"Dize,
pois, Senhor nosso, a teus servos que estão na tua presença,
que busquem um homem que saiba tocar harpa; e quando o espírito
maligno da parte do Senhor vier sobre ti, ele tocara com a sua
mão, e te sentirás melhor."
I SAMUEL 16:16
É domingo de manhã e estou escrevendo uma carta
de amor. Do lado de fora da janela da cozinha, o céu
está radiante e planetas colidem. Minha cabeça
está quente e me sinto um pouco perigoso. Meu cérebro
está começando a se comportar como um motor V-8
com as velas de ignição cruzadas. As coisas não
são mais o que parecem ser. Meus telefones estão
assombrados e animais sibilam em minha direção
de lugares ocultos.
Na noite passada um enorme gato preto tentou saltar em mim perto
da piscina, e subitamente desapareceu. Dei outra volta e avistei
três homens em capotes verdes me observando de uma porta
distante. Ops, pensei, algo estranho está acontecendo
por aqui. Mergulhe fundo n'água e rasteje pelo fundo
próximo ao meio da piscina. Fique distante das bordas.
Não permita que te estrangulem por trás. Fique
alerta. O trabalho do Diabo nunca é completamente revelado
até depois da meia-noite.
Foi nesse momento que comecei a pensar a respeito da minha carta
de amor. As luzes no céu acima da piscina pareciam envoltas
em névoa, plantas estranhas se movendo em escuridão
espessa e completa. Era impossível enxergar de um extremo
a outro da piscina.
Tentei me manter imóvel e permitir que a água
se acalmasse. Por um momento pensei ter ouvido outra pessoa
entrando na piscina, mas não poderia ter certeza. Um
rompante de terror me fez ir ainda mais fundo na água
e assumir uma posição de auto-defesa. Existem
apenas uma ou duas coisas mais aterrorizantes no mundo do que
a súbita sensação de que você está
nu e sozinho e que algo grande e hostil está se aproximando
de você em água escura.
São momentos como esse que te fazem querer acreditar
em alucinações – porque se três homens grandes
vestindo capotes estivessem me aguardando de verdade nas sombras
atrás daquela porta e alguma outra coisa estivesse deslizando
na minha direção na escuridão, eu estaria
condenado.
Sozinho? Não, eu não estava sozinho. Eu com certeza
vi três homens e um enorme gato preto, e então
consegui distinguir a silhueta de outra pessoa se aproximando.
Ela estava mais fundo na água do que eu, mas podia com
certeza ver que era uma mulher.
Claro, pensei. Deve ser minha garota, chegando furtivamente
para me fazer uma bela surpresa na piscina. Sim, senhor, é
apenas aquela vadiazinha biruta. Ela é uma romântica
incorrigível e conhece bem esta piscina. Houve uma época
em que nadávamos aqui toda noite, brincando feito lontras.
Jesus Cristo!, pensei, que idiota paranóico eu fui. Devo
estar ficado louco. Uma torrente de afeto me atravessou enquanto
eu me posicionava e me movia rapidamente para abraçá-la.
Eu já conseguia sentir seu corpo nu em meus braços...
Sim, pensei, o amor a tudo conquista.
Mas não por muito tempo. Não - levei um minuto
ou dois de busca desesperada na água antes que eu entendesse
que, na verdade, estava completamente sozinho na piscina.
Ela não estava aqui, e nem aqueles escrotos estavam no
canto. E não havia gato nenhum. Eu fui um imbecil e um
ingênuo. Meu cérebro estava me pregando peças
e me senti tão fraco que mal consegui sair da piscina.
Foda-se, pensei, não consigo mais suportar este lugar.
Está destruindo minha vida com toda essa esquisitice.
Saia e não volte nunca mais. Tinha enganado meu afeto
e estilhaçado meu senso de romance. Essa experiência
horrível me valeria a indicação para Cabeça-Oca
Do Ano em qualquer anuário ginasial.
