MATÉRIAS ANTOLÓGICAS

Ei, Cabeça-Oca! Eu Te Amo
Reflexões Lúgubres a respeito de Combustível, Loucura e Música  de Hunter S. Thompson
traduzido por Diego Fernandes
26/06/2002

d13g0_freejazz@yahoo.com.br
"Dize, pois, Senhor nosso, a teus servos que estão na tua presença, que busquem um homem que saiba tocar harpa; e quando o espírito maligno da parte do Senhor vier sobre ti, ele tocara com a sua mão, e te sentirás melhor." 
I SAMUEL 16:16


É domingo de manhã e estou escrevendo uma carta de amor. Do lado de fora da janela da cozinha, o céu está radiante e planetas colidem. Minha cabeça está quente e me sinto um pouco perigoso. Meu cérebro está começando a se comportar como um motor V-8 com as velas de ignição cruzadas. As coisas não são mais o que parecem ser. Meus telefones estão assombrados e animais sibilam em minha direção de lugares ocultos.

Na noite passada um enorme gato preto tentou saltar em mim perto da piscina, e subitamente desapareceu. Dei outra volta e avistei três homens em capotes verdes me observando de uma porta distante. Ops, pensei, algo estranho está acontecendo por aqui. Mergulhe fundo n'água e rasteje pelo fundo próximo ao meio da piscina. Fique distante das bordas. Não permita que te estrangulem por trás. Fique alerta. O trabalho do Diabo nunca é completamente revelado até depois da meia-noite.

Foi nesse momento que comecei a pensar a respeito da minha carta de amor. As luzes no céu acima da piscina pareciam envoltas em névoa, plantas estranhas se movendo em escuridão espessa e completa. Era impossível enxergar de um extremo a outro da piscina.

Tentei me manter imóvel e permitir que a água se acalmasse. Por um momento pensei ter ouvido outra pessoa entrando na piscina, mas não poderia ter certeza. Um rompante de terror me fez ir ainda mais fundo na água e assumir uma posição de auto-defesa. Existem apenas uma ou duas coisas mais aterrorizantes no mundo do que a súbita sensação de que você está nu e sozinho e que algo grande e hostil está se aproximando de você em água escura.

São momentos como esse que te fazem querer acreditar em alucinações – porque se três homens grandes vestindo capotes estivessem me aguardando de verdade nas sombras atrás daquela porta e alguma outra coisa estivesse deslizando na minha direção na escuridão, eu estaria condenado.

Sozinho? Não, eu não estava sozinho. Eu com certeza vi três homens e um enorme gato preto, e então consegui distinguir a silhueta de outra pessoa se aproximando. Ela estava mais fundo na água do que eu, mas podia com certeza ver que era uma mulher.

Claro, pensei. Deve ser minha garota, chegando furtivamente para me fazer uma bela surpresa na piscina. Sim, senhor, é apenas aquela vadiazinha biruta. Ela é uma romântica incorrigível e conhece bem esta piscina. Houve uma época em que nadávamos aqui toda noite, brincando feito lontras.

Jesus Cristo!, pensei, que idiota paranóico eu fui. Devo estar ficado louco. Uma torrente de afeto me atravessou enquanto eu me posicionava e me movia rapidamente para abraçá-la. Eu já conseguia sentir seu corpo nu em meus braços... Sim, pensei, o amor a tudo conquista.

Mas não por muito tempo. Não - levei um minuto ou dois de busca desesperada na água antes que eu entendesse que, na verdade, estava  completamente sozinho na piscina. Ela não estava aqui, e nem aqueles escrotos estavam no canto. E não havia gato nenhum. Eu fui um imbecil e um ingênuo. Meu cérebro estava me pregando peças e me senti tão fraco que mal consegui sair da piscina.

