ROCK RARO


"Livin' Love", Feminine Complex
por Leonardo Vinhas
lvinhas1@yahoo.com.br
17/11/2004

O mundo da música, ou pelo menos as crônicas da imprensa musical, estão cheias de histórias sobre bandas e artistas que não-foram-mas-poderiam-ter-sido. Na enorme maioria dos casos, trata-se de um bando de Zé das Couves qualquer que é sacado de algum sebo esquecido por alguém louco em desenterrar obscuridades e arrota-las na cara alheia como sinônimo de erudição musical. Costuma ser o tipo de coisa que não valeria trinta segundos do seu tempo. Não é o caso do Feminine Complex.

Esse quinteto formado apenas por garotas de Nashville (EUA) chegou às minhas mãos via Jonathan Marx, trompetista e operador de samplers do Lambchop. Marx, também natural de Nashville, desconhecia a banda até que um amigo de Virginia recomendou entusiasticamente o vinil para ele. A partir daí, Marx empreendeu uma busca para achar o vinil e, assim que o conseguiu, começou uma maratona para reedita-lo em formato digital. Não só relançou o disco Livin' Love, único álbum da banda (lançado originalmente em 1969), como acrescentou demos e sessões extras de estúdio como bônus, no CD Livin' Love - Teenbeat 196.

O que havia de tão encantador no Feminine Complex não era o fato de ser uma banda só de simpáticas garotas colegiais. Isso tem bastante por aí até hoje, mas não passa de mera curiosidade fetichista (e é inegável que isso seja um fetiche para homens e também mulheres). O poder residia no som, no soul dessas meninas. Harmonias vocais lindas e doces, mas absurdamente poderosas - um raw power vocal de tirar o rumo espiritual de um sujeito.

Para amparar essas vozes, um híbrido de soul e rock com discretíssimas influências country e bubblegum. Ou seja, as meninas criavam sua música com base no que haviam naquela sua adolescência suburbana americana do fim dos anos 60, mas tinham dentro delas aquela vibração que transforma as surradas "influências" em material próprio de grande quilate. Em arte própria, melhor dizendo.

Lana Napier (bateria) e Jean Williams (baixo) começaram o grupo num verão ocioso de 1966, junto com duas colegas do time de basquete do colégio, a bela Judi Griffith (voz e tamborim) e a altona e desengonçada Mindy Dalton (guitarra e voz). Como qualquer banda de adolescentes, tocavam covers dos hits locais, de James Brown e do que mais gostassem. Mas desde o começo se empenharam em compor suas próprias canções, e estas eram priorizadas em suas duas primeiras apresentações. Com a adição da organista Pame Stephens, amiga de infância de Jean, consolidaram rapidamente um repertório autoral e saíram tocando em festas de escolas, clubes, rinques de patinação, lanchonetes e até um concurso de beleza!

Entretanto, um álbum gravado em 1968 (lançado no iníco do ano seguinte) e shows fora do circuito local não foram suficientes para manter a banda unida: o mundo adulto traz o chamado de faculdades, empregos e outras mumunhas, e o Complexo Feminino se separou ainda em 1969. Aliás, as cinco nunca mais se juntaram (apesar de não term brigado) até que Jonathan as procurasse para o relançamento de seu material, o que aconteceu em 1996.

Livin' Love é um dos álbuns mais perfeitos que este que vos escreve já escutou. Pop do começo ao fim, sejam em suas baladas ou em suas rajadas dançantes. A faixa de abertura, Hide And Seek, traz o vocal gravíssimo e celestialmente sensual de Judi, uma diminuta musa de cabelos negros e garganta idem, enquanto uma trama de órgão e cozinha cria um clima de mistério e provocação para um refrão de licks guitarrísticos libidinosos. Menos de quatro minutos e o estrago já está feito. Você nunca mais vai conseguir viver sem esse disco.

Now I Need You vem com placidez para acalmá-lo depois dessa tempestade sensorial, mas a voz de Judi não deixa sua imaginação repousar enquanto ela rosna que precisava de você, pedido que é repetido de forma sussurrada por suas companheiras. A faixa seguinte, também uma balada, se chama Are You Lonesome? (você está solitário?). Precisa dizer mais?

A pausa para respirar só vem mesmo na simpática I Won't Run, um popzinho sacolejado, quase bubblegum, e outra balada, Six O'Clock In The Morning. Finda essa canção, acaba também o sossego. Run That Through Your Mind é uma intimação à dança, uma jóia roubada do repertório do godfather of soul sem que ele percebesse, a música que James Brown nunca compôs porque ele tinha testosterona demais e sensibilidade de menos. (Tocada para o editor desse site, sua reação foi: "caralho! Como o mundo não conhece isso?" Eu não sei, Marcelo. Ninguém sabe).

Esse propulsor dançante se repete ainda em I've Been Workin' On You e Don't Want Another Man, provando que essas garotas, que ainda nem tinham atingido a maioridade, sabiam muito bem o que queriam, reduzindo-nos, pobres homens, a patéticas carcaças fracassadas. It's Magic retoma o clima de Hide And Seek com um tiquinho menos de intensidade e ainda sobra para o popzinho Forgetting, cantada por Mindy, aquela banalidade que só as melhores canções pop têm.

Você poderia ficar frustrado se eu te dissesse que esse Livin' Love foi gravado por músicos de estúdio, cabendo ao quinteto apenas os vocais. Esqueça: as demos acrescidas ao CD deixam claro que isso deve ter sido nóia do produtor. Gravadas pelo engenheiro Lee Hazen, que também esteve presente na gravação do disco, essas canções registradas em um único take atestam escancaradamente a música que emergia da alma das garotas.

Se minhas palavras não o convencem, ouça Is This a Dream?, gravada apenas por Pame e Judi, uma canção mais sensual, provocante e atemporal que o repertório inteiro do Ladytron (e que fique claro que eu gosto muito de Ladytron). Ainda mais despojada, A Summer Morning preserva todo seu soul apenas com voz e guitarra. The Warmth Of Your Smile sugere como Marianne Faithfull poderia soar se não tivesse sido tão junkie. E as versões demo de faixas que entraram no álbum, "I've Been Workin' On You e Are You Lonesome?, não deixam nada a dever para os registros de estúdio. Para falar a verdade, sua urgência e crueza até às tornam ligeiramente superiores.

E poderia continuar falando das outras faixas extras, mas por que perder tempo tergiversando? Nesse exato momento estou escutando o álbum e estou pensando em milhares de coisas melhores para fazer. Acho que vou ligar para alguém e usar Livin' Love - Teenbeat 196como trilha sonora de fundo para coisas inesquecíveis. Aliás, The Feminine Complex pode ter sido esquecido pelos anais do sucesso, esse monstro bizarro, e pela imprensa musical, essa puta feia e injusta. Mas não pelas meninas, que aparecem ainda belas na capa desse pacote em pleno frescor dos quarenta e poucos anos - nada do padrão "Global" de beleza, e sim aquela estética que emana de quem deixou a própria alma brilhar. Graças a Jonathan Marx e seu amigo de Virginia, as nossas almas também podem reluzir um pouco, graças à audição desse disco.

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