"The Boatman's Call", Nick Cave & The Bad Seeds
por André Pagnossim
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28/08/2005
Quando morou no Brasil, durante o período de 1989 a
1993, Nicholas Edward Cave entusiasmou-se com a tardia
descoberta de uma palavra da língua portuguesa, a
única no mundo, que definia um sentimento que
atormenta a raça humana há incontáveis anos. Tal
sentimento expressa uma indizível sensação de triste
lembrança por algo que está longe de nosso alcance.
Esta palavra é "saudade".
No disco que gravou naquela época em nosso país, The Good
Son, Cave tentou passar em suas canções tal sentimento.
O resultado foi o disco mais intimista de Cave até então, pois,
despido de suas "máscaras" (leia-se os personagens
e alter-egos de seus discos anteriores), o artista pôde cuspir
para fora todas suas angústias de forma mais calma e serena,
com um clima de esperança no ar. Enfim, como a saudade.
Após dar ao mundo em 1996 um disco banhado em sangue,
Murder Ballads, Nick Cave sofreu um baque. Sua musa e
amante à época, a também artista P.J. Harvey,
abandonou-o. Sufocado novamente com a saudade, aquela
nova definição para um sentimento que persegue a
humanidade há incontáveis eras, Cave sentou-se ao
piano para compôr aquele que seria, para muitos, a
obra-prima de sua carreira com os Bad Seeds: The
Boatman’s Call, de 1997, uma compilação de canções
tristes, muito tristes, sobre o sentimento da perda,
da solidão e... do amor. Cave já disse uma vez que
todas as suas canções são canções de amor, mesmo as mais
absurdamente violentas. E quem somos nós para
discordar?
The Boatman’s Call é nada mais nada menos que um
enorme manifesto de um homem atormentado com o mundo
que o cerca. Um homem que canta sobre uma amante que
se foi, sobre a maldade no coração das pessoas, sobre
o Deus que está sempre a seu lado, mesmo nos momentos
em que não 'O' reconheça. Um álbum negro com letras
impressas em vermelho. Melancolia e saudade. Saudade
na capa: o artista sozinho, olhando fixamente para o
lado, num triste preto-e-branco (cortesia de Anton
Corjbin, renomado fotógrafo e diretor de clipe que já
trabalhou com artistas como U2 e Depeche Mode).
Saudade no título: O Chamado do Barqueiro. O
Barqueiro, figura solitária, que leva as pessoas até
seus destinos, remando quase automaticamente seu
veículo por toda uma vida, por águas calmas e escuras.
O Barqueiro que nos chama para levar-nos para lugar
nenhum, lugar que temos esperança em encontrar aquilo
que procuramos, aquilo pelo qual temos este terrível
sentimento de lembrança por estar longe.
Saudade na
música: nunca em qualquer outro disco a voz de Cave
foi tão serena. Esqueça os berros de From Her to
Eternity, nada mais de uivos de Henry’s Dream.
Cantando em tom grave e quase sussurado, Nick Cave é
embalado por um Bad Seeds igualmente lírico em seus
instrumentos. Piano, baixo e violino marcando quase
todas as músicas. Uma guitarra que em quase nada
lembra o Blixa Bargeld de anos atrás, e uma bateria
tocada com vassoura quase silenciosa, transformando a
batida outrora pesada da caixa e prato de condução em
veludo. Vagarosamente, nossos ouvidos vão sendo
preenchidos por uma, duas, três, doze obras-primas da
música contemporânea, num mundo pop mtvístico tão
plástico que, ao ouvirmos tal disco, temos a alma
completamente lavada.
O Barqueiro do título já é citado na canção Lime Tree Arbour,
um arrepiante poema sobre o amor entre um homem e uma mulher.
Tema tão banal, não? Porém, como não cair de quatro diante de
versos como "Through every breath that I breath and every
place I go/There is a hand that protects me, and I do love her
so". Cave, com sua voz gravíssima e seu órgão Hammond,
acompanha os Bad Seeds nessa lírica jornada de um casal em comunhão
com a Natureza, e vice-versa.
People Ain’t No Good poderia muito bem ser classificada
em alguma lista das "músicas mais tristes de todos os tempos".
A revolta de Cave contra a maldade no mundo aqui é relativamente
branda, pois trata-se de uma revolta contraposta a um sentimento
de nostalgia (ou saudade). "The sun would stream on the
sheets/Awoken by the morning birds/We’d buy the sunday newspaper/And
never read a single word", canta Cave, logo antes de chorar
que as pessoas não são boas.
A relação entre a espiritualidade e o amor por uma mulher não
é novidade na obra de Cave, mas ela toma forma total em Brompton
Oratory, com as evocações da amada sendo comparada à vida
de Cristo e dos Santos. Cave, ao olhar para as estátuas de pedra
dos Apóstolos, comete um dos versos mais maravilhosos já escritos:
"And I wish that I was made of stone/So that I would not
have to see/A beauty impossible do describe/A beauty impossible
to believe". Termina a declaração de amor; amor não, dependência
de alma à amada, dizendo que nenhum Deus e nenhum Diabo poderiam
fazer o que tal mulher lhe fez: levá-lo a ajoelhar-se ao chão.
Deus e espiritualidade são temas recorrentes às canções de Cave
desde os velhos tempos do Birthday Party. Mas se nas canções
dessa banda seminal ao pós-punk, Cave era quase totalmente ligado
ao Velho Testamento, com suas pragas, catástrofes e matanças
desenfreadas, hoje ele prefere basear-se na serenidade do Novo
Testamento para escrever suas letras. There is a Kingdom,
quinta faixa do disco, poderia muito bem ser um hino religioso
de alguma igreja pentecostal. Esta canção é um voto de amor
de Cave a... Deus. Mas com um mar de diferença com a pieguice
geral das músicas "gospel" feitas hoje em dia, que
mais parecem sermões pobremente musicados que qualquer outra
coisa. There is a Kingdom é uma canção tão triste e bela
que sua introdução é uma referência quase explícita a Perfect
Day, de Lou Reed.
