Matérias
Antológicas
Já
faz um tempo que os editores do S&Y querem falar dos textos
de Sérgio Dávila. Ele escreve a melhor coluna
sobre cultura pop que temos notícia (junto com a Jukebox,
do Jardel Sebba, editor da VIP). A POP, POP, POP é
escrita de Nova York e tem casa na Folha Online, no UOL. O endereço
da coluna é - http://www.uol.com.br/sergiodavila/
- e todas as anteriores estão acessiveis. Valem a
pena.
Abaixo,
uma amostra.
Aquela cidadezinha
tem uma ilha no meio, conhece
por Sergio Dávila
Os
ataques de 11 de setembro abalaram as estruturas dos meus sentimentos
em relação a Nova York, em relação
a ser um estrangeiro aqui, em relação à
relação da cidade com o resto dos EUA. Algumas
coisas mudaram para sempre. Por exemplo, aquela "ajustadinha"
que eu dava para acreditar que NY não é de verdade
uma cidade americana nunca mais poderá ser usada.
Era
uma boa mentira para acreditar, dava uma aliviada na sensação
de ser tão colonizado pela exportação em
massa da cultura americana que quis até vir morar aqui,
na Capital Cultural dos Estados Unidos da América do
Norte. Naquela versão, eu ainda era superior a tudo isso,
e morava e trabalhava na Capital do Mundo, como uma pessoa civilizada,
independente e aberta a todo tipo de informação.
No
fim de semana anterior à terça-feira aquela, quando
tudo aconteceu, fui aos Hamptons, a praia dos milionários
locais. Uma vez lá, falei mal da água gelada,
da consistência da areia, da falta da mata atlântica.
Mas o que mais me incomodou foi mesmo a quantidade de bandeiras
americanas nas portas das casas, penduradas nas antenas dos
carros, nas portas dos restaurantes e das lojas. "Quando você
sai de Nova York é que percebe que está nos EUA",
foi a frase que eu não me lembro se falei ou se ouvi,
mas com a qual concordei 100%.
"Americano
é mesmo muito bobo, esse patriotismo é irritante,
coisa de gente que não tem nada de especial a não
ser o fato de ter nascido aqui", essa não fui eu que
falei, mas da qual também não discordei. Estava
tudo certo na minha cabeça: os nova-iorquinos são
mesmo superiores e diferentes do resto dos EUA, portanto não
precisam se apegar ao fato de ter o passaporte azul.
Aí
veio 12 de setembro, o dia seguinte, e a cidade acordou abalada,
triste, amedrontada. Sua auto-estima veio voltando aos poucos
mas com bastante força, e até o fim da semana
Nova York já estava tomada das cores vermelho, azul e
branco. Então, comecei a me sentir estrangeiro, mais
do que isso, do terceiro mundo, ou seja, mais fraco, mais pobre,
mais sozinho.
A
triste verdade é que o nova-iorquino é um americano
qualquer. Talvez a única generalização
que não me faça parecer um idiota superficial
é que os nova-iorquinos são americanos que moram
em apartamentos menores e pagam uma fortuna por isso. Assim
que aceitei essa frase como verdade, fiquei de mal deles. De
mal é exagero: desconfiado.
Aí,
dois meses depois, caiu o avião da American Airlines
bem em cima do Queens. Pior: cheio de dominicanos, terceiro-mundistas
como eu querendo ir passar as férias em casa, rodeados
de amigos de infância, como eu. Fui cobrir mais essa desgraça
(será a última do ano?), a terceira desde 11 de
setembro (não se esqueça do antraz).
Com
o fim do horário de verão aqui e o começo
no Brasil, estamos 3 horas atrás. Assim, o fechamento
do jornal acontece às 16h. Daqui até Belle Harbor,
região do balneário de Rockaway, espremido entre
a Baía de Jamaica e o Oceano Atlântico, onde o
avião caiu, vai uma hora e meia de metrô, só
de ida. Apurei correndo, escrevi voando e estava mandando os
textos quando pifou a &*%$@# da conexão da Road-Runner,
da Time-Warner, que domina uma cidade do tamanho de Nova York
(quem disse que não há monopólio aqui?).
No
desespero, copiei o texto em um disquete e saí correndo,
em direção à lojinha do indiano que fica
na esquina, onde é possível alugar um dos três
computadores que ele tem. Estavam ocupados por estudantes da
New York University, todos americanos, loiros, bem nascidos,
criados a muito sucrilho e bacon. Quando vi isso, sem dizer
nada virei as costas e ia sair correndo até a Kinko’s,
que fica a três quarteirões de distância.
Uma
das estudantes me chamou e perguntou por que estava com tanta
pressa. "Tenho de mandar minha reportagem, o jornal está
esperando para começar a rodar e meu computador pifou."
Ela imediatamente ofereceu o lugar. Sentei, nem agradeci ("$@&*-se",
pensei, estou com pressa). Abri o e-mail, coloquei o disquete
e descobri que tinha esquecido de salvar o texto (insira aqui
todos os palavrões que quiser).
Saí
correndo de volta. Em casa, tudo igual: nem conexão,
nem e-mail. Copiei o texto no disquete, saí correndo
de novo, sem fôlego, dessa vez jurando que volto a fazer
esporte no ano que vem. Assim que me viu de novo na lojinha,
a mesma estudante saiu da frente do computador (pelo qual ela
estava pagando por minuto) e disse: "Não deu certo? Corre,
sente aqui que eu ajudo".
Nisso,
os outros dois estudantes se levantam e oferecem ajuda. Uma
menina pega o celular da bolsa e diz: "Me dá o telefone
do seu chefe que eu ligo lá!". "Parem as máquinas!!
Sempre quis dizer esta frase!", grita o terceiro estudante,
já de pé, atrás de mim, na torcida. Desta
vez, o arquivo estava no disquete. Abri meu e-mail e mandei
duas vezes, para garantir. Quando cliquei o ícone "send"
pela última vez, suspirei aliviado.
Parece
inacreditável, mas todas as pessoas da loja gritaram
de alegria e vieram me abraçar. Era como se fosse final
de campeonato. A menina ficou emocionada. Outros trocaram cartões
e se apresentaram. Virou o assunto daquele fim de tarde naquela
mistura de banca, armarinho, internet café e xerox. Nova
York realmente mudou desde 11 de setembro. Está mais
americana, não há dúvida.
Mas
também mais solidária.
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