Cinema: “Estrela Solitária”, de Wim Wenders

por Marcelo Costa

“Estrela Solitária” (“Don’t Come Knocking”, 2005), novo filme de Wim Wenders, é o trabalho mais simples (e até singelo) do diretor em anos e anos. A história – óbvia – é muito bem recortada pelo roteiro simples e envolvente, que destaca um núcleo de personagens secundários tão fortes que, por vezes, roubam o brilho da ótima atuação principal de Sam Shepard, que assina o roteiro, baseado em um texto próprio. Esqueça a redução preguiçosa da crítica que diz que o filme é um ‘road movie’ (ele apenas absorve elementos do estilo) e o compara a “Paris-Texas”. Há semelhanças com o (já clássico) filme de 1984, mas isso ocorre muito mais pela locação no oeste norte-americano do que pela temática do vazio da alma, até presente nas duas películas, mas tratados de forma bastante diferente em cada um delas. Wim Wenders deixou a densidade de lado para filmar uma simples história de redenção.

O ponto de partida de “Estrela Solitária” acontece em um set de filmagem. Howard Spence (interpretado com excelência por Sam Shepard), ator do tipo arruaceiro, daqueles que dividem suas aparições em revistas de fofoca por tema (drogas, mulheres e polícia), é um famoso cowboy de filmes de faroeste cuja carreira está em franca decadência, assim como o próprio gênero western. Após uma noite de intensa farra em seu trailer, no set de filmagem, o ator desaparece, deixando para trás uma rotina de sexo, drogas, bebidas e sabemos lá mais o que. E um filme por acabar…

O abandono do set de filmagem divide o foco da narrativa em quatro ações. De um lado temos o ator, cavalgando com sua roupa de cowboy pelo deserto de Utah e se perguntando: “Por que eu ainda não morri? Por que?”. Em segundo plano, a companhia cinematográfica têm um filme para terminar, e precisa que Howard retorne ao set para cumprir o seu contrato. Mais abaixo, uma garota caminha de lá para cá carregando as cinzas de sua mãe em uma urna funerária. Por fim, um cantor mastiga sua vida cantando o folk e o blues em um velho boteco perdido no velho oeste. Essas quatro narrativas, muito bem desenvolvidas e editadas, conseguem dar brilho ao roteiro, que mesmo partindo de uma premissa batida (a busca pela redenção tardia) transformam “Estrela Solitária” em um filme tocante.

Muito do brilho do filme surge pela perfeita caracterização dos vários personagens secundários que giram ao redor de Howard Spence, dando ao espectador momentos de humor enquanto o ator cavalga do inferno ao purgatório. Eva Marie Saint, que interpreta a mãe do ator, conquista o público antes mesmo de entrar em cena, quando troca poucas palavras com ele ao celular. A candura do personagem, aliada a interpretação impecável de Eva Marie, entra e saí de cena transbordando inspiração. No entanto, o receio de que o filme perca ritmo com a saída de cena de Eva Marie é deixado de lado quando se percebe que o cuidado com os papéis coadjuvantes permanece, dando ritmo e força ao filme, seja na pele do advogado/ segurança/ detetive/ sabemos-lá-o-que interpretado por Tim Roth (que quase chega ao orgasmo ao esmiuçar banalidades do dia-a-dia), de uma ex-affair do ator (Jessica Lange, admirável), de um cantor de bar (Gabriel Mann) e da tal garota que passeia carregando sua mãe em uma urna funerária (a loirinha Sarah Polley).

A densidade textual e temática encontrada em obras como “Asas de Desejo”, “Paris-Texas” e “Tão Longe Tão Perto” não dá as caras em “Estrela Solitária”. Wim Wenders optou por filmar com extrema simplicidade, e mesmo as cenas nonsense bastante características ao cineasta surgem embaladas por uma aura de leve lirismo, que sugerem mais contemplação do que reflexão. As imagens são limpas, e o recurso “Day For Night” (o hoje popular, após Truffaut, “noite americana”), que permite que cenas noturnas sejam filmadas durante o dia, surge na cena inicial e em algumas outras passagens com o intuito de demonstrar que, por mais que tudo pareça estar escuro, a realidade é muito mais ensolarada do que Howard possa perceber.

Na verdade, mais do que remeter-se a “Paris-Texas”, este “Estrela Solitária” é irmão direto de “Flores Partidas“, de Jim Jarmusch. Porém, enquanto “Flores Partidas” exibe o vazio existencial de forma “apaixonadamente vazia”, “Estrela Solitária” apenas namora a temática, seguindo por um outro caminho (por vezes óbvio, mas até mais interessante): o de contar a história de um homem que, no fundo do poço, percebe que precisa dar um rumo à sua vida. O que acontece após essa decisão pela busca da redenção tardia move o filme.

Tanto “Flores Partidas” quanto “Estrela Solitária” tratam do vazio da alma e trazem bons momentos cômicos que disfarçam o gosto amargo da temática central. No entanto, Jarmusch demarcou seu microcosmo tendo como base um personagem cujo vazio não nos é tão próximo, um Don Juan dos novos tempos, gênio da computação, cuja vida apenas é um amontoado de horas se amontoando cada vez mais, e nem o dinheiro serve para diminuir o tédio. Perdido em sua própria vida, o personagem de Bill Murray é empurrado para o mundo real pelo vizinho. Ele é deslocado de seu tempo/espaço e jogado contra sua vontade ao mundo.

Já Wenders optou por um personagem bastante comum, que passa a vida fugindo de si mesmo – e de suas obrigações – até perceber que o tempo (implacável) não pára de girar os segundos do relógio. Dinheiro e fama aqui – como em “Flores Partidas” – também não têm função nenhuma, além de estender a distância entre realização profissional e felicidade plena. No caso de Howard, porém, é ele quem decide mudar seu rumo. Ele flutua de lá para cá amparado em personagens secundários, mas a escolha de se mover em busca deste algo é sua. De mãos dadas, Jarmusch e Wenders filmaram as mesmas fagulhas de humanismo, porém, de ângulos diferentes. A diferença expõe o olhar pessoal de cada um dos diretores sobre o vazio da alma: Jarmusch acredita na culpa enquanto Wenders crê no perdão. Pessoalmente, admiro mais o segundo.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne

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