Matérias
antológicas
Radiohead, no
topo do mundo: piadas sobre celebridade e otimismo
por
Luís Henrique Pellanda
A
Melancolia sempre esteve clinicamente ligada à personalidade
artística. Doença ou estado de espírito,
ela pode revelar tanto o gênio quanto a perversidade.
Na história, na literatura, nas artes em geral, não
foram poucos os melancólicos patológicos, fictícios
ou não, que exibiram, com prazer e em público,
seu dom maior e mais particular: um senso de humor singularíssimo,
irreverente mas fechado para o entendimento médio.
Melhor exemplo disso é Hamlet (personagem de Shakespeare),
espécie de precursor da melancolia do Ocidente.
Radiohead.
Aí está uma banda que não ri. Ou raramente
ri. A acidez quase infantil de Thom Yorke, em contraste violento
com a afetação doce de sua voz, sugere aquele
mal-estar típico dos que parecem estar sofrendo de uma
azia constante, ali, bem no estômago da alma. O que não
impede ninguém de achar graça nele e no que ele
faz. No bom sentido. Porque Yorke tem declarado à imprensa,
de forma velada, a sinceridade de suas intenções
cômicas. Afinal, todo cronista do absurdo é, por
obrigação, um pouco comediante.
E
a piada da vez é fazer pouco caso da importância
que o mundo passou a dar às suas queixas. Yorke, hoje,
é um menino mimado. Objeto de culto incondicional, tornou-se
o juggernaut ao qual ele próprio se referia em OK
Computer, o tal "carro de Jagrená" da mídia,
alvo de devoção cega e sacrificial. Em outras
palavras: uma droga de vaca sagrada. É um lunático
genial e depressivo; um infeliz tão experiente e conhecedor
de sua desgraça que pressupõe-se que se use sempre
ouvi-lo e consultá-lo. Mas estejamos atentos: Hamlet
também fingiu ser louco, e essa sua demência tática
era o que tinha de mais original e divertido.
Divirtam-se,
portanto, e sem culpa: é tudo pose, é máscara
e teatro. Ironia marota, projeto de mau humor, tratado leve
de niilismo. Thom Yorke, grande artista pop, deve ter lido Voltaire
antes de compor as canções deste excelente Kid
A. Logo na primeira faixa, Everything In Its Right
Place, ele parafraseia o autor de Cândido ou O Otimismo.
No clássico de Voltaire há um pretenso sábio,
caolho e sifilítico, Pangloss, que passa a vida repetindo
a máxima do pensamento mágico e positivo: tudo
está o melhor possível neste que é o melhor
dos mundos possíveis. Na canção do Radiohead,
Yorke macaqueia os que acreditam na repetição
hipnótica de uma idéia como método para
transformá-la em realidade prática. Mil vezes
seguidas ouve-se o verso: "Tudo está em seu devido
lugar". Esta impressão de paródia é
ainda mais sensível na faixa 6 que, providencialmente,
chama-se Optimistic. E o refrão proclama a grande
mentira do conformismo moderno: "Se você faz o melhor
que pode, então o seu melhor possível já
é bom o bastante".
Agora
que está no topo do mundo, o Radiohead brinca com a própria
imagem. Lança um disco em que foge de quase tudo o que
o fez popular: não há guitarras sujas nem melodias
espaçosas; a voz de Yorke está camuflada, pequena,
escondida sob a produção linda e quase gelada
de Nigel Godrich, o mesmo de OK Computer. O disco todo,
aliás, é frio. E é surpreendente como lembra,
às vezes, Kraftwerk. Há pouco de humano (e, estranhamente,
muito de alemão) em Kid A. De longe, por controle
remoto. Nunca dá margem a crescendos emocionais. Em How
to Disappear Completely, Yorke canta: "Não estou
aqui. Isso não está acontecendo". E é
a mais pura verdade.
Em
todo o disco, não se pronuncia a palavra love.
Como se o amor fosse artigo proibido. Cândido, aquele
"otimista", já dizia: "Para cada beijo, vinte pontapés
por trás". Também não há sexo
nem ódio, não se fala em nada edificante nem desprezível.
E, paradoxalmente a essa ambiência desagradável
de morte dos sentidos/sentimentos, dentro da armadura blasé
que veste e protege Kid A, ainda há espaço
para referências inesperadas à cantigas de roda
infantis e bestas, recordações de cirandas lúdicas
e passadas.
Na
faixa-título, Yorke diz: "Ratos e crianças
me seguem para fora da cidade". É que ele se compara
ao vingativo flautista de Hamelim, personagem de Robert Browning,
poeta inglês do século XIX. O flautista do poema,
com a doçura de sua música, encanta primeiro os
ratos daquela cidade. Os bichos se atiram no rio e morrem. Depois,
ele enfeitiça as crianças do lugar, que o seguem
dançando até desaparecerem na floresta. O flautista
livra, assim, Hamelim de um mal: afoga na corredeira os seus
pavores e mágoas. Mas, levando embora seus filhos, rouba,
do povo de Hamelim, toda a inocência e alegria, a fé
na continuidade de cada vida. E, fora isso, o que resta? Voltar
ao primeiro parágrafo.
Faixa
a Faixa
Everything
In Its Right Place - REM. A sonoridade sem data de
Up. Envelhecimento artificial. Yorke segue Stipe. Como se sente?
"Acordei chupando um limão".
Kid
A - Kraftwerk. A voz robótica
é quase inaudível. Descaracterização
intencional.
National
Anthem - O groove lembra Airbag. Voz entubada. Uma
dúzia de músicos de sopro irrompe em sessão
de jazz inusitada.
How
to Disappear Completely - Balada do velho Radiohead. Suspeita
de quem a ouve: quando Yorke diz que desapareceu, acreditar
nele parece fácil. Um fantasma convincente afirmando
que não existe.
Treefingers
- Bowie e Eno fizeram parecido: as peças instrumentais
dos discos berlinenses. É a Alemanha, de novo. Ninguém
vai dar a mínima.
Optimistic-
Convencional e irônica. Parodia uma canção
infantil tradicional: "Um porquinho foi ao mercado, outro
veio do pântano".
In
Limbo - Um pouco amortecida, de propósito. Em um
mundo de fantasias de beleza, prazeres estéticos fáceis.
Idioteque
- Yorke canta com raiva pela primeira vez em meia hora.
Contradiz a obra: "Isto está acontecendo de verdade".
Última chance para dizer "presente".
Morning
Bell - Irrelevâncias da separação: "quem
vai ficar com a mobília?" Alguém quer
partir: "Onde você estacionou o carro?" O julgamento
sábio de Salomão: "Corte as crianças
ao meio". Triste, terrível.
Motion
Picture Soundtrack - Base de acordeão. O abre-e-fecha
das palhetas. De repente, um ataque de harpa. Parece Disney.
Acaba e você está feliz.
Matéria
publicada no jornal Gazeta do Povo, de Londrina, Paraná,
à época do lançamento de Kid A.
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