Matérias Antológicas
"Como Se Portar na Cadeia"
por
Cipriano Boemia Foto: Marcelo Costa
O mocinho rebelde acaba atrás das grades, mas não dá mole. Continua
aquele durão, que apanha, apanha e no final consegue o respeito
de todos os fodões barra-pesada da prisão. E você lá no cinema,
emocionado com tamanha demonstração de rebeldia e virilidade.
Por mais invejoso que você esteja do herói, não o aconselho
a procurar motivos para ser vítima de "tal aventura". Mas caso
as circunstâncias te levem à esta situação, eis aqui nossa colaboração
para que você não chegue lá completamente despreparado.
1° - Interrogatório
Independente do crime que você tenha praticado - fumado um baseado
ou cometido latrocínio - você será interrogado. Nunca use frases
como: "Sô trabalhado, meu sinhô". Porque antes mesmo de completar
a frase, já terá perdido alguns dentes.
O mais importante em um interrogatório é não contar a verdade.
Se você mentir, o máximo que poderá te acontecer é apanhar da
polícia por mais algum tempo. Ao passo que se você disser a
verdade, vai apanhar da mesma forma da polícia, ser condenado
com certeza e o pior, vai ser desconsiderado pelos outros presos
e apanhar mais ainda.
2° - Na Carceragem
Após ser devidamente interrogado, você é encaminhado à carceragem,
ou seja, o pátio interno onde ficam as celas. Ali você é despido
(com todo o respeito) e suas vestes e possíveis esconderijos
de drogas ou armas em seu corpo são examinados minuciosamente.
Não encontrando nada de anormal, os carcereiros tratam de "guardar"
seus objetos pessoais.
Não é aconselhável você negar seu maço de cigarros, ou aquela
caneta paraguaia que você ganhou de sua tia. Os carcereiros
podem lhe ser muito úteis em sua estadia. Eles são seus anfitriões.
É a lei do mais forte e não adianta chorar. Essa lei é reconhecida
até pela Corregedoria da Polícia.
3° - Na Cela
Meu chapa, agora é que você vai descobrir os seus verdadeiros
valores. Ao chegar à porta da cela (também chamada de xadrez
ou simplesmente de "x"), você vai encarar no mínimo vinte pares
de olhos a te fitarem, com seus donos apertados em um espaço
construído para cinco pessoas. Você vai ser mais um para compartilhar
o espaço não existente ali.
Antes de entrar, faça de conta que o X é um templo japonês e
tire o sapato. Faz parte da higiene do recinto: o chão da cela
vai se tornar de agora em diante sua cama e sua mesa. Ao se
pronunciar, nunca se dirija a um preso em especial mas sim a
todos, pois são todos eles que estão te dando as boas vindas
e isso seria visto como ofensa por eles.
Nunca os chame de "moçada" e sim de "rapaziada", pois tratam-se
de rapazes e não de moças. Se algum deles te convidar para se
sentar a seu lado ou dividir seu canto, não aceite. Diga que
está bem de pé, e logo em seguida oferecerão um "canto" para
você. Ali você poderá dormir, e não no canto do primeiro que
te ofereceu, a menos que você seja fogoso e goste de ser bolinado.
Em seguida te oferecerão toalha e sabonete para você tomar banho.
Aceite. Neste ambiente, a limpeza é fundamental para todos.
"Malandro, porém limpinho". Antes de entrar no boi (banheiro),
pergunte se ninguém se "alimenta". Seria falta de educação fazer
uso do boi, que é separado do resto do recinto apenas por uma
cortina de papel, enquanto alguém estiver se alimentando.
Na cadeia fala "alimentar-se" e não "comer". Se você fala que
vai comer logo aparece alguém invocado para perguntar: "comer
quem?". E os presos não suportam pederastia, principalmente
depois de ter sido liberada a visita íntima. Ao alimentar-se
nunca arrote ou diga palavras indesejáveis a menos que queira
levar um bandeco (marmitex) na fuça.
Na hora de dormir, caia sempre na posição "valete" - deitado
do lado oposto aos dois outros que estarão ao seu lado. Nunca
deite de "anjinho", face a face com um dos outros. Você deverá
se deitar de costas e não se mexer caso contrário os outros
irão ocupando as folgas. E ai já era, você vai ter que passar
o resto da noite nessa posição. Não dá para voltar.
