Cinema: Os Sonhadores, Bernardo Bertolucci

por Marcelo Costa

Não é nada fácil descrever “Os Sonhadores” (“The Dreamers”, 2003). A maior dificuldade reside no fato do filme ter ligação – direta e indireta – com dezenas de clássicos da história do cinema, os quais 80% do público que acessa este site nunca viu. Inclusive eu. Por mais que se pesquise, por mais que se faça ligações, conjecturas e visitas a locadora, parece ficar faltando algo. A mente viaja em busca de explicações. Não é qualquer filme que faz isso com uma pessoa, e esse já é um dos méritos de Bertolucci: “Os Sonhadores” faz o espectador sonhar.

Existem dezenas de leituras possíveis para o novo filme do cineasta. Das mais racionais até as mais viajantes se faz necessário situar a trama que move a história: tudo acontece entre fevereiro e maio de 1968, em Paris, no cerne da revolução que colocou estudantes frente a frente com a polícia e entrou para a história mundial. É ali, naquele barril de pólvora, que dois rapazes e uma garota dividem paixão pelo cinema, desejo de mudar o mundo (cada qual do seu jeito), um espaço na mesma banheira e vinho, muito vinho.

A trama começa no exato momento que Henri Langlois é demitido da direção da Cinemateca francesa pelo escritor André Malraux, ministro da Cultura do presidente Charles De Gaulle. A demissão deixa revoltados estudantes e os maiores cineastas de todo mundo. Gente como Godard, Truffaut, Kurosawa, Fellini e até o brasileiro Glauber Rocha protesta contra a demissão. Uma manifestação em frente da Cinemateca é dispersa com bombas enquanto a polícia desce o cacete em estudantes, cineastas e escritores. Se havia um barril de pólvora preste a explodir, o fio deve ter sido aceso neste período, pontua Bertolucci. Os enfrentamentos se tornaram corriqueiros e logo maio entraria para a história.

O parágrafo anterior é totalmente verídico, mas permite reflexões. A visão cinematográfica de Bertolucci escancara a ideia de que o cinema foi o grande responsável pelas manifestações políticas que vieram a seguir, com estudantes e trabalhadores tomando as ruas a ponto de colocar a economia francesa em xeque. É algo a se analisar melhor. 1968 foi um ano complicado demais. Os Estados Unidos já estavam no Vietnã e a União Soviética havia invadido a Checoslováquia. Na América, Jim Morrison e Lou Reed falavam de forma direta de coisas bem mais complicadas do que Beatles, por exemplo, falavam no mesmo momento, apesar de “Sgt. Peppers”. Por mais que Eric Clapton ostentasse o epíteto de Deus da Guitarra, não era Clapton que estava invadindo os tímpanos dos soldados americanos no Vietnã, e sim Jimi Hendrix. Os pedaços do coração de Janis Joplin ainda batiam. O mundo pedia paz e os hippies planejavam trocar a loucura das cidades pelo sossego do campo. 1968 foi um ano complicado demais.

É nesse cenário turbulento que o estudante de intercâmbio norte-americano Matthew (Michael Pitt) conhece a francesa Isabelle (Eva Green). Eles já se conheciam de vista, das sessões de filmes de arte na Cinemateca. Isabelle está protestando contra a demissão de Langlois, acorrentada na porta da Cinemateca. O jovem fica impressionado com a garota, e ela aproveita a oportunidade e fisga o rapaz. Minutos depois é a vez de Theo (Louis Garrel) entrar em cena. Ele é irmão de Isabelle, também cinéfilo e também com pinta de revolucionário. O trio se torna amigo. Logo, Matthew deixa a pensão em que vive para ir passar alguns dias na casa dos irmãos. Aqui começa outro filme. O amor (ou o sexo, ou o tesão juvenil, ou do que você quiser chamar isso) cega os jovens para o mundo externo. Sozinhos em uma casa, o trio experimenta os prazeres da carne, com direito a (belas) cenas de sexo quase explicito, jogos de sedução e muito, mas muito charme. E bebidas. E incesto. E perversão. E rock. Melhor respirar fundo.

Bertolucci espalha espelhos pela casa. O espectador admira os jovens corpos de todos os ângulos possíveis. Enquanto lá fora, o mundo parecia que iria explodir, entre quatro paredes os garotos se divertiam brincando de adivinhar em qual cena clássica um homem é crucificado em uma cruz de sombras ou qual filme o homem do andar de cima dança tanto que enlouquece a garota do andar de baixo. As citações são muitas e vão desesperar jovens cinéfilos, que acham que conhecem tudo de cinema. Porém, as brincadeiras são um disfarce para a inocência de seus protagonistas, perdidos entre a falta de coragem de lutar (mimados que são, até a luta soa como um motivo para se tentar ser cool) e o mundo de possibilidades que começa a cair como gotas de chuva.

“Os Sonhadores” se divide entre o prazer e a política, entre o individuo e a sociedade, entre o barulho das ruas e o silêncio dos quartos, sobretudo entre a inocência juvenil e a passagem para a vida adulta. Revolução política se mistura e se confunde com revolução sexual. Mais do que qualquer coisa, “Os Sonhadores” é um retrato antigo de um tempo que se foi para nunca mais voltar. Bertolucci cultua a beleza da juventude (quem não cultua?) enquanto se permite soar nostálgico em um mundo que parece ter perdido o apreço por si próprio. É triste perceber que as guerras continuam enquanto o individual se sobressai ao social. Quem hoje em dia olha alguém nos olhos? Quantas revoluções são tramadas em mesas de bar e se perdem em meio a ressaca do dia seguinte? Quem irá ser o próximo líder revolucionário? E quanto estará custando a camiseta com o rosto dele em uma loja de grife, tempos depois?

Não é nada fácil descrever “Os Sonhadores”. Por mais que se escreva, por mais que se faça revisões, análises e passeios pela memória, parece que não basta. Retrato antigo de um período que passou, “Os Sonhadores” é um sonho quase perfeito de adolescentes que transporta o espectador para outra época, em um tempo distante, quase perdido. É a Paris de 1968 vista de dentro de um quarto – com as janelas fechadas e o som ligado – através dos olhos, pés, seios, coxas, membros e bocas de três jovens belos e inocentes que consomem mais vinho do que água. É um filme tremendamente estiloso, nostálgico e sensual. Uma frase de um personagem ecoa na cabeça: “Toda petição é um poema, todo poema é uma petição”. Isso era 1968. Em 2004, poderíamos dizer: “Toda petição é uma folha de cheque, toda folha de cheque é uma petição”. Mudou o mundo ou mudamos nós?

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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