Estava amanhecendo e dirigi de volta pela estrada. Quando passei
pelo cemitério, joguei uma moeda de 25 cents por sobre
o muro, como sempre faço. Não havia cometas colidindo,
nenhum rastro na neve exceto o meu, e nenhum som em dez milhas
com exceção de Lyle Lovett cantando no rádio
e o uivo de uns poucos coiotes. Dirigi com os joelhos enquanto
enchia um cachimbo de vidro com haxixe.
Quando cheguei em casa carreguei minha .45 automática
e dei alguns tiros numa lata de cerveja no jardim, e então
comecei a rabiscar, febril, num caderno... Mas que diabos?,
pensei. Todo mundo escreve cartas de amor em um Domingo de manhã.
É uma maneira de louvor autêntica, uma arte extremamente
elevada. E em alguns dias eu sou realmente bom nisso.
Hoje, senti, era definitivamente um desses dias. Pode apostar.
Faça isso agora. O telefone tocou e eu ergui o gancho,
mas não havia ninguém na linha. Me curvei em direção
à lareira resmungando, e então ele tocou de novo.
Atendi, mas novamente não havia ninguém na linha.
Deus!, pensei. Alguém está fodendo comigo... eu
estava precisando de música. Precisava de ritmo. Estava
determinado a me acalmar, então coloquei para tocar
Spirit In The Sky, de Norman Greenbaum.
Toquei isso de novo e de novo nas três ou quatro horas
seguintes enquanto finalizava minha carta. Meu coração
estava frenético e a música estava fazendo os
pavões gritarem. Era domingo, e eu estava louvando a
meu modo. Ninguém precisa pirar no Dia Do Senhor.
Minha avó nunca pareceu louca quando a visitávamos
aos Domingos. Ela sempre tinha biscoitos e chá, e estava
sempre com um sorriso no rosto. Isso era no lado oeste de Louisville,
próximo das represas do rio Ohio. Eu me lembro de uma
estradinha de concreto e de um grande carro cinza na garagem.
A estradinha era formada por duas linhas de cimento com um monte
de grama crescendo ao meio. Passava entre ameaçadores
arbustos de rosas selvagens e conduzia àquilo que parecia
ser uma barracão abandonado. E era. Abandonado. Ninguém
caminhava por aquele jardim, e ninguém dirigia aquele
carrão cinza. Ele nunca se moveu. Não haviam rastros
na grama.
Pelo que me lembro, era um sedã LaSalle, com uma aparência
esguia e bruta, um poderoso motor de oito cilindros com uma
câmbio saindo do chão, talvez um modelo 1939. Nunca
demos partida nele, porque a bateria estava morta e a gasolina
era escassa. Havia uma guerra em progresso. Você tinha
que ter cupons especiais para comprar cinco galões de
gasolina, e os cupons eram severamente racionados. As pessoas
os cobiçavam e os escondiam, mas ninguém reclamava
porque estávamos em guerra com os nazistas e nossos tanques
precisavam de toda a gasolina para quando alcançassem
as praias da Normandia. Olhando para trás, vejo claramente
que a razão de dirigirmos até o lado oeste de
Louisville para vistar minha avó no Dia Do Senhor era
para aproveitar seus cupons de gasolina para o LaSalle. Ela
era um senhora já velha e não precisava de gasolina
nenhuma. Mas o carro continuava registrado e ela continuava
recebendo seus cupons todo mês. Por isso íamos
até sua casa todo Domingo.
Grande coisa – eu faria o mesmo se minha mãe tivesse
gasolina e eu não. Todos faríamos. Essa é
a Lei de Oferta e Demanda – e esse é, afinal de contas,
o ano insano e final do século Americano e as pessoas
estão ficando nervosas. Saqueadores estão saindo
do armário, murmurando sombriamente a respeito do Bug
Do Milênio e comprando carne enlatada. Figos secos estão
em voga, juntamente com arroz e presunto enlatado. Eu, pessoalmente,
estou estocando balas. Munição sempre vai ser
valiosa, especialmente quando as luzes se apagam e a comida
dos seus vizinhos começa a acabar. É aí
que você vai descobrir quem são seus amigos. Até
mesmo familiares próximos se voltarão contra você.
