Faixa
a Faixa
Velvet Underground
"White Light, White Heat"
por
Diego Fernandes 20/08/2002
Nunca
soube o que pensar a respeito do Velvet Underground.
Uma
das bandas mais cultuadas e, na contramão disso, pretensiosas
que já caminharam sobre a terra. É provável
que Lou Reed seja (ao lado de Iggy Pop) o maior outsider da
história do rock, redigindo em tempo real seu próprio
evangelho baseado em drogas pesadas, androginia, insanidade
e sujeira humana. Já a outra peça central na banda,
John Cale, é o nome que vem à mente de todos quando
o assunto é pionerismo no rock experimental, tendo realizado
performances que consistiam em água borbulhante microfonada
e outras esquisitices mais.
Recentemente,
White Heat / White Light, segundo disco do Velvet Underground
foi incluído em uma lista organizada pelo site da revista
Rolling Stone como sendo um dos "50 Discos Mais Descolados De
Todos Os Tempos". Listas são terrivelmente falhas
em um contexto geral – e as listas que confecciono não
escapam desse rótulo, obviamente. Mas esta incluía,
entre outros, o grande Jorge Ben, mostrando ser, no mínimo,
abrangente. Por isso resolvi dar algum crédito.
Os
discos eram numerados de um a cinqüenta de maneira aparentemente
aleatória, mas, coincidência ou não, este
disco do Velvet foi carimbado com o emblemático número
um. De algum modo, a banda, entrincheirada em sua atitude desencanada
e algo elitista, quase faz jus à classificação.
QUASE
porque é um bocado difícil (e estúpido,
e aborrecido...) apontar o disco mais "cool" de todos os tempos.
Mas fica ali, ostensivamente exibindo suas guitarras desafinadas
e influentes com um sádico prazer sobre as cabeças
de dezenas de bandas preocupadas com assepsia musical.
História:
após a saída da modelo/vocalista Nico (que na
verdade havia sido uma imposição de Andy Warhol,
empresário da banda na época do primeiro disco),
a banda passou a ser constituída somente por Lou Reed
(guitarra, vocal, piano), John Cale (vocal, viola elétrica,
órgão e baixo), Sterling Morrison (vocal, guitarra
e baixo) e Maureen "Mo" Tucker (bateria e percussão).
O
Velvet é apontado como uma das bandas mais influentes
e injustiçadas de todos os tempos. Ouvindo o som de bandas
como Joy Division, Jesus And Mary Chain, Sonic Youth, o Mercury
Rev das antigas, Pavement, Luna, Mogwai, toda a vertente do
pós-rock, e até mesmo os vocais de Julian Casablanca,
dos Strokes, não é difícil sacar o porquê.
Na verdade, tudo que se convencionou chamar "rock de vanguarda"
tem a mão mal-intencionada de Reed, Cale e seus comparsas
metida no meio. Qualquer banda que use microfonia e distorção
em um nível nocivo à compleição
humana deve, em maior ou menor escala, algo à banda nova-iorquina
mais bizarra de que se tem notícia.
Aos
valentes que quiserem se aventurar atrás do disco, um
último aviso: não se encontra disponível
em edição nacional, o que significa desembolsar
ao menos uns cinqüenta pilas em função da
obra. Oportunamente, uma edição espanhol caiu
em minhas mãos, e uma cópia tosca numa fita K-7
me pareceu uma solução aprazível, além
de apropriada ao espírito lo-fi pioneiro da banda.
White
Heat / White Light
A
faixa título abre o disco de modo assustador (ainda que
contido), com os vocais congestionados por anfetaminas de Reed
apregoando sobre luz branca e calor branco bagunçando
com sua cabeça, quase o deixando cego, quase o levando
à loucura. Mas o que seria isso? Uma revelação
divina? Neve? A pele branca de um(a) amante? Sêmen? Cocaína?
Aqui, leitor... você decide. O ritmo da música
é suingado, moderado, até, o piano marcando as
coisas de um jeito alegrinho-quase-besta, parecendo guardar
o que realmente interessa para o final. Quando a música
bate nos seus 2 minutos e alguns quebrados, as coisas começam
a ficar feias: uma distorção brutalmente deslocada,
dissonante, a música toda se dissolvendo em um halo de
luz branca rumo ao teto, a forte sugestão de que algo
agoniza (chamar isso de "white noise" faz um bocado de sentido).
A partir daqui, o disco não tem volta – não diga
que não foi avisado.
