Cinema: Match Point, Woody Allen

por Marcelo Costa

Não adianta ser muito bom em algo se você não tiver um pouquinho que seja de sorte. Partindo desta premissa, o diretor Woody Allen realizou o filme menos Woody Allen de sua carreira recente, e acertou em diversos quesitos: “Match Point” é o melhor filme do homem desde “Tiros na Broadway”, de 1994, batendo obras elogiadas como “Desconstruindo Harry”, “Poucas e Boas” e “Melinda & Melinda”. Allen recebeu quatro indicações ao Globo de Ouro pela obra: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro e melhor atriz coadjuvante, Scarlett Johansson. E segue imbatível em indicações ao Oscar de Melhor Roteiro: são 14 ao todo, incluindo este “Match Point”.

A rigor, quase tudo em “Match Point” é diferente do que seria usualmente em um filme de Woody Allen. Desta forma, sai a Nova York do dia-a-dia e entra a glamourosa Londres de belos teatros, museus e cartões postais. Sai o jazz antigo e entram árias de óperas, a maioria de Verdi, interpretadas por Enrico Caruso, famoso tenor do início do século XX. Sai a comédia de costumes e entra um drama de suspense. Saem os longos diálogos que se atropelam. O próprio Woody Allen sai da tela, deixando o brilho para a ótima (e nervosa) atuação de Jonathan Rhys-Meyers. E entra Scarlett Johansson transbordando sexualidade.

Após exibir os dois lados de uma mesma moeda em “Melinda & Melinda”, Allen centra foco na luta de classes e fisga apenas o olhar dos derrotados, aqueles que numa partida de tênis, quando a bola resvala na fita, veem a bolinha beijar seu próprio campo ao invés do campo do adversário. No caso de “Match Point”, o local do campo influenciou decididamente no jogo. Só mesmo nas Ilhas Britânicas para Allen investigar, com olhar de americano, a quase impenetrável casta de classes inglesa com tanta soberba, sarcasmo e seriedade.

Jonathan Rhys-Meyers é Chris Wilton, um tenista irlandês de origem pobre que abandonou uma proeminente carreira nas quadras e se vê em Londres ministrando aulas do esporte em um clube fechado. Não demora muito para que Chris conheça Tom Hewett (Matthew Goode em ótima atuação de ator coadjuvante), filho de uma família rica, que o introduz no circulo familiar, e numa espiral de sorte e acasos. Chloe (Emily Mortimer), irmã de Tom, se apaixona por Chris, que, no entanto, se apaixona por Nola (Scarlett Johansson), que ele descobre depois estar noiva de seu futuro cunhado. Amor e dinheiro em jogo.

O tema acima poderia ser desenvolvido como uma comédia, mas Allen, notadamente inspirado em Dostoiévski, o transforma em tragédia. A escolha do diretor soa acertada. “Match Point” é um filme frio, denso e tenso. Rhys-Meyers brilha e coloca profundidade em Chris Wilton, relembrando o personagem Elliot, em interpretação que rendeu um Oscar para Michael Caine, de “Hannah & Suas Irmãs”, que é quase consumido pelo desejo, mas vê tudo evaporar após a consumação do ato. O triângulo amoroso de “Crimes & Pecados” faz deste filme parente de “Match Point”, mas enquanto lá havia comédia intercalada com suspense, aqui Allen vai seduzindo o espectador sem dar a ele momentos cômicos até o momento final, que destaca a ironia de um mundo cuja justiça é cega e o destino um golpe de sorte. Sorrisos nervosos, clama Allen.

Um espectador desavisado talvez desconheça a mão de Allen na direção tamanho o exercício de estilo. Nada remete ao diretor que todos conhecemos. E esta é, sem dúvida, a grande virtude do filme, pois fãs do cineasta vão enxergar aqui e ali detalhes conhecidos (a classe de psicanalistas é citada apenas uma vez, e de maneira quase imperceptível) enquanto detratores deverão enxergar uma trama esperta conduzida com sutileza (Bergman é influência direta, reconhecem alguns), que supostamente não traz nenhuma relação com o universo Woody Allen, mas ganha contornos dramáticos na análise que o cineasta faz não só da sociedade inglesa, mas também de justiça, felicidade e da sorte. Em um filme comum de seu currículo, estes objetos de estudo surgem embalados em tiradas cômicas que disfarçam o gosto amargo do julgamento do cineasta. Aqui não: Allen é direto, preciso e desconfortavelmente genial.

Se quase tudo soa diferente em “Match Point”, e isso fez com que o filme sem tornasse um dos melhores de Woody Allen nos últimos dez anos, algumas coisas nunca mudam, mesmo que ele tenha feito o filme mais europeu de sua carreira: continua a fixação do diretor por filósofos (Sófocles é o escolhido da vez), romances proibidos e um falso final feliz. Woody Allen precisou deixar de ser Woody Allen para voltar a fazer cinema clássico. “Match Point” é trágico como história, mas genial como cinema.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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