Após o ano 2000, as únicas pessoas que será
seguro ter como amigas serão pessoas mortas.
Eu costumava respeitar William Burroughs por ele ter sido o
primeiro cara branco a ser preso por porte de maconha na minha
época. William era o Cara. Ele foi vítima de uma
batida policial ilegal em sua residência na Wagner Street
509, um subúrbio barato do outro lado do rio em New Orleans,
onde tinha se estabelecido para treinar um pouco sua mira e
fumar marijuana.
William não era de frescura. Era sério a respeito
de tudo. Quando o Real Deal caiu por terra, William estava LÁ,
esperando com uma arma. Click! BOOM. Um passo para trás.
EU sou a lei. Ele foi meu herói mesmo muito antes de
eu ouvir falar dele.
Mas ele não foi o primeiro cara branco a ser preso por
porte de maconha na minha época. Não. Foi Robert
Mitchum, o ator, que foi preso três meses antes em Malibu
na porta da frente de sua casa de praia por posse de maconha
e suspeita de molestar uma adolescente em 31 de Agosto de 1948.
Eu me lembro das fotos: Mitchum estava vestindo uma camiseta
e rosnando para os tiras com o oceano estourando ao fundo e
as palmeiras balançando ao vento.
Sim, senhor, esse é que era meu garoto. No meio
de Mitchum e Burroughs e James Dean e Jack Kerouac, me vi iniciado
pra valer antes dos vinte anos de idade, e não havia
retorno. Comprou o bilhete, cumpra o pescurso.
O que nos leva a Thunder Road, camaradinha. Esse foi um daqueles
filmes que me fisgou quando eu era jovem demais para resistir.
Me convenceu de que a única maneira de dirigir era a
toda velocidade, com um carro cheio de uísque, e tenho
dirigido deste modo desde então, para o bem ou para o
mal.
A garota nas fotos com Mitchum parecia ter uns quinze anos,
e também estava vestindo uma camiseta ordinária,
com um pequeno e elegante mamilo despontando. Os tiras tentavam
cobrir o peito dela com uma capa de chuva enquanto irrompiam
porta adentro. Mitchum também foi indiciado por sodomia
e contribuição à corrupção
de menores.
Eu andava tendo meus próprios problemas com a lei por
aqueles anos. Na quinta série, fui oficialmente detido
pelo FBI por derrubar uma caixa dos Correios na frente de um
ônibus. Logo em seguida, me tornei um detento habitual
em várias prisões pelo sul, sob acusações
de embriaguez, furto e agressão. As pessoas me chamavam
de criminoso, e, em cerca de metade das vezes, estavam certas.
Eu era um delinqüente juvenil irremediável, e tinha
um monte de amigos.
Nós roubávamos carros e bebíamos gim e
fazíamos um bocado de pegas pela noite dirigindo para
lugares como Nashville e Atlanta e Chicago. Precisávamos
de música nessas noites, e normalmente o rádio
resolvia isso – estações de rádio como
a WWL de New Orleans, e a WLAC de Nashville.
Foi aí que eu me perdi – escutando a WLAC e dirigindo
noite afora pelo Tennessee em um carro roubado que não
seria notado por três dias. Foi assim que fui apresentado
ao Howlin' Wolf. Nós não o conhecíamos,
mas gostávamos dele e sabíamos do que ele estava
falando. I Smell A Rat é um monumento de puro
rock'n'roll ao axioma que diz: "Não há nada
como paranóia". Wolf podia botar pra foder, mas
tinha um lado melancólico. Ele podia despedaçar
seu coração como o mais triste honky-tonk. Se
a história faz o julgamento de um homem por meio de seus
heróis, como dizem, então que fique registrado
que Howlin' Wolf é um dos meus heróis. Ele era
um monstro.
