Matérias Antológicas

Toda semana, nossa colunista quase francesa, Flávia Ballvé-B, me manda a coluna que o jornalista Arthur Dapieve publica no jornal "O Globo". Dapieve sempre surge com algum texto emocionado e cativante. Nas duas últimas semanas não foi diferente. Em um texto o jornalista usava um show de Frejat para declarar a reafirmação da vida. No outro, manda avisar que vai alagar de lágrimas a Praça da Apoteose se Roger Waters tocar "Wish You Were Here". E os dois são... antológicos.

Marcelo Costa
Editor S&Y




Rock de Repertório
por Arthur Dapieve
especial para O GLOBO

Duas semanas atrás, estava eu assistindo ao show do Frejat no Canecão quando fui tomado por um certo desconforto existencial. Tá certo, sou o tipo de sujeito tomado por angústias até na hora de comer pizza no domingo à noite, mas pressenti que ali havia um tema. Porque, tanto quanto declarar o patrimônio construído no Barão Vermelho e em seu excelente disco solo, "Amor pra recomeçar", o cantor e guitarrista começou a enfileirar composições e mais composições de gente que partiu dessa para a melhor: todo o Cazuza que houver nessa vida, muitos deles associados a Cássia Eller, uma de suas melhores intérpretes; "Perdidos na selva", de Júlio Barroso; "Ainda é cedo", de Renato Russo; "A praieira", de Chico Science; e "Juízo final", de Nelson Cavaquinho.

Na hora de dar sua bela versão para este samba apocalíptico, Frejat não teve de ouvir - felizmente, porque estava com fone de retorno no ouvido - alguns energúmenos gritando por "rock'n'roll". Como se a obra-prima de Cavaquinho e de Élcio Soares não fosse uma das coisas mais "rock'n'roll", lato sensu, jamais escritas no Brasil: "O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente". (A Legião Urbana, aliás, chegou a gravar "Juízo final", quase incluída em "Dois".) No espetáculo, Frejat cantava também músicas de sobreviventes: "Uns dias", de Herbert Vianna; "Amor, meu grande amor", de Angela RoRo; "Malandragem dá um tempo", celebrizada por Bezerra da Silva.

Saí do show com aquela sensação woody-alleniana de "Cazuza morreu, Renato e Cássia também e eu, contemporâneo deles, não estou me sentindo muito bem". Entretanto, essa consciência da fragilidade da vida vinha misturada com um 
certo orgulho pelos anos decorridos, por ter vivido para testemunhar aquilo tudo, aquele museu de grandes novidades (no bom sentido), a criação daqueles corpos de obra em primeira mão. Semana passada, encontrei Frejat na platéia do show de Arnaldo Brandão (por sinal, parceiro de Cazuza em "O tempo não pára") e sua nova banda, o Plano D, no Ballroom. Fui cumprimentar o gentleman pela apresentação no Canecão e brinquei com ele: "Rapaz, quanta música de gente morta..." Ele riu e matou a charada: "Mas é num clima pra cima!"

Depois da abertura a cargo do saboroso power-pop da banda Leela, foi a vez de Brandão apresentar - além de suas novas tabelinhas com o poeta Tavinho Paes, como as fulgurantes "Alicinha", "Amém" e "Babalux" - sua produção com variados parceiros em 30 anos de vida profissional: além de "O tempo não pára", "Noite do prazer", "Totalmente demais" e "Blá, blá, blá... Eu te amo". Então lembrei-me de outro sobrevivente, Alvin L. Meses atrás, quando escrevi saudando o lançamento antes-tardio-do-que-nunca dos primeiros quatro álbuns do Capital Inicial em CD (alvíssaras: o mesmo aconteceu com o Biquíni Cavadão, o que inclui o subestimado "A era da incerteza", de 1987), Alvin mandou-me um insight interessante.

O mentor dos Sex Beatles e parceiro do Capital em algumas empreitadas dizia na mensagem que de fato a perspectiva temporal estava nos possibilitando uma avaliação correta da obra da Geração 80 do rock brasileiro, separando o joio do trigo - e concluindo, não sem orgulho, que havia muito trigo para ser colhido. Frejat no seu show fez isso. Brandão no dele, também. Cássia era mestra nisso, pois sua carreira foi de longe muito mais pautada pela interpretação (de Cazuza & Frejat, Renato, Nando Reis, Chico, Gil) do que pela composição. Há, portanto, uma espécie de "rock de repertório" vicejando já há um tempinho. Assim como uma percentagem expressiva dos discos e shows de jazz é de standard s, gêneros musicais mais recentes vão criando seus próprios clássicos (vide coluna recente sobre Tori Amos). Também o rock produzido no Brasil está maduro para isso.

Até aquilo que em princípio seria apenas sintoma de marasmo criativo, como discos acústicos, discos-tributo ou bandas de covers , pode também ser entendido como uma merecida valorização de um repertório insuperado ou importante. Do mesmo modo que é possível passar a vida inteira tocando jazz, e tocando criativamente, sem se afastar de "All the things you are". Versões não são novidade no rock: os primeiros LPs dos Beatles e dos Rolling Stones estão cheios delas. E um dos músicos mais cultuados da atualidade, o melancólico Mark Kozelek, tem um disco dedicado apenas à interpretação do AC/DC. Versões também não são novidade na música eletrônica: na verdade, remixar e recriar obras preexistentes é um dos principais esteios da rapaziada das picapes e dos samplers . A revisão representa, quase sempre, um atestado de qualidade expedido pelo tempo.