Foda-se, pensei, não consigo mais suportar este lugar. Está destruindo minha vida com toda essa esquisitice. Saia e não volte nunca mais. Tinha enganado meu afeto e estilhaçado meu senso de romance. Essa experiência horrível me valeria a indicação para Cabeça-Oca Do Ano em qualquer anuário ginasial. 

Estava amanhecendo e dirigi de volta pela estrada. Quando passei pelo cemitério, joguei uma moeda de 25 cents por sobre o muro, como sempre faço. Não havia cometas colidindo, nenhum rastro na neve exceto o meu, e nenhum som em dez milhas com exceção de Lyle Lovett cantando no rádio e o uivo de uns poucos coiotes. Dirigi com os joelhos enquanto enchia um cachimbo de vidro com haxixe.

Quando cheguei em casa carreguei minha .45 automática e dei alguns tiros numa lata de cerveja no jardim, e então comecei a rabiscar, febril, num caderno... Mas que diabos?, pensei. Todo mundo escreve cartas de amor em um Domingo de manhã. É uma maneira de louvor autêntica, uma arte extremamente elevada. E em alguns dias eu sou realmente bom nisso. 

Hoje, senti, era definitivamente um desses dias. Pode apostar. Faça isso agora. O telefone tocou e eu ergui o gancho, mas não havia ninguém na linha. Me curvei em direção à lareira resmungando, e então ele tocou de novo. Atendi, mas novamente não havia ninguém na linha. Deus!, pensei. Alguém está fodendo comigo... eu estava precisando de música. Precisava de ritmo. Estava determinado a me acalmar, então coloquei para tocar Spirit In The Sky, de Norman Greenbaum.

Toquei isso de novo e de novo nas três ou quatro horas seguintes  enquanto finalizava minha carta. Meu coração estava frenético e a música estava fazendo os pavões gritarem. Era domingo, e eu estava louvando a meu modo. Ninguém precisa pirar no Dia Do Senhor.

Minha avó nunca pareceu louca quando a visitávamos aos Domingos. Ela sempre tinha biscoitos e chá, e estava sempre com um sorriso no rosto. Isso era no lado oeste de Louisville, próximo das represas do rio Ohio. Eu me lembro de uma estradinha de concreto e de um grande carro cinza na garagem. A estradinha era formada por duas linhas de cimento com um monte de grama crescendo ao meio. Passava entre ameaçadores arbustos de rosas selvagens e conduzia àquilo que parecia ser uma barracão abandonado. E era. Abandonado. Ninguém caminhava por aquele jardim, e ninguém dirigia aquele carrão cinza. Ele nunca se moveu. Não haviam rastros na grama.

Pelo que me lembro, era um sedã LaSalle, com uma aparência esguia e bruta, um poderoso motor de oito cilindros com uma câmbio saindo do chão, talvez um modelo 1939. Nunca demos partida nele, porque a bateria estava morta e a gasolina era escassa. Havia uma guerra em progresso. Você tinha que ter cupons especiais para comprar cinco galões de gasolina, e os cupons eram severamente racionados. As pessoas os cobiçavam e os escondiam, mas ninguém reclamava porque estávamos em guerra com os nazistas e nossos tanques precisavam de toda a gasolina para quando alcançassem as praias da Normandia. Olhando para trás, vejo claramente que a razão de dirigirmos até o lado oeste de Louisville para vistar minha avó no Dia Do Senhor era para aproveitar seus cupons de gasolina para o LaSalle. Ela era um senhora já velha e não precisava de gasolina nenhuma. Mas o carro continuava registrado e ela continuava recebendo seus cupons todo mês. Por isso íamos até sua casa todo Domingo.

