Este
ano eu fiz duas compras importantes. As duas, pela primeira
vez na minha vida. As duas, essenciais para minha existência
como residente de Los Angeles. Comprei um carro. E um toca-CD
para carro.
O
carro é o Bakana: essa é a placa dele. Eu queria
que fosse Bacana. A moça no balcão do Automóvel
Clube me fez soletrar duas vezes, jurar que não era palavrão.
Depois me deu a má notícia: bacana, com c, já
existia um na Califórnia, em San Francisco. Essa diáspora
brasileira. Quando saiu da fábrica, em 1994, ele era
simplesmente um Acura Integra GS-R branco que eu dirigia um
tanto cautelosa, num esquema de lease. Agora é meu, é
o Bakana, exatamente do meu tamanho, exatamente como eu gosto
e preciso: pequeno, veloz, potente, nervoso. E com uma acústica
perfeita.
O
que me levou à segunda compra, a minha, digamos assim,
bandeira territorial: um toca-CD Alpine para seis discos. Essa
é a cápsula de descompressão da vida no
sul da Califórnia, onde se pode dirigir por 5 mil milhas
e não sair de Los Angeles, onde tudo fica pelo menos
a 20 minutos (se o trânsito ajudar) de distância
e onde não é possível honrar mais que dois
compromissos por dia útil. Mas esse é o modo pessimista,
copo-meio-vazio, de encarar essa experiência tão
integralmente americana. O outro modo é assim: o teto
solar retraído, o azul do céu da Califórnia
sobre a cabeça, o sol indo para o Japão, lá
no Pacífico prateado depois das montanhas de Santa Mônica,
cheiro de laranja no ar, o horizonte infinito do Vale de São
Fernando sob as rodas. Michael Stipe canta: "Se você quiser
voar/Mulholland Drive/suspensa no céu/vá à
beirada do despenhadeiro e olhe lá para baixo/Não
tenha medo/Você está vivo."
Você
está vivo e dirigindo em Mulholland Drive. O carro é
seu desenho no espaço, sua nave urbana, seu país
pessoal numa nação de individualistas, numa cidade
de Babel. Se eu não pudesse negociar a estrada eu não
poderia viver em Los Angeles. Se eu não tivesse a minha
música eu não poderia negociar a estrada. Gosto
desse paradoxo. Gosto de não ter de ouvir música
porque tenho que ouvir música, mas ouvir música
porque sem ela não consigo conceber a própria
vida, porque a música é a própria vida,
em código. Essa liberdade estrepitosa me deixa ouvir
coisas sem ordem e sem nexo, sem ganchos e sem pautas, sem datas
e sem gavetas. Nada é moderno, nada é antigo,
tudo existe em perfeita harmonia no país ambulante do
Bakana. É o zen de LA: nirvana pelo preço de um
tanque de gasolina.
Como
no meu Alpine só cabem seis discos por vez, tenho de
exercer uma disciplina razoavelmente férrea: o oceano
da minha discoteca abarrotada não cabe aqui. Imaginei
uma fórmula: um disco novo, um disco antigo, um disco
world (aliás, detesto a classificação -
para mim é só um truque para me remover do eixo
pop anglo-saxão), um disco do R.E.M., um disco para ouvir
de manhã, um disco para ouvir de noite. Mais ou menos.
Por aí. Agora que o outono termina e a Califórnia
fica mais linda do que nunca - para inveja de todo o resto do
país, sepultado sob o gelo do inverno prematuro - estes
são os discos que eu tenho ouvido:
Hapa/Hapa (The Coconut Grove Recording Company)
Um
cineasta metido a moderninho uma vez me disse, numa entrevista,
que poucas coisas mereciam mais o seu desprezo do que a língua
havaiana. "Você pode imaginar uma língua assim?
Eles só tem vogais! É uma língua para débeis
mentais!". Eu, da minha parte, acho que uma língua
que tem sete palavras diferentes para "alga", uma dezena para
"onda do mar" e mais de uma dúzia de permutações
para "dia de sol" é a expressão refinada de uma
cultura que tem todas as suas prioridades no lugar. Os Estados
Unidos - por meio, entre outros, da família Dole, de
latifundiários do abacaxi - entraram no arquipélago
havaiano há um século, atropelando tudo o que
de bom e sofisticado e profundo as ilhas ofereciam e plantando
arranha-céus, freeways e bases militares em seu lugar.
