O mundo da música, ou pelo menos as crônicas da imprensa musical,
estão cheias de histórias sobre bandas e artistas que não-foram-mas-poderiam-ter-sido.
Na enorme maioria dos casos, trata-se de um bando de Zé das
Couves qualquer que é sacado de algum sebo esquecido por alguém
louco em desenterrar obscuridades e arrota-las na cara alheia
como sinônimo de erudição musical. Costuma ser o tipo de coisa
que não valeria trinta segundos do seu tempo. Não é o caso do
Feminine Complex.
Esse quinteto formado apenas por garotas de Nashville (EUA)
chegou às minhas mãos via Jonathan Marx, trompetista e operador
de samplers do Lambchop. Marx, também natural de Nashville,
desconhecia a banda até que um amigo de Virginia recomendou
entusiasticamente o vinil para ele. A partir daí, Marx empreendeu
uma busca para achar o vinil e, assim que o conseguiu, começou
uma maratona para reedita-lo em formato digital. Não só relançou
o disco Livin' Love, único álbum da banda (lançado originalmente
em 1969), como acrescentou demos e sessões extras de estúdio
como bônus, no CD Livin' Love - Teenbeat 196.
O que havia de tão encantador no Feminine Complex não era o
fato de ser uma banda só de simpáticas garotas colegiais. Isso
tem bastante por aí até hoje, mas não passa de mera curiosidade
fetichista (e é inegável que isso seja um fetiche para homens
e também mulheres). O poder residia no som, no soul dessas meninas.
Harmonias vocais lindas e doces, mas absurdamente poderosas
- um raw power vocal de tirar o rumo espiritual de um sujeito.
Para amparar essas vozes, um híbrido de soul e rock com discretíssimas
influências country e bubblegum. Ou seja, as meninas criavam
sua música com base no que haviam naquela sua adolescência suburbana
americana do fim dos anos 60, mas tinham dentro delas aquela
vibração que transforma as surradas "influências" em material
próprio de grande quilate. Em arte própria, melhor dizendo.
Lana Napier (bateria) e Jean Williams (baixo) começaram o grupo
num verão ocioso de 1966, junto com duas colegas do time de
basquete do colégio, a bela Judi Griffith (voz e tamborim) e
a altona e desengonçada Mindy Dalton (guitarra e voz). Como
qualquer banda de adolescentes, tocavam covers dos hits locais,
de James Brown e do que mais gostassem. Mas desde o começo se
empenharam em compor suas próprias canções, e estas eram priorizadas
em suas duas primeiras apresentações. Com a adição da organista
Pame Stephens, amiga de infância de Jean, consolidaram rapidamente
um repertório autoral e saíram tocando em festas de escolas,
clubes, rinques de patinação, lanchonetes e até um concurso
de beleza!
Entretanto, um álbum gravado em 1968 (lançado no iníco do ano
seguinte) e shows fora do circuito local não foram suficientes
para manter a banda unida: o mundo adulto traz o chamado de
faculdades, empregos e outras mumunhas, e o Complexo Feminino
se separou ainda em 1969. Aliás, as cinco nunca mais se juntaram
(apesar de não term brigado) até que Jonathan as procurasse
para o relançamento de seu material, o que aconteceu em 1996.
Livin' Love é um dos álbuns mais perfeitos que este que
vos escreve já escutou. Pop do começo ao fim, sejam em suas
baladas ou em suas rajadas dançantes. A faixa de abertura, Hide
And Seek, traz o vocal gravíssimo e celestialmente sensual
de Judi, uma diminuta musa de cabelos negros e garganta idem,
enquanto uma trama de órgão e cozinha cria um clima de mistério
e provocação para um refrão de licks guitarrísticos libidinosos.
Menos de quatro minutos e o estrago já está feito. Você nunca
mais vai conseguir viver sem esse disco.
Now I Need You vem com placidez para acalmá-lo depois
dessa tempestade sensorial, mas a voz de Judi não deixa sua
imaginação repousar enquanto ela rosna que precisava de você,
pedido que é repetido de forma sussurrada por suas companheiras.
A faixa seguinte, também uma balada, se chama Are You Lonesome?
(você está solitário?). Precisa dizer mais?
A pausa para respirar só vem mesmo na simpática I Won't Run,
um popzinho sacolejado, quase bubblegum, e outra balada, Six
O'Clock In The Morning. Finda essa canção, acaba também
o sossego. Run That Through Your Mind é uma intimação
à dança, uma jóia roubada do repertório do godfather of soul
sem que ele percebesse, a música que James Brown nunca compôs
porque ele tinha testosterona demais e sensibilidade de menos.
(Tocada para o editor desse site, sua reação foi: "caralho!
Como o mundo não conhece isso?" Eu não sei, Marcelo. Ninguém
sabe).
Esse propulsor dançante se repete ainda em I've Been Workin'
On You e Don't Want Another Man, provando que essas
garotas, que ainda nem tinham atingido a maioridade, sabiam
muito bem o que queriam, reduzindo-nos, pobres homens, a patéticas
carcaças fracassadas. It's Magic retoma o clima de Hide
And Seek com um tiquinho menos de intensidade e ainda sobra
para o popzinho Forgetting, cantada por Mindy, aquela
banalidade que só as melhores canções pop têm.
Você poderia ficar frustrado se eu te dissesse que esse Livin'
Love foi gravado por músicos de estúdio, cabendo ao quinteto
apenas os vocais. Esqueça: as demos acrescidas ao CD deixam
claro que isso deve ter sido nóia do produtor. Gravadas pelo
engenheiro Lee Hazen, que também esteve presente na gravação
do disco, essas canções registradas em um único take atestam
escancaradamente a música que emergia da alma das garotas.
Se minhas palavras não o convencem, ouça Is This a Dream?,
gravada apenas por Pame e Judi, uma canção mais sensual, provocante
e atemporal que o repertório inteiro do Ladytron (e que fique
claro que eu gosto muito de Ladytron). Ainda mais despojada,
A Summer Morning preserva todo seu soul apenas com voz
e guitarra. The Warmth Of Your Smile sugere como Marianne
Faithfull poderia soar se não tivesse sido tão junkie. E as
versões demo de faixas que entraram no álbum, "I've Been
Workin' On You e Are You Lonesome?, não deixam nada
a dever para os registros de estúdio. Para falar a verdade,
sua urgência e crueza até às tornam ligeiramente superiores.
E poderia continuar falando das outras faixas extras, mas por
que perder tempo tergiversando? Nesse exato momento estou escutando
o álbum e estou pensando em milhares de coisas melhores para
fazer. Acho que vou ligar para alguém e usar Livin' Love
- Teenbeat 196como trilha sonora de fundo para coisas inesquecíveis.
Aliás, The Feminine Complex pode ter sido esquecido pelos anais
do sucesso, esse monstro bizarro, e pela imprensa musical, essa
puta feia e injusta. Mas não pelas meninas, que aparecem ainda
belas na capa desse pacote em pleno frescor dos quarenta e poucos
anos - nada do padrão "Global" de beleza, e sim aquela estética
que emana de quem deixou a própria alma brilhar. Graças a Jonathan
Marx e seu amigo de Virginia, as nossas almas também podem reluzir
um pouco, graças à audição desse disco.
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