno cinza. Durante a pouco mais de hora e meia de apresentação ao vivo, Neil irá se alternar entre o piano, a gaita, uma banjo dos anos 20, uma Gibson Lês Paul 1953 e um violão que ele comprou em Nashville, trinta anos atrás. Ele relembra: “Dos meus dois violões preferidos, um é do Willie Nelson. O outro é este aqui, que eu comprei trinta anos atrás, de Tuck Taylor. Era o violão de Hank (Willians)”, comenta, citando um dos nomes eternos da música country norte-americana. As histórias (como esta acima) que Neil conta entre uma música e outra são um capítulo à parte de “Heart of Gold”. Ele relembra momentos da infância, da família e de sua carreira, e diverte/entrete a audiência de forma sublime.

Em certo momento do show, ele retira a gaita do copo de água, e diz: “Esta canção que vou tocar… quando comecei a tocar, eu criava galinhas. Eu devia ter uns sete, oito anos. Talvez um pouco mais. E ganhei um ukelele de plástico de meu pai. E eu não sabia o que fazer com ele. Mas meu pai disse: ‘Talvez você precise disso’. E cantou uma canção para mim que eu nunca tinha ouvido antes. Ele ficou me olhando, com um sorriso engraçado no rosto. Fiquei olhando para ele. E então tive que ir cuidar das galinhas”. Essa é a deixa para “Far From Home”, uma das faixas luminosas de “Prairie Wind”. Um pouco depois, o músico lembraria o pai de outra forma. “Neste idade (em que estou), começamos a perder nossos pais. Meu pai se foi alguns meses atrás. Ele estava senil, e é muito difícil ver uma pessoa que você ama neste estado”, revela o cantor, lembrando que sua sobrinha, pequenina, veio confortar-lhe. “Ele está bem, ele está feliz”. “Prairie Wind”, a faixa título do disco, surge na seqüência, encantadora.

As histórias e as canções vão se acumulando, e tornando o show cada vez mais especial. “The Painter” destaca um lindo arranjo de steel guitar. A melodia vocal de “No Wonder” é de corar de tão emocional. “Falling Off The Face Of The Earth” é calminha, com Neil sentado no banquinho e a banda o acompanhando suavemente. Em “This Old Guitar”, Emmylou Harris o acompanha no vocal e violão. Para “I’m Child” o palco é esvaziado para Neil e seu violão. Seguem-se “Harvest Moon”, “Heart of Gold”, “Old Man” e “The Needle And The Damage Done”. Em “Comes a Time”, a banda se posiciona com oito violões no palco. Neil ainda brinca com a platéia: “Alguém aqui toca violão?”. O show termina com “Four Strong Winds”, de Ian Tyson, canção que custou muitas moedas a Neil, que não se cansava de programá-la na jukebox do boteco que freqüentava em Winnipeg, no Canadá.

O DVD, duplo, ainda vem recheado de extras, incluindo um diário dos ensaios, entrevistas com Neil e membros da banda, e curiosidades como um passeio pelos instrumentos do músico (com Grant Boatwright contando detalhes de cada um) e uma aparição solo de Neil Young no Johnny Cash Show, em 1971. Mas já valeria a sua atenção caso fosse só a apresentação no palco do Nashville’s Grand Ole Opry. Pois Neil Young é um dos artistas acima do bem e do mal, trafegando em um cenário que pouco valoriza palavras antigas como honestidade e emoção. Em um mundo balizado pelo marketing de um lado e pela política do outro, Neil Young simboliza a força dos sonhadores, dos inconformados e dos apaixonados pela música. O aneurisma que abre este texto já é passado. As seqüelas da dilatação anormal de uma artéria cerebral foram transformadas em música. Após ele, Neil já saiu em turnê com a Stray Gators para divulgar “Prairie Wind” e, na seqüência, abrir fogo contra George W. Bush no polêmico (e sensacional) “Living With War” (2006). Ele não pára. Seu coração de ouro continua batendo, incansável e criativo. Agradeça.

12 thoughts on “O coração de ouro de Neil Young

  1. Depois de ler essa resenha so tenho uma opção: Comprar esse DVD.
    Neil Young é uma daquelas figuras que nunca cansam com seu trabalho…

  2. Acompanho a carreira deste GENIO desde quando ele tocava no Bufalo Springfield.Sou fa de carteirinha e tenho a biografia editada em Portugal.Adoro o Neil e tudo que ele represernta para a musica nas ultimas 4 decadas. Obrigado Neil!!!!!

  3. Má, eu continuo aqui, viu? E essa resenha está matadora, perfeita para revigorar a semana. Vou passar o fds devorando o DVD. Beijos de cerveja preta.

  4. ótima resenha. fico pensando aqui, se alguns artistas da música pensassem e agissem como o mestre Neil, teríamos um mundo um pouco mais justo e, de quebra, uma maior qualidade musical. Viva Neil Young!

  5. Esse Dvd é fantástico mesmo, emocionante! A simplicidade e honestidade do cara impressionam, não parece uma estrela famosa, parece gente comum. E a banda que toca com ele tbm é ótima!
    Massa, tbm só tenho a agradecer ao velho Neil!
    abraço

  6. Estava hoje conversando com um garoto de 14 anos, e vi como é difícil fazer com que se interessem por gente como Neil Young, e outros artistas de fato relevantes, como Van Morrison, e outros do mesmo calibre. Tem que haver coreografias com mulheres sussurrantes e rebolativas, otários com cara e pose de mau, carrões em meio a cenários modernosos, ou seja, tudo, menos música, para que se interessem por algo. E nessa brincadeira vão se formar gerações que não terão a menor idéia do que seja música pop com algo a dizer. É triste. Um DVD sublime como esse, com o velho Neil emocionando até um coração de pedra, nada diz a esses garotos de hoje. E tome Nelly Furtado, Eminem, Madonna, etc. Que pena. E viva Neil Young!!

  7. Pearl Jam foi a primeira banda de rock que realmente me interessou. Isto foi a cerca de 7 ou 8 anos atrás. Curto demais a banda, mas, sem sombra de dúvidas, a melhor coisa que o PJ me fez foi apresentar Neil Young, por meio da música Fuckin´n Up, do álbum Live on two legs. Cara …depois que eu escutei esta música, as coisas nunca mais foram as mesmas. Comecei a pesquisar sobre sobre o velinho e hoje tenho quase tudo dele.
    Neil Young é Deus!
    Bela resenha MAC!
    Um abraço.

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