Mas a alma continua lá, porque a alma é milenar
e inteligente e fala uma língua com vogais ternas que
caem bem num ouvido brasileiro: eu, por mim, acho lilikoi mais
doce que maracujá e aloha quase tão complicado
quanto saudade.
Meu
caso de amor com o Havaí também é quase
tão complicado quanto ambas, aloha e saudade. Numa tradução
muito livre de uma expressão local, eu deixei meu coração
enterrado debaixo das folhas da bananeira. Eu sei até
onde. O Hapa é uma dupla de havaianos nativos - Barry
Flanagan e Keli'i Kaneali'i. Tocam um violão riquíssimo
e cantam na língua dos antigos. Entendo quase nada das
letras, mas entendo tudo da música: há uma pureza
absoluta aqui que vem de fontes subterrâneas, de um outro
mundo, um mundo sonhado, imaginado. Existe uma determinada série
de notas que Barry tira do violão em Olinda Road que,
não importa quantas vezes eu escute, sempre me traz lágrimas
aos olhos. Como os arranjos de cordas de Tom Jobim: saudade
do que não se sabia que fazia falta.
The Divine Comedy/Liberation (Setanta)
Uma
das vantagens desta minha geração pós-anos
60 é que o tal conflito de gerações, pelo
menos no que se refere à música, não existe
mais. Existe diferença de gosto, mas isso é outra
coisa. A música que meu filho Bernardo ouve e a que eu
ouço é, em essência, a mesma - os detalhes
é que mudam. Já a música de meus pais -
o swing, o bolero, o samba-canção - eu só
fui compreender depois de negar, depois do dilúvio rock-and-roll,
quando afinal se chegou ao Ararat nas águas baixas dos
anos 70, quando tudo, exausto, confluía.
Bernardo
me apresentou Neal Hannon, que se esconde atrás do nome
Divine Comedy. Hannon, para simplificar, é um gênio.
Quando, em 1993, compôs, arranjou, produziu e interpretou
(tocando quase todos os instrumentos, inclusive um cravo bem-temperado)
esse disco de estréia, Hannon - inglês, filho de
um pastor protestante, me contam - tinha recém-completado
21 anos. Um desses jornais ingleses para quem as décadas
duram seis meses chamou o disco de "a maior estréia dos
anos 90" e disse que Hannon "é os Pet Shop Boys se eles
fossem contemporâneos de Mozart".
Hannon
é mais cool e mais interessante que os dois epítetos
- ele é essa ave rara, o cultor pop erudito, mais interessado
na vertente obscura que passa por Syd Barrett, Tim Buckley,
Jacques Brel e Scott Walker (e os Beatles de Penny Lane,
For No One, Strawberry Fields) do que nas guitarradas. De
seus três discos este é meu quindim - pelo cravo,
pelo frescor das cançonetas como Your Daddy's Car
e sobretudo por uma adorável adaptação
de um longo e difícil poema de William Wordsworth, Lucy.
Musicar
textos literários é tarefa que já derrubou
muitos dos nossos melhores, devastados entre intimidação
e arrogância. Hannon, contudo, não é um
estranho no ninho - em seu segundo disco, Promenade, ele incluiu
uma música que contém apenas os nomes de seus
escritores favoritos; o terceiro, Casanova, se baseia
nos textos do libertino veneziano. A música de Hannon
abre o texto de dentro para fora, como o amor do aficionado
- e quando sua bela voz canta que Lucy era "bela como uma estrela/quando
apenas uma brilha no céu" sua arte faz uma elegante reverência
contemporânea à arte de Wordsworth.
