Leia a seguir trechos do diário
do escritor beat William Bourroughs, morto no último dia 2 de agosto:
*Sábado, 3 de maio de 1997.
O
caviar chegou. Sabe, filho, quando o sujeito se vicia em caviar
Beluga, não há nada que não fará
para satisfazer a fome de caviar que o consome.
Ele
pode mentir, trapacear, pode até matar para conseguir
uma porção. Pode chegar ao ponto em que nem humano
é mais. Apenas um veículo para a vil prostituta
troiana russa, oferecendo seu produto mortífero.
Posso
imaginar alguém indo à falência de tanto
comprar o melhor Beluga. Um dia ele chega a sua casa e sua filha
de 15 anos e outros adolescentes estão comendo seu Beluga,
acompanhado de milk-shake.
"Venha
se juntar à festa, pai." Ela ergue o vidro vazio. "Chegou
tarde." Ele seria capaz de matar todos, se não tivesse
caído morto pela "Falta de Caviar na Hora Certa".
*
Segunda, 5 de maio.
Allen
morreu no dia 5 de abril de 1997.
Is it not time to
Dance and sing
While the bell of
Death do ring?
Turn on the toe
Sing out "Hey Nanny Noo".
*
Segunda, 12 de maio.
Lembro
no sonho que eu era jovem, com a vida toda à minha frente,
em 1890, cidade pequena, cheia de gente simpática.
Gente simpática e ignorante. Eu não
estava com pressa nenhuma. Dólares de prata chacoalhando
no meu jeans. Na época em que um dólar comprava
um banquete.
Acompanhado
de um vinho francês da melhor safra e, é claro,
do melhor caviar Beluga. Ou então você podia pagar
uma boa transa. Qualquer tamanho, raça ou cor.
Então,
onde foi que erramos? Acho que o erro sempre esteve ali. ''Segurança,
a máscara amigável da transformação.
Para a qual sorrimos, sem vermos o que sorri por trás
dela.'' (Edwin Arlington Robinson)
Sinto-me
frio e envelhecido. Sinto-me como Teiresias, morto há
15 dias, e as ondas desnudando seus ossos em sussurros _aquelas
velhas, velhas palavras. Tantas cenas terríveis com _esqueça,
desative, deixe pra lá, é apenas sua memória
agora, remova-a. Você tem o poder de fazê-lo.
*
Sábado, 24 de maio.
Dia
legal a quarta-feira com a banda ME TOO (U2) em Kansas City.
Gosto dessas apresentações públicas _como
injeções de boa vontade recíproca sincera.
I'll go right back where
the bullets fly and
stay on the cow
until I die.
Aqui
eu desabo, rindo. Tentando pensar numa leitura realmente nova
que consiga transmitir quem sou e por que estou aqui. Tenho
que fazer isso.
Começamos
com a grande e feia mentira americana. Allen Ginsberg, segundo
George Will, construiu sua carreira a partir das disfunções
da Sociedade Americana.
Allen
roeu um furo na Mentira; foi dele o Uivo ouvido no mundo todo,
da Cidade do México até Pequim, o Uivo da juventude
distorcida, sufocada.
A
influência mundial de Allen foi algo sem precedentes.
Ele, com a coragem de sua sinceridade total, encantou e desarmou
as selvagens Feras da Fraternidade Estudantil.
*
Domingo, 25 de maio.
Todos
os governos são erguidos sobre mentiras. Todas as organizações
são erguidas sobre mentiras. As mentiras podem ser inofensivas,
como a mentira da droga milagrosa, a metadona, que supostamente
remove o desejo de heroína (claro, como o gim alivia
a necessidade de uísque).
A
droga surgiu em meio a mentiras explicadas a mim por um dos
primeiros médicos.
A
metadona é a primeira síntese bem-sucedida da
molécula de morfina. Em Tânger, tive um hábito
de dois anos de metadona injetável que era droga pura.
Quem
são os malucos antidrogas? De onde vêm?
Fato:
a cannabis é uma das melhores drogas para combater a
náusea, aumenta o apetite e o bem-estar.
Também
estimula os centros visuais cerebrais. Já tive tantas
imagens ótimas conseguidas com cannabis. Na minha época
de saladas, eu usava só ela, e que realizações
consegui! (''E que acasalamentos!'', como exclamou um crítico
francês admirado.)
Algumas
tragadas na teta verde e consigo enxergar múltiplas saídas
e caminhos. Então por que tanta repressão a essa
substância inofensiva e prazerosa?
Quem
é você, para quem a verdade é tão
perigosa? O que é a verdade? Algo imediatamente percebido
como sendo a verdade.
Allen
abriu rombos na Grande Mentira, não apenas com sua poesia,
mas com sua presença, sua verdade espiritual auto-evidente.
Últimas
palavras ''dois a cinco meses, os médicos disseram'',
disse Allen, ''mas eu acho que vai ser muito menos''.