Grande coisa – eu faria o mesmo se minha mãe tivesse gasolina e eu não. Todos faríamos. Essa é a Lei de Oferta e Demanda – e esse é, afinal de contas, o ano insano e final do século Americano e as pessoas estão ficando nervosas. Saqueadores estão saindo do armário, murmurando sombriamente a respeito do Bug Do Milênio e comprando carne enlatada. Figos secos estão em voga, juntamente com arroz e presunto enlatado. Eu, pessoalmente, estou estocando balas. Munição sempre vai ser valiosa, especialmente quando as luzes se apagam e a comida dos seus vizinhos começa a acabar. É aí que você vai descobrir quem são seus amigos. Até mesmo familiares próximos se voltarão contra você. Após o ano 2000, as únicas pessoas que será seguro ter como amigas serão pessoas mortas. 

Eu costumava respeitar William Burroughs por ele ter sido o primeiro cara branco a ser preso por porte de maconha na minha época. William era o Cara. Ele foi vítima de uma batida policial ilegal em sua residência na Wagner Street 509, um subúrbio barato do outro lado do rio em New Orleans, onde tinha se estabelecido para treinar um pouco sua mira e fumar marijuana. 

William não era de frescura. Era sério a respeito de tudo. Quando o Real Deal caiu por terra, William estava LÁ, esperando com uma arma. Click! BOOM. Um passo para trás. EU sou a lei. Ele foi meu herói mesmo muito antes de eu ouvir falar dele.

Mas ele não foi o primeiro cara branco a ser preso por porte de maconha na minha época. Não. Foi Robert Mitchum, o ator, que foi preso três meses antes em Malibu na porta da frente de sua casa de praia por posse de maconha e suspeita de molestar uma adolescente em 31 de Agosto de 1948. Eu me lembro das fotos: Mitchum estava vestindo uma camiseta e rosnando para os tiras com o oceano estourando ao fundo e as palmeiras balançando ao vento.

Sim, senhor, esse é que era meu garoto.  No meio de Mitchum e Burroughs e James Dean e Jack Kerouac, me vi iniciado pra valer antes dos vinte anos de idade, e não havia retorno. Comprou o bilhete, cumpra o pescurso.

O que nos leva a Thunder Road, camaradinha. Esse foi um daqueles filmes que me fisgou quando eu era jovem demais para resistir. Me convenceu de que a única maneira de dirigir era a toda velocidade, com um carro cheio de uísque, e tenho dirigido deste modo desde então, para o bem ou para o mal. 

A garota nas fotos com Mitchum parecia ter uns quinze anos, e também estava vestindo uma camiseta ordinária, com um pequeno e elegante mamilo despontando. Os tiras tentavam cobrir o peito dela com uma capa de chuva enquanto irrompiam porta adentro. Mitchum também foi indiciado por sodomia e contribuição à corrupção de menores.

Eu andava tendo meus próprios problemas com a lei por aqueles anos. Na quinta série, fui oficialmente detido pelo FBI por derrubar uma caixa dos Correios na frente de um ônibus. Logo em seguida, me tornei um detento habitual em várias prisões pelo sul, sob acusações de embriaguez, furto e agressão. As pessoas me chamavam de criminoso, e, em cerca de metade das vezes, estavam certas. Eu era um delinqüente juvenil irremediável, e tinha um monte de amigos.

Nós roubávamos carros e bebíamos gim e fazíamos um bocado de pegas pela noite dirigindo para lugares como Nashville e Atlanta e Chicago. Precisávamos de música nessas noites, e normalmente o rádio resolvia isso – estações de rádio como a WWL de New Orleans, e a WLAC de Nashville. 

Foi aí que eu me perdi – escutando a WLAC e dirigindo noite afora pelo Tennessee em um carro roubado que não seria notado por três dias. Foi assim que fui apresentado ao Howlin' Wolf. Nós não o conhecíamos, mas gostávamos dele e sabíamos do que ele estava falando. I Smell A Rat é um monumento de puro rock'n'roll ao axioma que diz: "Não há nada como paranóia". Wolf podia botar pra foder, mas tinha um lado melancólico. Ele podia despedaçar seu coração como o mais triste honky-tonk. Se a história faz o julgamento de um homem por meio de seus heróis, como dizem, então que fique registrado que Howlin' Wolf é um dos meus heróis. Ele era um monstro.