Wasis Diop/No Sant (Mercury France)
Meu
departamento world tem uma tendência a preferir música
brasileira e até recentemente andava habitado pelo novo
disco dos Paralamas (nota do editor - Nove Luas, na época),
que eu adoro. Mas eis que achei, na Virgin Megastore de Sunset
Boulevard, o CD de uma fita que eu havia comprado em Paris havia
quase um ano e não consegui resistir à voz de
estanho do senegalês Wasis Diop. É algo para o
qual eu dou espaço a qualquer momento. Descobri Wasis
- compositor, arranjador, cantor - por meio da trilha de um
filme, um bom filme, aliás, uma co-produção
franco-senegalesa chamada Hyenes (que, por sua vez, era
uma adaptação da peça A Visita da Velha
Senhora) e desde então ando como doida, pelas lojas
de discos do mundo à cata de mais coisas dele.
No
Sant, gravado em Paris (onde Wasis vive) com uma constelação
internacional de músicos, é seu disco mais recente
- no meu ouvido, bate como uma resposta há muito tempo
esperada aos Paul Simons e Peter Gabriels da vida (e olha que
eu gosto de ambos), o fino bordado acima das fronteiras, traçado
do Sul para o Norte, pelo avesso da mão do império.
Não entendo patavina do que a extraordionária
voz de Wasis canta - ele grava apenas no dialeto materno, com
uma única frase em francês para definir o príncipe
destronado de Issa Thiaw, que se tornou "champion de lutte senegalaise"
-, mas sei que ele fala de desejo, de iluminação,
da possibildiade da redenção.
São
dez faixas cintilantes e é difícil apontar favoritas,
mas a última, Le Voyageur, é de matar Peter
Gabriel de inveja: camada após camada de fina seda musical,
começando pela gaita de foles de Loik Tallebrest e culminando
com a cantora de ópera japonesa Kaoru. O mundo fica pequeno
visto pelas janelas do Bakana.
Massive Attack/Blue Lines (Wild Bunch/Virgin)
Poucas
coisas poderiam me fazer mais feliz que a volta de Londres ao
posto de Capital do Mundo Ocidental. Meus antepassados que me
perdoem, mas Londres é minha cidade européia favorita,
um lugar repleto de profundos laços emocionais, que já
me faria sorrir se tivesse apenas as calçadas, museus
e parques que tem, mas, ainda por cima, cisma em se enroscar
na minha vida, na minha memória afetiva, na minha coleção
de referências pessoais.
Por
exemplo: antes de o britpop sacramentar a aclamação
de Londres como metrópole indispensável do fim
do século, os ingleses já haviam reinventado o
soul. Como é possível não se derreter de
ternura diante desse gesto? Considerando que a América,
enquanto isso, deixava suas pérolas aos porcos de um
rap repetitivo e boçal - como não se deixar levar
por delírios de gratidão diante de mais essa operação
de busca & salvamento, como a do rock-and-roll nos anos
50/60, do blues nos anos 60/70, do rock-and-roll de novo nos
anos 70/80?
Mesmo
com todas as suas colagens eletrônicas, todos os seus
raps suaves e sensuais, a música do Massive Attack é,
essencialmente, soul: aquilo que acontece quando uma sociedade
predominantemente branca se torna multicolorida, com o preço
que se paga e o tempero que se adquire. Dos dois discos do trio
- e seus muitos e brilhantes agregados, dos quais o mais ilustre
é Tricky, mas a minha favorita é Shara Nelson
- tenho carinho especial por este, mais antigo, o da estréia,
velho de cinco anos - pela surpresa que trouxe consigo, pela
clareira que abriu num ano barulhento e difícil. E, que
mais não seja, pela presença de uma consumada
obra-prima pop, Unifinished Sympathy.
Michel Legrand/Erik Satie: Oeuvres pour Piano (Erato)
Na
minha idade avançada, e graças à falta
de preconceito dos californianos, eu redescobri o balé.
Não como platéia, que isso eu nunca deixei de
ser como praticante. Hoje, à força de três
a quatro aulas por semana, estou no meu segundo par de sapatilhas
de ponta e não troco minhas horas de barra, chão
e centro por nenhuma aeróbica do mundo. Não é
que balé seja difícil: é, como todo bailarino
sabe, impossivelmente difícil. É empurrar corpo
e mente até o limite e depois ir mais além - e
sorrindo. É uma grande metáfora para a vida, uma
meditação ambulante: achar o centro, estender
a linha, perceber de onde vem o equilíbrio, desafiar
a si mesmo, manter-se alerta, manter-se flexível. É
disciplina e transcendência, em um único, grande
gesto.