The
Gift
Talvez
o exemplo mais cabal de por que o som da Velvet Underground
recebe freqüentemente adjetivos como "chato", "pretensioso"
e "inaudível". A faixa mostra a banda dando sua visão
(ou tirando sarro, afinal, passados mais de trinta anos, dá
quase no mesmo) da jazz poetry praticada pelos beatniks – fonte
de inspiração confessa de Reed e Cale. A letra
(escrita por Reed) conta uma historinha de traição
extremamente cruel, irônica e de tom blasé, envolvendo
uma grande caixa postada no correio com um sujeito de boas intenções
dentro (o tal presente do título). John Cale é
quem "canta", lendo tudo com displicência e sotaque galês
pra lá de sacal. Com atenção, ouve-se até
suspiros de tédio entre algumas frases. Mais de oito
minutos de falação e instrumentos fazendo um bocado
de barulho ao fundo. É necessário ouvir a faixa
em um volume muito, muito alto para se sentir um pouco no clima
que a banda pretende. Mas o final da história é
qualquer coisa de irritante.
Lady
Godiva’s Operation
Aqui,
a sordidez humana, tão cara a Mr. Lou Reed, dá
novamente as caras. Imagino que cantar sobre as virtudes de
uma operação de mudança de sexo na vida
de um travesti, isso em 1968, não fosse lá muito
comum. O som marca registrada da Velvet bate ponto: estrutura
musical cíclica, repetitiva e minimalista, guitarras
arrulhando em meio a distorções e microfonias
melódicas, vocal tipicamente enfarado (a cargo de Sterling
Morrison), baixo marcado e uma aura junkie de amargar. Morrison
não sabia cantar, mas obviamente ninguém contou
isso a ele. A uma certa altura, a voz de Reed adentra o recinto
em tom autoritário – e uma nova menção
à enigmática luz branca ocorre.
Here
She Comes Now
A
música mais plácida e reconfortante do disco –
se é que tais adjetivos cabem em uma música do
Velvet. Melodiosa, sua letra que desenha belas imagens sem na
verdade dizer quase nada, parecendo ocultar algo eminentemente
maligno em seus versos cândidos. Dura pouco, mas é
peça fundamental no disco. Doce, a voz de Reed faz você
se perguntar: será que ela vem...?
I
Heard Her Call My Name
Caótica,
embalada e dissonante. É fácil imaginar os quatro
velvets enfurnados em um estúdio com seus óculos
escuros e suas jaquetas de couro pretas, mascando chicletes
e se divertindo ao ordenar ao produtor Tom Wilsom que mixasse
essa faixa do jeito mais horrendo possível. Inteiramente
acompanhada pela hipnótica batida primal de Mo Tucker,
vai evoluindo até se perder em meio a uma profusão
de guitarras chocando-se em sentido oposto, solos chinfrins,
WOO-HOOO, barulho, barulho, barulho...
Sister
Ray
"Dezessete
minutos de guitarras gritando em êxtase". Assim essa música
já foi descrita. Só me lamento por não
ter pensado nessa definição antes. As músicas
mais "normais" da Velvet têm estruturas convencionais
o suficiente para figurar em qualquer disco dos, digamos, Rolling
Stones. Claro que para isso teríamos que limar uma porção
de coisas: o barulho, a sujeira e a proposital falta de cuidado
na produção; os vocais demoníacos de Lou
Reed, uma das almas mais escrotas e perversas que o rock já
teve a sorte de cruzar; as letras pútridas que soam assustadoramente
verossímeis; o apego pela eperimentação
e estranamento; e, finalmente, a obstinação em
fazer história do modo mais pecaminoso e abjeto possível.
"Sister Ray" é algo demente, o equivalente rock’n’roll
a uma briga de facas travada entre inimigos mortais, uma jam
realizada em algum ponto em que Nova York conflui para o Inferno,
a mais perfeita trilha sonora para a formação
de um buraco negro, um órgão ganindo por
toda a eternidade em meio à distorção enquanto
as coisas dão errado e errado e errado, linhas vocais
perdidas e tortuosas bruxuleando no caos urbanóide, as
paredes se estreitando enquanto o suor goteja sobre os amplificadores,
os cabos e o concreto sujo de óleo de uma garagem imunda,
puro transe, a música colidindo com suas próprias
possibilidades, auto-destruindo-se em escombros cromados, provando
que dois mil anos de cultura não significam absolutamente
nada quando se entrega a um bando de marginais pretensiosos
alguns instrumentos musicais eletrificados. Essa música
tem algo indefinivelmente belo em sua feiúra – talvez
a perene lembrança de que o padrão adotado pela
vida não é ordenado, e sim monumentalmente caótico
e aleatório. Maravilhosa.
Quarenta
minutos e onze segundos depois do início do disco, você
se sente estranho: alguma verdade irrefutável lhe foi
apresentada e você não está certo de que
isso foi feito por meio de palavras ou mesmo o que pode ser
feito a respeito desse incômodo conhecimento. Minha suspeitas
recaem inteiramente sobre a tal luz branca.
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