Matérias
Antológicas
Aulas
de jornalismo rock
por
Ana Maria Bahiana
Ficava
no segundo andar de um sobrado cor-de-rosa na esquina de Visconde
de Caravelas com Capitão Salomão. Das janelas
da redação, via-se o Corcovado e tudo parava no
final da tarde para um sorvete e outras guloseimas menos legais.
O chão era de tábuas corridas e rangia. O banheiro
tinha um pequeno nicho a São Jorge, Iemanjá, Buda
e Shiva. Num extremo do sobrado, ficava o santo dos santos:
o escritório dos donos, um inglês e um americano
muito festeiros.
Só
os chefes – Luís Carlos Maciel, editor, Lapi, diretor
gráfico – tinham acesso a ele. Fui lá uma vez:
assinaram minha carteira de trabalho estalando de nova, a primeira
anotação da minha vida.
No
outro extremo, ficava a redação. A primeira sala
era de Lapi. Parte do meu trabalho era manter Lapi feliz e sossegado,
o que nem sempre era fácil considerando a noção
vaga de "tempo", "prazo" e "pauta" que reinava na outra sala,
um cômodo de janelas enormes, eternamente fechadas.
Este
era o império de Ezequiel Neves, que às vezes
respondia por Zeca Jagger e era, na verdade, o coração,
a força motriz e o verdadeiro Shiva dançante de
todo o sobrado. Zeca tinha uma juba encaracolada, um perpétuo
bronzeado e uma lampadinha no pescoço. Várias
vezes ao dia eu era chamada aos berros de "garotiiiiiiiiinhaaaaaaaaaa'
ou "Aniiiiiinhaaaaaaa". Em geral, o que me aguardava era uma
aula prática de jornalismo rock.
A
crueldade que Zeca reservava aos grandes era comparável
apenas à ternura que ele guardava para os pequenos. Nenhuma
banda local era obscura demais, nenhum guitarrista principiante
demais para merecer sua mais devotada atenção.
Seus
acólitos nesse oficio eram Okky de Souza, com cachinhos
de querubim barroco; o repórter volante Drope, sempre
com um relato detalhado dos últimos acontecimentos; e
o eternamente on the road Joel Macedo. Se
Zeca era a pilha, Maciel era o córtex cerebral do sobrado,
pairando com uma calma zen sobre o festivo caos mal controlado
que flutuava sobre as tábuas rangentes. Nenhuma crise
– A polícia vai dar batida! A edição foi
recolhida pela censura! Acabou o contrato com Jan Wenner! –
era suficiente para abalar o Maciel.
Fora
isso, Maciel sorria, tentava discutir com Zeca (impossível)
e me ensinava o que eu pedia para aprender. Minhas tarefas consistiam
inicialmente em marcar as laudas de matéria para a gráfica,
recolher o material de ilustração, manter Lapi
feliz e responder às cartas dos leitores, o que era quase
uma psicanálise.
Como
eu sabia muito bem, os leitores se julgavam donos da revista,
sócios, conspiradores. E eram. Dois escreviam quase toda
semana: uns tais Jamari França e José Emílio
Rondeau. Eu reclamava com Maciel: esses caras estão monopolizando
as cartas!
Durou
um ano, exatamente: o ano de 1972. O último disco que
recebemos foi Acabou Chorare, dos Novos Baianos. Lembro
dos janelões finalmente abertos, um poente lindo de começo
de verão entrando por cima das copas das amendoeiras,
o disco rodando na vitrola do Zeca. Todo mundo ouvindo os Novos
Baianos dizerem que tudo ia ficar lindo, a gente sabendo que
a revista estava condenada e Zeca dizendo: "mas garotinhos,
vai ser um verão demais!".
Durou
um ano exato.
Foi
mais que o primeiro ano do resto da minha vida. Foi o primeiro
ano completamente feliz da minha vida.
Ana
Maria Bahiana era secretária de redação
da Rolling Stone
Noticias
da época
*UZÔMI
- Uma exibição do filme "The Endless Summer"
no Cine Bruni 70, em Ipanema, acabou em confusão,
com os "gorilões" descendo o cacete na multidão.
*ALOHA
- Na reportagem "Verão Underground 73", a previsão
era de uma estação cheia de "som, sexo,
surf, estrada e Coca-Cola."
*MESTRE
- O programa do Big Boy, que passava aos sábados
na Globo, era apontado como destaque da TV.
*CARTAS
- Um leitor pedia o endereço do Centro de Curtição
de Jimi Hendrix, "para que os ligados no crioulo transem
entre si".
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Texto
publicado no caderno Rio Fanzine, do jornal O Globo.
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