Cinema: “Flores Partidas”, de Jim Jarmusch

por Paula Dume

A lendária imagem do mito latino Don Juan compartilha a tela em “Flores Partidas” (“Broken Flowers”, 2005), de Jim Jarmusch, com Don Johnston (Bill Murray). Conquistador por natureza, Don Juan é um personagem mítico da história. Tem várias mulheres, mas não se prende a nenhuma. É inconstante com todas e constante só na sua inconstância. Os dois Dons possuem algo em comum: privilegiam o presente e se esquecem do passado e futuro. Assim, ações mal realizadas no passado e mal formuladas para o futuro podem abalar suas vidas. A de Don Johnston se abala no início do filme com a notícia de que tem um filho de dezenove anos, fruto de um caso do passado. E não é para tanto aqui que o “passado prega peças”.

Solteirão por opção, Don é abandonado pela última namorada, Sherry, sob a alegação de que era tratada como um caso ao invés de um relacionamento sério. A instabilidade sentimental dele se contrapõe não só ao de seu vizinho e melhor amigo Winston (Jeffrey Wright), mas também ao do tempo dos outros personagens da trama. Para Don, seu passado ficava isolado em dada época vivida e o futuro não era o amanhã, mas o agora, o sempre presente, fato esse que o protagonista não se prendia a nada nem muito menos a ninguém.

A carta rosa, assim como todos os indícios rosas que Don encontra pelo caminho, ao tentar localizar o paradeiro de seu filho, nada mais são que casualidades. Ele vive sozinho em um mundo que é só seu, por isso nunca se deixou envolver por completo. Não deixou que ultrapassassem a barreira entre o privado e o coletivo que ele preza e defende. Don pensa seduzir a todos, mas não se deixa seduzir pelos verdadeiros prazeres da vida. Ele não se leva a sério e acaba magoando as pessoas que pensa amar por uma questão de satisfação própria e não compartilhada.

O primeiro reencontro que tem é com Laura (Sharon Stone), sendo recebido ironicamente por Lolita, filha de sua ex-namorada. Dora, a segunda que reencontra, é agente imobiliária e tem uma vida pacata com seu marido e também sócio. A terceira é a veterinária Carmen que fica constrangida ao reencontrá-lo. Porém, Penny, a última ex visitada, será a chave para a reflexão do personagem. Ele é recepcionado por uma gangue que o encara de frente e isso o assusta.

Don parece infeliz no trabalho e nas realizações que teve. Computadores, que foram a fonte de seu sustento, não têm vez na sua casa. Ele assiste TV a maior parte do tempo e flerta com as pessoas como quem joga uma partida sinuosa de cartas marcadas. Ele age instintivamente somente sob esse aspecto. Os filmes reproduzem uma monotonia a qual ele se acostumou, mas não tomou consciência do quanto lhe faz mal. Sua vida parece um vórtex de mesmice e é justamente nesta reflexão que mora o segredo da película.

O diretor Jim Jarmusch escreveu o roteiro especialmente para Bill Murray, selando mais uma vez o trabalho da dupla, brilhante anteriormente no episódio “Delirium” em “Sobre Café e Cigarros” (2003). Mas Jarmusch vai além. O jogo de câmeras é intimista e a proximidade com que o foco das lentes capta a fisionomia dos atores impressiona o espectador e o transporta para dentro da trama, ou melhor, para os conflitos internos dos personagens. E como isso custa paciência e acuidade aos nossos olhos, pois em alguns momentos do filme, o silêncio é mais presente do que ausente. A lacuna imperfeita e, sobretudo, humana, que Jarmusch expõe, é, em certa parte, sanada pelo olhar mais atento aos conflitos não só daqueles que estão ali na grande tela, mas aqui, muito próximo de nós. Sim, de fato, são nossas fraquezas de cada dia que estão expostas.

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