Depois ele me disse: ''Achei que ficaria apavorado,
mas estou totalmente feliz!''. Suas últimas palavras
a mim. Eu me recordo de falar com ele pelo telefone antes do
diagnóstico fatal, e já estava ali em sua voz
_distante, fraca. Então eu soube.
*
Segunda, 26 de maio.
A
busca da resposta final _o Santo Graal, a Pedra Filosofal. Uma
miragem que se distancia. De qualquer modo, quem quer uma resposta
final?
Perguntei a um físico japonês: ''Você
realmente quer conhecer o segredo do universo?''. Ele disse:
''Sim''. Pensei que uma pequena fração desse segredo
seria o suficiente para fazer você subir pela parede.
Quanto a mim, só quero saber o que preciso saber para
fazer o que preciso fazer. ''Sou apenas um Sargento Técnico.''
Será
que quero saber? Já tentei psicanálise, ioga,
o método de posturas de Alexander, fiz um seminário
com Robert Monroe, fiz viagens para fora do corpo, Cientologia
e saunas indígenas.
Procurando
uma resposta? Por quê? Você quer saber o segredo?
Nada disso. Tudo está no que não está feito.
Onde estão a cavalaria, a nave espacial,
o esquadrão de resgate? Fomos abandonados aqui neste
planeta governado por filhos da puta mentirosos, de poder cerebral
modesto. Sem sentido. Nem uma minúscula fração
de boas intenções. Filhos da puta mentirosos.
*
Sexta, 30 de maio.
Uma
revisão da vida não é um relato ordenado,
da concepção até a morte. São fragmentos
daqui e dali. Um telefonema. Um recado, meus óculos estão
prontos. ''O senhor pode se sentir bastante bem com codeína.''
Um
comentário: ''Ele parece um cão matador de ovelhas''.
Dito a meu respeito por Pollet Elvins, pai de Kells, que, mais
tarde, enlouqueceu de paresia.
*
Sábado, 31 de maio.
Sobre
seu rosto, uma sucessão de imagens da história
do homem do século 20. A Segunda Guerra Mundial, a chegada
à Lua. Burroughs com um terno negro e um chapéu.
Uma figura sinistra.
Pouco
antes de sua morte, dizia adorar apenas os gatos que circulavam
por sua casa e pensava profundamente sobre caviar.
Sentia
horror por uma sociedade que criava estado policial para controlar
o desejo de fumar um cigarro no trabalho, bar e restaurante.
Duvidava da qualidade de vida. Tinha fé apenas em si
mesmo.
Aquele
réptil asqueroso Gingrich, dedo-duro do Congresso, anda
falando imbecilidades sobre uma América livre de drogas
até o ano 2001. Perspectiva deprimente!
É
claro que não estão incluídos álcool
e cigarros, cujo consumo vai aumentar vertiginosamente. Como
se pode ter um Estado livre de drogas? Simples. Uma operação
pode remover os receptores de drogas do cérebro.
Quem
se recusar a fazer a cirurgia será privado de todos os
seus direitos. Eles não vão poder alugar casa,
os restaurantes e bares vão se negar a atendê-los.
Não terão passaporte, nem benefícios sociais,
nem cobertura médica, nem direito de comprar armas de
fogo.
Como
odeio os que se dedicam a gerar conformismo. Com que objetivo?
Imagine a banalidade estéril de uma América livre
de drogas.
Nada
de drogados, apenas bons e decentes americanos de vida limpa,
de uma costa brilhante à outra. Toda a área da
dissensão extirpada, como um furúnculo.
Nada
de favelas. Nada de regiões de operações
clandestinas vagas. Nada de nada. Ali fora, nas ruas impiedosas
do meio-dia. Nada de cartas.
Até
que ponto será bom ter conformismo total? Que lugar vai
sobrar para a singularidade? E a personalidade? E você
e eu?
*
Quarta, 4 de junho.
''J'aime
ces types vicieux, qu'ici montrent la bite.'' Gosto dos tipos
sacanas que mostram o pau aqui. Anônimo, num mictório
de Paris.
''Não
é ótimo cantar e dançar enquanto os sinos
da morte tocam e giram na ponta dos pés e cantar 'Hey
Nanny Noo'.'' Sim, amo a vida em toda sua diversidade, mas enfim
o sino toca, assinalando a chegada da noite.
*
Sexta, 6 de junho.
Fico
imaginando qual será o futuro do romance ou de qualquer
forma de escrita. Depois de Conrad, Rimbaud, Genet, Beckett,
Saint-John Perse, Kafka, James Joyce, Paul Bowles e Jane Bowles.
Com
Paul, havia uma escuridão sinistra, como um filme sub-revelado.
Com Jane? Como seus personagens se movem?
É especial demais para formular em palavras.
O que resta a ser dito? Ah, esqueci-me de Graham Greene. Talvez
houvesse justamente aquele tanto de ''sumo'', como Hemingway
costumava dizer, mas não o suficiente para uní-lo
a Joyce e aos poucos eleitos.
