Matérias
Antológicas
Fábio
Hernandez escreve mensalmente na melhor revista (talvez a única)
em circulação no país, na atualidade: a
VIP. Sua coluna, "O Homem Sincero" fica ali pelas últimas
páginas, perto da coluna bacana de Ailin Aleixo intitulada
"A Mulher Honesta". A revista reúne pautas geniais de
tão hilárias, ensaios fotográficos matadores
(sorry, mas é uma revista mais para homens do que, ahñ,
mulheres) e muita informação em primeira mão,
além de resenhas de filmes e cds por gente que conhece.
Mas a matéria antológica aqui é de Fábio
Hernadez. Por que? Leia, depois a gente conversa...
Marcelo Costa
Editor
Você
é apenas um menino
Será que algum dia os homens realmente crescem?
por Fabio Hernandez
Você
é um menino. Treze, catorze anos. Inseguro, tímido.
Começa a se interessar pelas mulheres. E não vai
demorar para perceber que mulheres e problemas aparecem juntos
em sua vida. Você não sabe lidar com o mundo novo
no qual está entrando. Sua voz está mudando. Os
pêlos estão aparecendo. O futebol já não
é seu único interesse. Aparecem os primeiros bailes.
Você não sabe direito que roupas escolher. As sugestões
de sua mãe lhe parecem horríveis. Mãe nunca
acerta na roupa do filho, uma lei tão velha e tão
eterna quanto as estrelas no céu e as ondas no mar. Ser
criança era muito mais fácil.
E
então você olha para os garotos um pouco mais velhos.
Eles estão nas classes um ou dois ou três anos
mais adiantadas que a sua. Seu olhar mistura admiração
e inveja. Eles parecem tão seguros. Tão confiantes.
Alguns ameaçam um bigode, uma barba. A voz já
está definida. E as meninas da sua classe estão
apaixonadas por eles, não por você. Eles são
mais altos que você. Eles são melhores que você.
Já devem até ter dormido com alguma menina. E
você jamais viu uma mulher nua que não fosse sua
mãe ou não estivesse numa revista. Eles se libertaram
daqueles programas sem graça com a família. Mas
seu dia chegará. Os dias hão de passar. Você
vai crescer e seus problemas desaparecerão. Você
será um homem firme, forte, como os caras mais velhos.
E
eis que você é como eles. Os caras maiores que
você via de longe. Você imaginava que sua vida seria
outra. Mas não foi bem assim. Você cresceu, sua
voz engrossou. Você até viaja sozinho, sem os pais,
com os amigos. A virgindade ficou para trás, mas você
já percebeu que o sexo não é o fenômeno
extraterrestre que você pensava ser antes de experimentá-lo.
É bom, às vezes muito bom, algumas vezes ótimo.
Mas não é coisa do outro mundo. A terra não
treme sempre ao fazer sexo, ao contrário do que você
sonhava. Você já é um homem. Ou quase um
homem. E pensava que a segurança máscula viesse
com o tempo, com a mesma naturalidade com que a terra se molha
quando vem a chuva. Mas não.
Seu
dia chegará.
E
então você olha para os homens feitos. Formados,
empregados. Alguns casados. Eles, sim, são os típicos
homens. Basta olhar para o andar seguro, o olhar firme. Eles
não têm dúvidas, não têm medos
como você. Os mais ricos têm carros chiques. Pagam
com cartão de crédito, e não com o dinheiro
pedido a seu pai, como você. Uns vestem gravatas que devem
valer duas mesadas suas. Alguns têm um cartão em
que estão escritos o nome e o cargo. Nada parece ser
capaz de abalá-los. Eles não sentem vontade, nas
noites mais escuras, de pedir um refúgio na cama dos
pais. Você sente, às vezes. Seja honesto: você
fez isso outro dia.
Seu
dia chegará. E chegou. Você se formou. Arrumou
um emprego promissor. Tem um cartão profissional. O carro
podia ser melhor, mas é bom. Tem ar-condicionado e som.
O namoro é firme. Deve terminar em casamento. Seu armário
tem até um blazer Armani que você comprou num momento
de entusiasmo e desvario. Mil reais. Você parece o cara
mais seguro do mundo, como todos os seus colegas e amigos. Mas
só parece. Lá dentro continua uma criança,
como todos os seus colegas e amigos. Todos disfarçam
bem. Todos aprenderam que ser homem é ser forte. Você
queria gritar socorro, mas não convém demonstrar
fraqueza. Você queria se abrigar no colo de seu pai, mas
ele já não está lá. E então
você ri, porque a vida é mesmo engraçada,
repleta de crianças fingindo-se de homens até
o último dos dias.