Música sempre foi uma questão de Combustível para mim. Pessoas sentimentais chamam isso de Inspiração, mas o que elas realmente querem dizer é Combustível.

Eu sempre precisei de Combustível. Sou um grande consumidor. Em algumas noites, eu ainda acredito que um carro com a agulha do combustível no 'vazio' pode rodar cinqüenta milhas a mais se tiver a música certa tocando alto no rádio. Um Cadillac V-8 vai andar dez ou quinze milhas a mais se você lhe servir uma dose completa de "Carmelita". Isso já foi comprovado diversas vezes. Essa é razão pela qual você vê tantos Cadillacs parados em frente às paradas de caminhões da Rota 66 à meia-noite. São compulsivos sexuais por velocidade, abastecendo mais do que mera gasolina. Você observa um desses lugares por algum tempo e percebe uma espécie de padrão: um grande carro pára rente à porta e uma garota de aparência selvagem desce, nua exceto por um casaco de pele ou uma parca de esquiador, entra no lugar com um punhado de dinheiro, louca para descolar algumas fitas com música espanta-tédio para dirigir. 

Isso acontece de novo, e de novo, e cedo ou tarde você é fisgado, e fica viciado. Toda vez que ouço White Rabbit, estou de volta à meia-noite viscosa de San Francisco, procurando por música, dirigindo uma motocicleta vermelha veloz ladeira abaixo em direção ao Presidio, me curvando desesperadamente nas curvas através dos eucaliptos, tentando chegar ao Matrix a tempo de ouvir Grace Slick tocar sua flauta.

Não havia música enlatada nessas noites, nada de fones de ouvido ou walkmans ou mesmo capota plástica para nos abrigar da chuva. Mas eu conseguia ouvir a música de qualquer jeito, mesmo quando vinha de cinco milhas de altura. Uma vez que você ouvisse a música tocada direito, você podia trancafiar isso na sua cabeça e levar para qualquer lugar, para sempre.

Sim, senhor. Esse é meu legado e essa é minha canção. É Domingo, e estou criando novas regras para mim mesmo. Vou abrir meu coração para os espíritos e prestar mais atenção aos animais. Vou comprar algum tipo de música com harpas e dirigir até o Texaco mais próximo, onde possa comprar um taco de carne de porco e ler o New York Times. Depois disso, vou atravessar a rua e meter minha carta na caixa de correio. Res Ipsa Loquitor.


Hunter S. Thompson é figurinha carimbada do meio indie desde que começou a sujar as mãos com contracultura no fim dos anos sessenta. Autor do célebre Fear And Loathing In Las Vegas, livro-reportagem (?) inaugural do gonzo journalism, estilo do qual é o único representante legítimo.

O texto aqui apresentado foi originalmente publicado na edição 812 (Maio de 99) da revista Rolling Stone, e apresenta o ponto de vista de Mr. Gonzo a respeito da tensão pré-milênio – tudo isso entremeado pela inserção de assuntos que lhe são tão caros: reminiscências, música pop, paranóia, armas e, para não fugir à regra, drogas. Pungente - ainda que chapado.

Fear And Loathing In Las Vegas foi lançado no Brasil em meados dos anos 80 com o título Las Vegas Na Cabeça, mas é quase uma lenda urbana – impossível achar em sebos. Foi adaptado para o cinema pelas mãos de Terry Gilliam (Os Doze Macacos, Brazil, Monthy Phyton), com Johny Depp e Benicio Del Toro nos papéis principais – lançado no Brasil com o título Medo e Delírio. Um verdadeiro primor de paranóia e defesa do junkie way of life, além de grandes atuações de Depp e Del Toro.

Diego Fernandes, 21 anos, gosta de filmes ruins.