Matérias Antológicas

Compositor de mão cheia, como se dizia antigamente, e dono de uma carreira iluminada por dezenas de sucessos, o músico Guilherme Arantes completa, em 2006, 30 anos de carreira solo. Enquanto prepara um álbum novo, composto por canções inéditas, o músico responde com sinceridade comovente aos comentários do jornalista Mauro Ferreira sobre os (des)caminhos de sua carreira fonográfica. O texto abaixo é uma das reflexões mais sérias, inteligentes, honestas e sinceras que um músico poderia fazer não só da sua carreira, mas sim de sua própria vida. O S&Y aproveita e parabeniza o jornalista, que abriu espaço em seu blog recomendando a leitura do texto pela "riqueza de idéias do compositor". Leia e reflita.

Marcelo Costa
Editor S&Y

Hoje sou exatamente o que sonhei ser
por Guilherme Arantes
10/02/2006


"Motivado por recente artigo do colunista sobre os (des)caminhos de sua carreira fonográfica, no ano em que ele completa três décadas de obra solo pioneira no pop nacional e que prepara disco de inéditas em Salvador (BA), Guilherme Arantes mandou para o blog de 'Estúdio' um texto em que reflete sobre questões relativas ao conceito de sucesso, à indústria do disco, à mídia, à música e ao jogo de poder que envolve tudo isso. O texto questiona o conceito de injustiça atribuído à trajetória de Arantes pelo colunista e merece ser lido por conta da riqueza de idéias expostas pelo compositor." Mauro Ferreira

Lá vai:

"O significado da palavra 'limbo' tem muitas variantes. Pode ser a ausência de lembrança que sucede fase de superexposição, pode ser o castigo que o sistema reserva para quem teve o espaço tão cobiçado, mas também pode ser "o silêncio que precede o esporro" ..., o que não configura obrigação nenhuma de voltas triunfais, de resgate, tudo isso pode ser um grande engano.

Viver é melhor que sonhar, como diz o mestre Belchior, e a vida é infinitamente maior do que o êxito, o mercado, o senso comum e a opinião que as pessoas possam ter a respeito da gente... A verdade é que só pode "sumir" quem um dia "apareceu" ... e nisso fico tranqüilo, pois a minha "missão de aparecer" foi sobejamente cumprida nos anos da mocidade (e aí, sim, havia "obrigação" em conseguir brilhar) nas priscas e longínquas eras da beleza física... E como me fartei desse brilho!!! E acho que foi um brilho bonito, porque estranho.

O brilho pelo brilho não é nada, só vale pelo estranhamento que possa ter deixado. A indústria cultural, como qualquer outra, privilegia claramente o mito da juventude - empresas estabelecem até idade-limite para contratações no mercado, o que é uma injustiça enorme com a mão de obra madura e experiente. Mas isso é uma outra discussão - os mitos da juventude, do esplendor e decadência, da finitude da vida, ascensões e quedas, glória e ocaso, fazem parte da dialética mais rasteira e miserável que a humanidade construiu para, ela sim, perenizar-se no limbo. O mundo está no limbo. O mundo se esqueceu de si mesmo.

Eu não me esqueci jamais da música que eu amo, dos colegas que adoro, da belíssima história da música popular do Brasil, muito menos de mim, e nada tenho do que reclamar. Aliás, o estado de reclamação é o pior caminho para qualquer pessoa, especialmente o artista. Assim, o adjetivo "injustiçado" eu queria ver desde já banido de qualquer conversa a meu respeito. Quem? Logo eu?

É uma pecha cruel e aprisionante, assim como é o título de "maldito" aposto aos nomes de Mautner, Macalé, Walter Franco, Melodia, Itamar, Arrigo, a lista é longa .... Mas como o sistema é insidioso, delimita um nicho para cada pessoa ficar ali, quietinha, santificada e adorada em seu silencio petrificado. E hoje em dia, qual é o significado da palavra "sucesso"? Francamente... é só olhar a TV aberta ...

O fato é que o Brasil também se esqueceu de si mesmo. É hoje um espectro do que foi, um fracasso, uma decadência deprimente, que vive do passado e no passado, mas também não adianta ficar reclamando. Como parte desse passado, tenho (e sou gratíssimo) tantas execuções em rádios do segmento "adulto-contemporâneo" quanto os meus maiores ídolos, e me sinto em muitíssimo boa companhia nesse "esquecimento", junto com o que há de melhor de nossa música. É tanta gente, e de tal qualidade, que nem sei se mereço tamanha companhia.

Não vou aqui citar nomes de quem está realmente "esquecido", porque teria muita gente dos escalões principais, até mesmo gente que está "aparecendo" a toda hora, tentando de tudo pra aparecer, mas que está mortinha-da-silva e que se esqueceu de deitar.

Só para exemplificar, sem medo de interpretações controversas e represálias, cito alguns internacionais que fazem parte da "nossa turma": Elton John, Phil Collins, James Taylor, Peter Gabriel, Stevie Winwood, Christopher Cross, Al Stewart, Suzanne Vega, Tears for Fears, Everything But the Girl, Tracy Chapman, Cindy Lauper, Mark Knopfler... São só alguns que lembro agora, que amo, e que tocam muito, ali, juntinho com a gente...

As aparências enganam, o sistema é um engodo, e a indústria cultural é uma farsa - e já foi desmascarada incontáveis vezes. A indústria do sucesso adora mesmo é quando o artista morre. Esse é o artista perfeito. Ou quando deliberadamente desaparece. Não fica em público expondo seu "apodrecimento físico e moral", não fica tentando voltar à baila, enchendo o saco da mídia, vira santo e ergue um mito, pronto. Mas não é assim que funciona.

