Cinema: Capote, de Bennett Miller

por Marcelo Costa

Logo no começo de “Capote” (2005), o jornalista/escritor que dá nome ao filme está rodeado de amigos e bajuladores como quase sempre foi: sendo o centro das atenções. Truman está contando que um amigo lhe mandou um script de um livro cujo personagem principal é negro e mantinha um relacionamento homossexual com um judeu. Capote comenta com sarcasmo: “Ele só quer gerar polêmica”. Está dada a primeira carta do filme: Truman era uma personalidade polêmica. Apesar de ser branco, famoso e excelente escritor, ser gay e totalmente excêntrico nos anos 50 não era um modo fácil de passar os dias e noites.

Estreia cinematográfica do diretor Bennett Miller, “Capote” concorre a cinco Oscars, entre eles Melhor Filme, Direção e Melhor Ator, para a sensacional atuação de Philip Seymour Hoffman, mas não dá para dizer que é uma cinebiografia, como muitos insistem. Bennett Miller decidiu jogar luz apenas num período da vida de Truman, deixando de lado a infância, adolescência e o caminho para a fama do badalado escritor. O recorte, no entanto, é um dos pontos altos do filme, focando a história no período em que Capote escreveu seu livro mais importante: “À Sangue Frio”.

A história (real) é simples. Dois homens assassinam cruelmente quatro pessoas de uma família de fazendeiros numa pequena cidade do Kansas, no sul dos Estados Unidos, em 1959: o pai, a mãe, o filho e a filha. Presos pela polícia do Estado, os dois assassinos são condenados à pena de morte. O jornalista Truman Capote, já bastante famoso na época (é recorrente, no filme, piadinhas com celebridades que Truman conhecia), decide acompanhar o caso para uma reportagem de jornal. Conforme se envolve com os criminosos, principalmente Perry Smith, decide que um artigo de jornal seria pouco, e começa o que seria conhecido como o primeiro livro de jornalismo literário, gênero que combina a objetividade factual e os recursos da narrativa de ficção.

Alguns detalhes da produção surgem logo nos primeiros minutos da projeção: Philip Seymour Hoffman arrasa na encarnação de Truman Capote. Uma grande aula de atuação de um ator extremamente versátil, que consegue posar de enfermeiro tímido em “Magnólia” (1999), jornalista falastrão em “Almost Famous” (2000) e machão dono de negócios sujos em “Punch-Drunk Love” (2002). Lembre-se: Russel Crowe ganhou um Oscar pelo mesmo papel que ele faz em todos os seus filmes. Philip não, e sua carreira demonstra essa versatilidade. Vários dos momentos de grandiosidade de “Capote” se devem ao ator: o falar fino, embolado e caricato; os gestos afetados e involuntários; os tiques nervosos; sua crise de consciência, atestada por uma bela frase: “É como se Perry e eu tivéssemos crescido na mesma casa, só que eu saí pela porta da frente, e ele pela de trás”.

Outro detalhe perceptível assim que o filme começa é a opção da direção em equiparar a narrativa com o falar de seu personagem principal. Desta forma, o filme é lento e arrastado. Miller parece querer que o público esqueça da velocidade do tempo moderno, criando um “tempo Truman Capote”, mas para isso precisaria ocupar todos os sentidos, para que não houvesse dispersão na sala de cinema. No entanto, o diretor, que parece ser bastante influenciado por Stanley Kubrick, precisa de mais alguns filmes para aprender a usar uma trilha sonora a favor da tensão. O trecho final é embalado por um piano minimalista que remete diretamente ao angustiante tema de “De Olhos Bem Fechados” (1999). Em “Capote”, porém, o piano apenas sugere tensão, não chegando a fisgar o espectador e o conduzir numa linha fina pela história densa que o roteiro ousa desvendar. Não há elo de ligação, e com isso o filme acaba por cansar em alguns momentos.

No entanto, a opção por arrastar a narrativa é um detalhe que, por fim, não elimina a analise da interessante temática recortada da obra, que sugere a discussão dos limites de cada pessoa. Truman Capote foi fundo ao desenhar a alma de um assassino frio, e isso lhe custou sua própria alma, sugere o roteiro. Após lançar “À Sangue Frio”, Capote nunca mais lançou outra obra, morrendo 20 anos depois, em 1984, com complicações devido ao consumo excessivo de álcool.

O filme sugere que o peso dos cinco anos em que o escritor ficou envolvido com os assassinos (ambos condenados à pena de morte e enforcados em 1964 na presença de Capote) mudou completamente sua vida. Até que ponto um homem consegue cumprir seu trabalho sem se envolver com seus objetos de estudo? São famosas as histórias de fotógrafos de guerra que enlouquecem em campos de batalha ao registrar o lado escuro da vida humana. Ao tentar entender a alma de Perry Smith, Truman Capote acabou enxergando a sua própria alma em reflexo, um fragmento de seu lado escuro. O filme lança luz sobre este olhar de forma imperfeita, mas extremamente interessante e com detalhes que lhe conferem qualidades.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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