(Are You) The One That I’ve Been Waiting For? trata daquela
sensação visceral - que todos passamos várias vezes durante
a vida - de acabar de descobrir (ou pensar que descobriu, o
que é sempre mais provável) a pessoa certa. Acompanhado por
um arranjo devastador, Cave sussurra palavras igualmente devastadoras,
questionando no título da canção uma realidade que já é certa.
Tal letra traduz com exatidão uma declaração de Cave onde ele
dizia que, logo que começa um relacionamento, ele tem em mente
que isso não durará por muito tempo. Em certo momento da canção,
Cave compara o Amor aos astros no céu: "The stars will
explode in the sky/But they don’t, do they?/Stars have their
moment, and then they die". E conclui com uma reflexão
sobre o final de um relacionamento, que mesmo sendo extremamente
desgastante e deprimente, nos ensina algo: "Of sorrow entire
worlds have been build".
Where Do We Go Now But Nowhere? traz lembranças
passadas ao lado de uma mulher; lembranças essas pouco
agradáveis, porém, extremamente necessárias para se
levar adiante um relacionamento que termina com a
morte da amada. Através de versos muita vezes surreais
que contam episódios de tal relacionamento, Cave
termina o relato com as palavras "If I could relive
one day of my life/If I could relive just a single
one/You on the balcony, my future wife/O who could
have known, but no one?". E repete várias vezes o
mórbido refrão: "O wake up, my love, my lover, wake
up...".
West Country Girl fala de uma mulher, como diz o
título, vinda da região oeste do país, cuja beleza
destroça imediatamente o coração do narrador,
levando-o à obsessão. Uma canção de letra muito
descritiva, concebendo à mulher amada um "corpo divino
com suas quatorze estações", e termina com outro
verso fantástico de Cave: "Well, who could ask
much more than that?/A West Country Girl with a big
fat cat/That looks into her eyes of green/And meows,
"He loves you", then meows again".
Black Hair é um manifesto lírico a um grande amor que
foi embora de trem ("Today she took a train to the
west"). Cave descreve o físico e o psicológico da
amada de forma apaixonada e sempre relacionando-os com
seus cabelos negros: "And all her mystery dwelled
within her black hair/And her black hair framed a
happy heart-shaped face". Alusão explícita à cor dos
cabelos de Polly Jean Harvey. O instrumental da canção
é muito simples e belíssimo: apenas um órgão por Cave
e um acordeon por Warren Ellis.
Estilhaços de Murder Ballads são encontrados na décima
canção do álbum, Idiot Prayer. É a história de um
homem que está morrendo, e ele não sabe se encontrará
seu antigo amor, já falecido, no Céu ou no Inferno.
Muita ironia cerca a letra, como no verso "Is Heaven
just for victims, dear?/Where only those in pain go?"
ou então “If you’re in Heaven then you’ll forgive me
dear/’Cos that’s what they do up there/But if you’re
in Hell, then what can I say?/You probably deserved it
anyway”.
Far From Me é a que leva a autobiografia do disco às
últimas conseqüências, pois é uma canção cujo processo de escrita
acompanhou todas as etapas de seu relacionamento com a mulher
em questão. Cave escreveu seus primeiros versos justamente no
início do relacionamento, onde tudo era belo e florido. Conforme
o relacionamento foi se desgastando, os versos seguintes iam
tornando-se pessimistas e pungentes, até explodirem em melancolia
e até cinismo ("You were my brave-hearted lover/But at
the first taste of trouble went running back to mother").
Assim, como diz Cave em seu ensaio The Secret Life of the
Love Song (que disseca o processo de composição e motivo
de existência da canção de amor), Far From Me foi uma
canção que ganhou vida própria e acabou dominando seu próprio
autor, direcionando o rumo que sua vida tomava.
E por fim, a primeira canção do disco. Nick Hornby, autor de
Alta Fidelidade, numa genial crítica ao disco de Nick
Cave and The Bad Seeds, No More Shall We Part, comenta
que The Boatman’s Call já é, em seu primeiro verso, diferente
de tudo o que é produzido atualmente na música popular. Ele
fala sobre a canção Into My Arms, e do verso "I
don’t believe in an interventionist God". Hornby justifica
seu comentário dizendo que, na música contemporânea popular,
Deus é tratado superficialmente, em versos como "Fuck God"
ou "God, I love that chick!". Para a música de Nick
Cave, nada é tão simples assim, ainda mais nesses dias de Sandy
& Jr., com seu romantismo plástico e Charlie Brown Jr., com
sua "revolta" adolescente e imbecilizante. Ao abrir
The Boatman’s Call com esse verso, "I don’t believe
in an intenvertionist God/But I know darling that you do/But
if I did I would kneel down and ask Him/Not to intervene when
it came to you", nos é dada mais uma vez a prova definitiva
de que Nick Cave é um dos grandes letristas da música, podendo
facilmente ser posto ao lado de Bob Dylan, Leonard Cohen e tantos
outros que têm esse raríssimo poder de fazer o ouvinte refletir
sobre o fato de que um dos motivos da vida valer a pena é o
simples fato de existir música assim.
Links
Site Oficial Nick Cave
Leia também:
Discografia de Nick
Cave comentada, por Leonardo Vinhas
Doce Miséria - A suavização
de Nick Cave, por Nick Hornby
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