Memento
mori
Viva cada dia de
seu romance como se fosse o último
Uma
das vantagens de trabalhar na VIP é que a gente pode
ler as matérias antes que a revista chegue às
bancas. Li alguns artigos da série de "fracassos" masculinos.
Um, de um velho mas meio distante amigo, falava na primeira
demissão. E recomendava às pessoas que se comportassem
no trabalho com a lógica do samurai: cada dia pode ser
o último. Sem paranóia, sem desespero, sem pânico.
Apenas com realismo e serenidade. Quem está preparado
para as dificuldades sofre menos com elas. A gente pensa que
os problemas só acontecem com os outros. E quando os
vemos no nosso colo, sem que os esperássemos e muito
menos os desejássemos, nossa aflição é
enorme. Muitas vezes é maior que o próprio problema.
Ao
ler aquilo, decidi me atrever aqui ao crime de plágio.
Meu amigo haverá de me perdoar, quando menos por conta
dos velhos tempos, em que éramos camaradas de compartilhar
sonhos, desilusões e tudo o mais que grandes amigos dividem.
Pego a lógica do samurai da qual ele falou profissionalmente
e transporto para o mundo amoroso. Acho que os que amam deveriam
viver cada dia como se pudesse ser o último. Até
porque, como tudo, um dia isso vai mesmo acontecer. Ou porque
um dos dois vai se cansar do outro, ou porque ambos se cansarão
do caso, ou por morte, ou pelo que for. Nada é para sempre.
Vi
indicado na Superinteressante um livro com o estranho nome de
Memento Mori. Comprei e gostei muito. É de uma velha
e admirável escritora escocesa chamada Muriel Spark.
Memento mori, em latim, significa: lembre-se de que vai morrer.
O romance gira em torno de um grupo de anciões ingleses.
Uns deles recebem telefonemas anônimos em que é
dito simplesmente: "Lembre-se de que você vai morrer".
Memento mori. Um velhinho, ou uma velhinha, diz que essa reflexão
deveria ser feita diariamente por quem é jovem. Parece
mórbido, mas é exatamente o oposto. Quanto mais
se pensa na morte, quanto mais se medita sobre ela, menos aterrorizadora
ela nos parece. O santo tibetano Milarepa, outro dia citado
pelo Mantraman, morava em cavernas no Tibete sempre próximas
de cemitérios. O filósofo estóico Epicteto,
romano, recomendava nunca se afastar da idéia da morte
precisamente para tirar seu impacto em nosso cotidiano. O filósofo
preferido de meu tio Fábio, um homem sábio do
interior, Sêneca, também romano, escreveu que “morremos
mil vezes do medo de morrer”. Memento mori. Lembrarmo-nos de
que vamos morrer é um antídoto contra esse terror
de cada minuto. (Sei perfeitamente que o que estou escrevendo
soará bizarro no mundo de fantasia em que vivemos, em
que a idéia da morte é ingenuamente negada, em
cujos comerciais somos todos jovens, bonitos e saudáveis
sempre.)
Sábado
no supermercado
E
então volto ao campo das relações sentimentais.
Viver cada dia como se fosse o último vai fazer você
não deixar para dizer amanhã as coisas bonitas
que tem para dizer para ela. Vai fazê-lo dar um beijo
não automático nem monocórdio, mas intenso
e definitivo. Vai estimular um gesto de conciliação
depois de uma das tantas brigas sem sentido que travamos com
quem amamos. Vai conduzir você a uma floricultura para
comprar flores que há tanto tempo saíram do seu
decrescente repertório de gentilezas. Vai talvez levar
você até a ver com um certo encanto o ato de empurrar
um carrinho de supermercado no sábado de manhã
enquanto ela trata de enchê-lo lenta mas seguramente.
Viver cada dia como se fosse o último vai fazer você
dar o devido valor às pequenas coisas boas que juntos
os dois conquistaram e também o devido valor às
pequenas coisas ruins para as quais acabaram atribuindo um tamanho
desmedido. Talvez faça você viver um eterno verão
sentimental até que, e isso é inevitável,
gostemos ou não, surjam diante do casal os tempos frios
e cruéis do nunca mais, nunca mais, nunca mais.
Fabio
Hernandes escreve mensalmente na melhor revista em circulação
no país, na atualidade, a VIP.
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