Teimamos em viver, porque (digo de novo) a vida é infinitamente maior do que tudo isso.

Quanto a um novo CD "comemorativo" dos 30 anos de carreira, com participações estelares, podem deixar isso pra lá... Foi uma idéia natimorta. Não vou angariar nenhum "tributo a Guilherme Arantes", usando meu prestígio para somar nomes de peso, criando artificialmente ganchos de marketing para me tornar mais palatável, seria ridículo. E digo mais : há álguns meses me propuseram fazer um CD de intérprete, com regravações de grandes sucessos de outros artistas, um "projeto especial", que recusei peremptoriamente, o tal "cover do cover" que está tão na moda.

Digo claro: estou e estarei sempre fora. Chega de "projetos". O Brasil virou a pátria dos "projetos", já perceberam?

O brasileiro hoje é um sujeito que está sempre precisando "sentar pra fazer um projeto", é toda uma nação que roda bolsinha com um "projeto na mão", memoriais descritivos e planilhas de viabilidade. Nada sai do papel, morre tudo na praia. No meu caso, isso seria na verdade "fazer um projeto para sentar "...

Se hoje estou fora do mercado, sem gravadora, é porque sempre tive personalidade demais, ninguém jamais me curvou a gravar o que eu não queria, de um jeito que eu não quisesse, minha profissão é de compositor, eventualmente e circunstancialmente um hitmaker. Sim, gravei coisas (uns meros 5%) para as quais hoje eu torço o nariz, mas foram erros meus. 95% do que gravei, eu adoro. Ah, como é bom estar nesta situação... Principalmente as mais desconhecidas, os chamados "Lado B" que dariam pra fazer uma caixa com 15 CDs, que eu chamaria orgulhosamente de "Os 100 Maiores Insucessos de Guilherme Arantes".

Dos "20 Maiores Sucessos", eu já estou de saco cheio, embora muitas dessas músicas eu ainda goste muito e cante nos shows, porque o que eu vendo é a minha vida, sentimentos, e é uma delícia compartilhar isso. Cansei é do senso comum. Pra mim, ele não vale nada.

Se, mesmo sem mídia alguma, faço uma média de 15 shows por mês (quem faz?) é porque só tem um jeito do público curtir minha música: ao vivo . E eu agradeço muito isso, pois vivo do que sonhei viver: da música, e nada mais. Minha profissão é de músico, não de celebridade. Sucesso, qualquer coisa faz.

Sucesso é esquema, é kit modernidade - personal trainer, web-designer, fashion-designer, assessoria de imprensa, assessoria de marketing e outros apêndices que fogem de minha função no mundo. Estou pouco me lixando para a modernidade, para o ser moderno, seja lá o que isso significa. Certo está João Gilberto em suas esquisitices. E como é adorável, moderno, atemporal. É apenas um homem e um violão. Esse é o Mestre, sem nenhum kit modernidade.

Vem aí um disco novo, sim, mas vai ser "apenas" um disco de carreira, com músicas novas. Em qualquer circunstância, digo do fundo da minha experiência que vale infinitamente mais um trabalho novo do que qualquer "jogada pra levantar", mais do que qualquer "projeto" espúrio de canibalização, de reprocessamento ou releitura.

O mercado está covarde. Resta a nós gerarmos o milagre - mas não foi sempre assim? Se fosse pra abaixar as calças, em 1976, há 30 anos, eu teria gravado em inglês, pois era isso que o "mercado" exigia. Somos teimosos. Somos tinhosos e perigosos. Estamos vivos, e podemos fazer um estrago que ninguém imagina.

Quero estar junto com os artistas desconhecidos, em começo de carreira sim, (re)começando sempre da estaca zero sem o menor problema. Em outubro de 1980 eu estava acabadinho e esquecidinho, sem gravadora, como manda o figurino do mercado, quando recebi em minha casa na Vila Mariana uma surpreendente ligação da Elis, pedindo uma música, ela havia se encantado com um disco meu (fracassadíssimo), Coração Paulista. Pois me lembro bem hoje, eu estava a 3 meses (!!!) de me tornar o número 1 dos FMs, "glória" essa que duraria 12 longos anos ... quem é que diria, àquelas alturas, que isso estava pra acontecer?

Durante aqueles 12 anos, jamais me enganei com o sucesso. Saía todos os dias dos ginásios lotados com 8.000 pessoas (pagantes, só pra me ver) e ia caminhar pela madrugada, no silêncio das ruas desertas, para ouvir os meus próprios passos marcando o tempo real no chão da realidade. Ainda bem que antes dessa carreira tresloucada e enganosa eu havia feito Arquitetura na USP, já era cabeça-feita, o pensamento andava longe, bem longe de toda aquela confusão das "paradas", do assédio...

Hoje, sou exatamente o que sonhei ser. Envelhecer, pra mim, é um objetivo, e eu juro pelo que há de mais sagrado que eu vou conseguir, e já estou conseguindo. Deus me livre de ficar eternamente jovem, e prefiro mil vezes ser bem esquecido do que mal lembrado. Sei que hoje o "mercado" é completamente previsível, as cartas estão muito mais marcadas. Mas estou muito mais com as surpresas, com as periferias. Enquanto houver sonhos vitoriosos, e não programados nas mesas de reuniões da ABPD, de artistas de verdade como Racionais MC's, O Rappa, Chico Science... O sonho existe e o que eu gosto mesmo é do novo. O resto, a poeira do tempo vai soterrar, sem o menor problema."


Blog "No Estúdio", de Mauro Ferreira
Site Oficial de Guilherme Arantes

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