E
música também. Não o baticum da aeróbica,
feito para ser ignorado, mas música para ser absorvida
como oxigênio, para ser pensada. Uma vez, numa aula, minha
professora favorita, Janet Edmunds, corografou um exercício
de adágio ao som da leve Gymnopédie de
Erik Satie e ganhou minha gratidão eterna: ela me fez
lembrar quanto eu adoro as Gymnopédies e quanto
Satie, com sua ironia, sua sutileza, seu humor, me reconciliou
com o piano, um instrumento pelo qual não tenho, exatamente,
predileção.
Achei
essa coleção extraordinária do creme de
Satie por Legrand - não apenas todas as Gymnopédies,
mas também as Avant-Dernieres Pensées e
Jack in the Box - por bom preço numa bancada de
saldos em Paris e, volta e meia, ela aterrissa no Bakana como
minha opção de fé para pequena música
noturna - coisa essencial no outono, quando o sol se põe,
um delírio de rosas e púrpuras, às quatro
e meia da tarde.
R.E.M. /New Adventures in Hi Fi (Warner)
Vá
se saber por que eu tenho essa obsessão com o R.E.M.
Mas a verdade é que, fora os Beatles, eles são
a única banda da qual amo, exatamente, tudo. Ouso dizer
que o R.E.M. é, para mim, a banda mais importante dos
Estados Unidos nas últimas décadas - sim, eu sei
que você está pensando no Nirvana, e eu adoro o
Nirvana, mas o Nirvana foi uma faísca, enquanto o R.E.M.
é uma fogueira, e eu, particularmente, estou mais interessada
no desafio da sobrevivência e da longevidade do que na
saída fácil da vida breve e fulminante.
Um
amigo me contou que "os fãs" estão devolvendo
este disco aos baldes às lojas. Coitados. Dos fãs,
eu digo. Será que mais uma geração caiu
nas garras da arteriosclerose do "classic rock", cujo sintoma
mais grave é essa mania de ouvir apenas o que já
foi ouvido antes, e sempre cobrar de seus artistas favoritos
que eles não mudem nunca?
Eu,
por mim, recomendo a qualquer um - de 16, 21, 30, 45, 55 anos
- que, ao menos uma vez por semana, escute algo que jamais pensaria
escutar. E, certamente, algo que fuja dos padrões daquilo
que as gravadoras determinaram ser "apropriado" para sua faixa
etária - um ouvinte de 16 anos tem tanto a se beneficiar
com uma audição de A Nod Is as Good as a Wink,
dos Faces, quanto um de 55 do disco do Kula Shaker. É
um santo remédio, o equivalente a uma corrida no calçadão,
uma hora de malhação, uma partida de basquete:
o suficiente para manter os ouvidos flexíveis, o cérebro
desentupido, o coração palpitante e prevenir a
instalação - muitas vezes precoce - do reumatismo
estupidificante do classic rock.
Das
muitas coisas de que gosto nesse novo disco do R.E.M. a sensação
de imediatismo, de flagrante, de idéias em movimento,
é algo que me interessa particularmente. Gosto das novas
texturas da música do R.E.M., mais angulosas e ácidas,
especialmente a partir de Monster. E, desde que Michael
Stipe resolveu começar a escrever coisa com coisa, ele
tem ficado muito mais interessante. Quando ele diz, ao descrever
uma discussão entre namorados, em New Test Leper,
que permaneceu "calado durante cinco comerciais/sem mais nada
a dizer", todos nós sabemos exatamente do que ele está
falando.
Electrolite,
a canção sobre Mulholland Drive, é a derradeira
faixa de Hi Fi. Difícil ouvir uma vez só:
como Michael, eu também tenho meus dias de Jimmy Dean,
Martin Sheen, Steve McQueen, Hollywood a meus pés, o
céu da Califórnia sobre minha cabeça.
Ana Maria
Bahiana é jornalista e escritora.
Matéria
publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, em dezembro
de 1996
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