Música sempre foi uma questão de Combustível
para mim. Pessoas sentimentais chamam isso de Inspiração,
mas o que elas realmente querem dizer é Combustível.
Eu sempre precisei de Combustível. Sou um grande consumidor.
Em algumas noites, eu ainda acredito que um carro com a agulha
do combustível no 'vazio' pode rodar cinqüenta milhas
a mais se tiver a música certa tocando alto no rádio.
Um Cadillac V-8 vai andar dez ou quinze milhas a mais se você
lhe servir uma dose completa de "Carmelita". Isso
já foi comprovado diversas vezes. Essa é razão
pela qual você vê tantos Cadillacs parados em frente
às paradas de caminhões da Rota 66 à meia-noite.
São compulsivos sexuais por velocidade, abastecendo mais
do que mera gasolina. Você observa um desses lugares por
algum tempo e percebe uma espécie de padrão: um
grande carro pára rente à porta e uma garota de
aparência selvagem desce, nua exceto por um casaco de
pele ou uma parca de esquiador, entra no lugar com um punhado
de dinheiro, louca para descolar algumas fitas com música
espanta-tédio para dirigir.
Isso acontece de novo, e de novo, e cedo ou tarde você
é fisgado, e fica viciado. Toda vez que ouço White
Rabbit, estou de volta à meia-noite viscosa de San
Francisco, procurando por música, dirigindo uma motocicleta
vermelha veloz ladeira abaixo em direção ao Presidio,
me curvando desesperadamente nas curvas através dos eucaliptos,
tentando chegar ao Matrix a tempo de ouvir Grace Slick tocar
sua flauta.
Não havia música enlatada nessas noites, nada
de fones de ouvido ou walkmans ou mesmo capota plástica
para nos abrigar da chuva. Mas eu conseguia ouvir a música
de qualquer jeito, mesmo quando vinha de cinco milhas de altura.
Uma vez que você ouvisse a música tocada direito,
você podia trancafiar isso na sua cabeça e levar
para qualquer lugar, para sempre.
Sim, senhor. Esse é meu legado e essa é minha
canção. É Domingo, e estou criando novas
regras para mim mesmo. Vou abrir meu coração para
os espíritos e prestar mais atenção aos
animais. Vou comprar algum tipo de música com harpas
e dirigir até o Texaco mais próximo, onde possa
comprar um taco de carne de porco e ler o New York Times.
Depois disso, vou atravessar a rua e meter minha carta na caixa
de correio. Res Ipsa Loquitor.
Hunter S. Thompson é figurinha carimbada do meio indie
desde que começou a sujar as mãos com contracultura
no fim dos anos sessenta. Autor do célebre Fear And
Loathing In Las Vegas, livro-reportagem (?) inaugural do
gonzo journalism, estilo do qual é o único representante
legítimo.
O texto aqui apresentado foi originalmente publicado na edição
812 (Maio de 99) da revista Rolling Stone, e apresenta o ponto
de vista de Mr. Gonzo a respeito da tensão pré-milênio
– tudo isso entremeado pela inserção de assuntos
que lhe são tão caros: reminiscências, música
pop, paranóia, armas e, para não fugir à
regra, drogas. Pungente - ainda que chapado.
Fear And Loathing In Las Vegas foi lançado no
Brasil em meados dos anos 80 com o título Las Vegas
Na Cabeça, mas é quase uma lenda urbana –
impossível achar em sebos. Foi adaptado para o cinema
pelas mãos de Terry Gilliam (Os Doze Macacos, Brazil,
Monthy Phyton), com Johny Depp e Benicio Del Toro nos papéis
principais – lançado no Brasil com o título Medo
e Delírio. Um verdadeiro primor de paranóia
e defesa do junkie way of life, além de grandes atuações
de Depp e Del Toro.
Diego Fernandes, 21 anos, gosta de filmes ruins.
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