"Febre de Bola - Introdução"
por Nick Hornby

A coisa está lá dentro o tempo todo, procurando um jeito de sair. Acordo por volta de 10 horas, faço duas xícaras de chá, trago-as para o quarto e coloco uma de cada lado da cama. Ficamos bebericando pensativamente; logo depois de acordar há uns intervalos longos e sonhadores entre nossos comentários ocasionais sobre a chuva lá fora, sobre a noite anterior, sobre fumar no quarto e minha promessa de parar de fazer isso. Ela pergunta o que vou fazer essa semana, e eu penso: 1) Vou me encontrar com Matthew na quarta-feira. 2) Matthew ainda está com o meu vídeo de Os Campeões. 3) Lembro que Matthew, um torcedor puramente nominal do Arsenal, não vai a Highbury há dois anos e por isso não pôde observar as aquísições mais recentes em carne e osso. Eu fico imaginando o que ele achou de Anders Limpar.

E em três estágios simples, 15 ou 20 minutos depois de acordar, já começo a viajar. Vejo Limpar correndo em direção a Gillespie, desviando para a direita e caindo: PÊNALTI! DIXON MARCA! 2 a 0!... 0 toque de calcanhar de Merson e o chute de pé direito de Smith entrando no canto oposto, ainda na mesma partida... Merson dando um pequeno empurrão na bola e desviando-a de Grobbelaar, lá em Anfield... 0 giro e a bomba de Davis contra o Villa... (E isso, lembrem-se, é uma manhã de julho, nosso mês de folga, quando os clubes de futebol estão de férias.) Às vezes, quando deixo que este estado sonhador tome conta de mim completamente, vou recuando cada vez mais, passando por Anfield em 1989, Wembley em 1987, Stamford Bridge em 1978, com toda a minha vida futebolística passando num clarão diante dos meus olhos.

No que você está pensando? - pergunta ela.

A essa altura eu minto. Não estava pensando nem um pouco em Martin Amis, em Gérard Depardieu ou no Partido Trabalhista. Mas é que nós, obsessivos, não temos escolha; temos de mentir em ocasiões como essa. Se disséssemos a verdade todas as vezes, seríamos incapazes de manter um relacionamento com qualquer pessoa do mundo real. Apodreceríamos sozinhos com nossos programas do Arsenal, nossas coleções de discos de rótulo azul origínais da Stax ou nossos spaniels Ray Charles, enquanto nossos devaneios de dois minutos se alongavam; aí perderíamos nossos empregos e pararíamos de tomar banho, fazer a barba e comer; acabaríamos deitados no chão em meio à nossa própria imundície, voltando a fita sem parar na tentativa de decorar todos os comentários, inclusive a análise profissional de David Pleat, sobre a noite de 26 de maio de 1989. (Vocês acham que eu tive de verificar essa data?) A verdade é a seguinte: durante trechos alarmantemente grandes de um día normal, sou um retardado.

Não quero sugerir que assistir a um jogo de futebol seja por si só um uso impróprio da imaginação. David Lacey, o principal cronista esportivo do The Guardian, é um ótimo escritor e um homem obviamente inteligente, e presumivelmente dedica ao futebol uma parte de sua vida interior até maior do que a que eu dedico. A diferença entre mim e Lacey é que poucas vezes penso. Eu me lembro, fantasio, tento visualizar cada gol de Alan Smith, conto nos dedos o número de estádios da Primeira Divisão que já visitei; vez ou outra, quando não conseguia adormecer, tentei até contar cada jogador do Arsenal que já vi. (Quando era garoto, eu sabia os nomes das esposas e das namoradas do time que ganhou a Dobradinha; hoje em dia só consigo me lembrar que a noiva de Charlie George se chamava Susan Farge, e que a esposa de Bob Wilson se chamava Megs, mas até essa lembrança parcial é apavorantemente desnecessária).

Nada disso é pensar, no sentido correto da palavra. Não há em absoluto nenhuma análise, autoconsciência ou rigor mental, porque aos obsessivos é negada qualquer espécie de perspectiva diante da própria paixão. Num certo sentido, é isso que define um obsessivo (e também serve para explicar por que tão poucos deles se reconhecem como tal. Um colega torcedor, que na temporada passada foi assistir sozinho a um jogo entre os reservas do Wímbledon e do Luton numa tarde gélida de janeiro - não por espírito competitivo ou por uma espécie de brincadeira juvenil e auto-irônica, mas por estar genuinamente interessado - há pouco tempo negou enfaticamente que fosse excêntrico sob qualquer aspecto).

Febre de Bola é urna tentativa de entender um pouco melhor a minha obsessão. Por que razão esse relacionamento, que começou como uma mera gamação de colegial, já dura quase um quarto de século, mais do que todos os relacionamentos que travei por vontade própria? (Amo meus familiares de coração, mas eles foram meio que impostos a mim, e já perdi contato com os amigos que tinha antes de fazer 14 anos - exceto o único outro torcedor do Arsenal na escola). E por que essa afinidade consegue sobreviver aos meus periódicos sentimentos de indiferença, trísteza e ódio bastante reais?

Em parte, o livro é também um exame de certas coisas que o futebol parece representar para muitos de nós. Para mim já ficou bastante claro que essa devoção é reveladora do meu caráter e do meu histórico pessoal, mas a organização e a estrutura do esporte parecem oferecer diversas informações sobre a nossa sociedade e a nossa cultura. (Alguns amigos meus verão nisso uma bobagem pretensiosa e autocomplacente, o tipo de explicação insustentável que era mesmo de se esperar de um homem que passa uma parte enorme de suas horas livres sofrendo no frio. Eles são particularmente resistentes a essa idéia porque tendo a superestimar o valor metafórico do futebol, e por conseguinte a introduzi-lo em conversas em que ele simplesmente não cabe. Hoje em dia já aceito que o futebol não tem relevância alguma para o conflito das Falclands, o caso Rushdie, a Guerra do Golfo, o parto de crianças, a camada de ozônio, o imposto per capita etc. etc., e gostaria de aproveitar esta oportunidade para me desculpar com todos os que já foram obrigados a escutar minhas analogias pateticamente forçadas.)

Por fim, Febre de Bola fala do que é ser torcedor. Já li livros escritos por gente que obviamente adora futebol, mas isso é coisa inteiramente diferente; e já li livros escritos por, à falta de palavra melhor, hooligans, mas pelo menos 95% dos milhões de pessoas que assistem a jogos todo ano nunca bateram em ninguém na vida. Portanto, este livro é para torcedores como nós, e para quem tiver curiosidade de saber como é a nossa vida. Embora os detalhes aqui pertençam unicamente a mim, espero que ressoem dentro de todos os que já se tenham surpreendido devaneando - no meio de um dia de trabalho, um filme ou uma conversa - sobre um voleio de canhota no canto superior direito ocorrido dez, quinze ou vinte anos antes.