De resto, meu amigo, o segredo é um só. Ouvir muito e falar
pouco, e em pouco tempo você estará a par do rico dicionário
da cadeia e saberá decifrar palavras como: piolhagem (malícia
de malandro), prego (otário), frau (fajuto), marroquinho (pãozinho),
manta (pessoa não confiável), espianto (furto na cela), traíra
(traidor), coxinha (PM, pelo hábito de comer coxinhas em padarias
e não pagar), mona (travesti, homossexual) e muitas outras deste
lindo vocabulário.
E também vai aprender a se conter quando um carcereiro disser
que está muito abafado e gostaria de ter algum companheiro para
tomar uma breja bem gelada com ele no bar da frente. Ou que
ele marcou um encontro e vai comer aquela gostosa que estava
na fila da visita e você supõe tratar-se de sua namorada.
Agora, se você conseguiu ler este texto sem muita dificuldade,
já entra na cadeia com uma vantagem: saber ler e escrever pode
te render alguns "sangues de boi" (cigarros Hollywood, moeda
corrente no xadrez). Geralmente, no "barraco" saber ler e escrever
é coisa raríssima. Se souber desenhar, melhor ainda. Apesar
da cara feia, todo malandro gosta de enviar cartas enfeitadas
com florzinhas para sua amada.
Cipriano Boemia
Foi preso por um crime que não cometeu
Texto publicado na revista General número 1, Dezembro
de 1993
Nota do editor: A General rendeu 16 números em dois anos.
A primeira saiu em dezembro de 1993. Três meses antes, André
Forastieri se despedia do posto de editor da revista Bizz com
um editorial sonhador: ao falar do Sepultura (completíssimo,
anos antes do racha), capa da edição 98 da Bizz, Forasta resumia
a carreira da banda em elogios, finalizando com: "eles conseguiram
vencer sem abdicar da independência, ainda que o grupo hoje
(1992) esteja ligado a uma grande gravadora". E dava a deixa:
"Sigo o exemplo de independência deles, mas fazendo o caminho
inverso: deixo uma grande empresa e uma grande revista para
começar um novo projeto. Troco o melhor emprego que já tive
na vida pela maior aventura que um jornalista pode experimentar
no Brasil - montar seu próprio negócio".
Em dezembro, a General chegava às bancas com o mote "Música,
Cinema, Moda e Nenhuma Explicação" e textos fodaços como este
acima de Cipriano Boemia, "A Seca", que versava sobre a falta
de erva durante 25 dias em Floripa, Hunter S. Thompson por Álvaro
Pereira Júnior, Pedro Só colocando os Engenheiros do Hawaii
no alto do podium ao resenhar o disco "Filmes de Guerra,
Canções de Amor" ("É pena que muita gente só vai perceber
o valor desta galharda gaúcha quando a Marisa Monte resolver
gravar algumas destas pérolas", diz Pedro Só, ao enfileirar
elogios para canções como "Ando Só",
"Alivio Imediato" e "Quanto Vale a
Vida?"). Para o final, mais dois textos clássicos:
Carlos Eduardo Miranda, na sua coluna Brodagem, conta como inventou
o rock gaúcho. E a última página flagra o futuro: uma página
da revista General em 2020, com Madonna declarando: "Nunca fui
santa!", após recusar o prêmio Nobel da Paz...
A General durou 16 edições sendo que a última chegou as bancas
em dezembro de 1995, exatos dois anos após surgir. Cipriano
Boemia assinou vários outros textos para a revista, destacando
um manual de cabritar motos: "Como roubar motos", na General
2. Entre os textos antológicos ainda é possível destacar "Cyberdingo",
em que o Miranda faz uma junção de Cyberpunk com Mendigo para
criar o termo que designa o cara que "sabe se dar bem", mas
não só isso. É um manual. Este texto já foi republicado na versão
"on paper" do Scream & Yell, e qualquer dia aparece por aqui.
E muitos outros. O fato é que a General deixou saudade, muita.
Numa definição tosca, mas totalmente verdadeira, a General foi
a TV Pirata do jornalismo brasileiro. Dia desses estávamos eu
e dois amigos relembrando textos da revista. Num desses papos,
lembramos deste "Como se portar na cadeia", um texto antológico,
que ressurge aqui e deixa a dica: vasculhe sebos, a General
vale a pena. A propósito, a dupla responsável pela General,
André Forastieri e Rogério de Campos, hoje em dia comanda
a Conrad Editora. Marcelo Costa - 12/07/2005
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