Faltou
um pouquinho. Ele se matou de vaidade e auto-inflação,
e aí o balão se rompeu. Ele sabia que estava acabado.
''A coisa não vem mais.'' Ele não estava mais
ali, simplesmente.
Voltando
à literatura. Talvez não haja mais nada a dizer.
Conrad disse muito do que havia a se dizer em ''Under Western
Eyes'' e ''Lord Jim'', e Genet o disse na costa espanhola.
Posso
sentir sua fome, descendo ao lado do cais onde o pescador às
vezes lhe atirava um peixe, que ele assava sobre uma fogueira
de gravetos e comia sem sal.
Para
que continuar? ''O bonde descreveu uma curva larga em 'u' e
parou; era o fim da linha.'' Paul Bowles no final de ''Sheltering
Sky''. Céu. Não consigo nem mesmo escrever a palavra
céu. Acho que sinto _para que continuar?
*
Sexta, 1º de agosto.
Amor?
O que é? O analgésico mais natural. O que há.
AMOR.
Tradução
Clara Allain
O
príncipe negro da literatura sobrevive
de Marcelo Rezende
Para
sempre, como uma condenação, um viciado. De William
. Burroughs, o romancista, ator, pintor, panfletário
e poeta, morto no último dia 2 de agosto, aos 83 anos,
a mídia de língua inglesa se lembrará assim.
No
lugar do aventureiro, o heroinômano. Ocupando o espaço
do cultor da prosa experimental, "reinventor" da ficção
científica e herdeiro exaltado do surrealismo, o consumidor
compulsivo de haxixe no Marrocos, de cannabis no México
ou de anfetamina na ensolarada _para ele quase nunca a luz_
costa da Califórnia.
''Junky''
("Drogado") é então menos um romance, um relato
e uma memória, mas, antes, uma carta de intenções
de quem, pelas escolhas da prosa e da vida, tem a extrema pretensão
de não caber no Ocidente.
O
ano é 1953, em uma década de grandes acontecimentos.
Burroughs já havia matado sua mulher com um tiro, alegando
ter sido um acidente infeliz. Morre também, com o caso,
os restos de sua heterossexualidade relutante. Até o
fim, amará apenas meninos.
O
livro é então caçado e proibido, pois a
ninguém interessa a história de um homem que rouba,
mente e ataca em nome do vício para, no final, aprender
ser a vida o acúmulo de casos sem sentido, decretando
que uma moral só é possível em fábulas
infantis.
Não
é um gênio. Não é o melhor nem mesmo
o único. Seguem seu rastro o poeta Allen Ginsberg (1926-1997)
e o romancista Jack Kerouac (1922-1969). São a ''beat
generation'' e estão infelizes com os EUA da opulência
do pós-guerra e da idéia de uma vida correta.
Um desconforto que pretende oferecer alternativas aos que não
se ajustam aos bons costumes.
Mas
tudo se dissolve nos anos 60. Há agora contracultura,
Beatles, maio de 68 e LSD. Ele sabe que não dará
certo. É impossível, parece-lhe. O mundo está
condenado ao inferno da ditadura infeliz da classe média,
ou do totalitarismo, pensa em Paris, Londres ou na selva latino-americana.
Prevê
doenças assassinas. Espera o dia em que os governos possam
controlar a mente de seus cidadãos, pois para Burroughs
a linguagem é um vírus.
Passa
então dias errando pelo deserto com uma espingarda, atirando
para o alto. Burroughs, o paranóico. O ''Noam Chomsky
do submundo''. O admirado e pouco lido ''príncipe negro''
da literatura norte-americana.
Mas
sobrevive. Atravessa as décadas e assiste a um show de
oportunismo com seu nome. Escreverá ''The Western Lands''
(1987), outra obra máxima após ''Almoço
Nu'' (1959), e outras tantas, sempre lançadas em silêncio,
seguirão depois.
É fotografado ao lado de bandas de rock,
cantores de rap, cineastas e artistas performáticos.
Sorri para a imprensa e ensina aos novatos a arte da dissimulação.
Aparece na TV de seu país em um comercial para uma marca
japonesa de tênis. A frase, na tela, é profética:
''Eu acredito em alta tecnologia''.
Sobre
seu rosto, uma sucessão de imagens da história
do homem no século 20. A Segunda Guerra Mundial, a chegada
à Lua. Burroughs com um terno negro e um chapéu.
Uma figura sinistra.
Pouco
antes da morte, dizia adorar apenas os gatos que circulavam
por sua casa e pensava profundamente sobre caviar.
Sentia horror por uma sociedade que criava estado
policial para controlar o desejo de fumar um cigarro no trabalho,
bar e restaurante. Duvidava da qualidade da vida. Tinha fé
apenas em si mesmo.
Textos
publicados no caderno Ilustrada do jornal Folha de São
Paulo do dia 29 de agosto de 1997
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