E, no entanto, não é só isso, como sintetizou o Frejat. Pegar músicas de gente que já partiu e jogá-las pra cima, sem detrimento da invenção e da produção, é uma maneira não só de dizer "ei, isso é bom!" mas também "valeu a pena ter vivido" ou "arte longa, vida breve" ou ainda "vida louca vida, vida breve, já que eu não posso te levar, quero que você me leve". Logo, em vez de ser uma criação de bodes, como a princípio pensou este mórbido aqui, um rock de repertório, ou vice-versa, funciona como um rito de reafirmação da vida, tal qual certas cerimônias fúnebres.


‘Wish you were here’
por Arthur Dapieve
publicado no jornal o Globo

Desculpe, mas eu vou chorar. Peço licença aos sertanejos da Era Collor para avisar que se de fato, na noite do próximo dia 9 de março, durante sua apresentação na Praça da Apoteose, Roger Waters cantar “Wish you were here”, eu vou chorar. Homem não chora? Aqui, ó. Queria ver ouvir impávido Neil Young destroçando “Cortez the killer” no Rock in Rio do ano passado... Pois repito: se Waters, “o gênio do Pink Floyd”, como apregoam cartazes em pontos de ônibus e anúncios em jornal, numa propaganda não-enganosa, cantar “Wish you were here” (e “Time” e “Mother” etc.), como aliás também diz o reclame do Festival Kaiser Music, vou ter de tirar o lenço do bolso. 

Dada a responsabilidade, hesito antes de escrever isso, mas “Wish you were here” é a música da minha vida — do mesmo modo que as novas gerações podem investir nesse papel “Pennyroyal tea”, do Nirvana, ou “Fake plastic trees”, do Radiohead. É aquela cuja letra (do baixista Waters) mais “me disse” coisas em variados momentos da vida. É aquela cuja interpretação de David Gilmour (era o guitarrista do Pink Floyd quem originalmente a cantava no álbum homônimo, de 1975) consegue transmitir mais nuances de emoção e sentimento: tristeza, ternura, raiva, desespero, despeito. É aquela balada cuja melodia (de Waters & Gilmour) bate mais fundo em algum lugar que creio estar aqui por dentro. 

“Wish you were here”, o disco, teve a terrível missão de seguir “Dark side of the moon”, o álbum de 1973 que vendeu mais de 25 milhões de cópias ao redor do planeta. Para efeito de identificação visual, importantíssima quanto se trata do Pink Floyd, este é “o disco do prisma” enquanto seu sucessor é “o disco do aperto de mão no qual um dos caras está pegando fogo”. Esmagados pela genialidade do trabalho anterior, Waters, Gilmour, Rick Wright (teclados) e Nick Mason (bateria) haviam voltado aos estúdios de Abbey Road sem terem muito o que dizer, exceto uma peça de 20 minutos chamada “Shine on you crazy diamond”. Então, em certo momento do parto de seis meses, eles decidiram usar o sócio-fundador extraviado dentro de sua própria cabeça, Syd Barrett, para falarem de si mesmos. E três novas canções foram escritas, inclusive “Wish you were here”. 

Desde que Barrett surtara de vez, em 1968, todos os discos do Pink Floyd abordavam, de modo mais ou menos escancarado, o tema da loucura. No de 1975, ele foi retomado de um ponto de vista ligeiramente diferente: o louco prototípico (Barrett, claro) era um sujeito que havia pirado por conta das pressões da vida cotidiana, da máquina de moer carne humana chamada indústria fonográfica e da hiperexposição na mídia. Era como os quatro membros da banda estavam se sentindo: pirando. A sua arte funcionou como uma válvula de escape. No disco, uma música se chamava “Welcome to the machine” (“Bem-vindo à máquina”) e noutra (“Have a cigar”), um executivo declarava: “A banda é realmente fantástica, é o que de fato penso/ A propósito, qual de vocês é o Pink?” 

Nesse contexto, “Wish you were here” era a faixa mais emocionada e acústica num disco eletrônico, deliberadamente frio e asséptico — como os corredores de um hospício, costumo dizer. O destinatário da mensagem era Barrett (vivo até hoje), mas poderia ser também qualquer outra pessoa a quem se ama ou a quem se quis amar. A letra abre com um desafio (“Então, então você acha que pode diferenciar o Céu do Inferno, céus azuis da dor”), emenda com uma série de perguntas (“E eles conseguiram que você trocasse seus heróis por fantasmas? Cinzas quentes por árvores?”) e arremata com um desabafo: “Como eu queria, como eu queria que você estivesse aqui/ Nós somos apenas duas almas perdidas nadando num aquário, ano após ano/ Correndo sobre o mesmo velho chão/ O que encontramos? Os mesmos velhos medos/ Queria que você estivesse aqui.” Brrrrr. 

Como tudo associado ao Pink Floyd, “Wish you were here” carrega pencas de histórias. Há, por exemplo, a visita de um gordo e calvo Barrett ao estúdio, deixando seus ex-companheiros em lágrimas. Há outra que me parece ainda mais estranha. Gilmour cismou que no final da faixa-título deveria haver um violino. Por coincidência, também estava na casa o jazzista francês Stephane Grappelli, gravando com o colega erudito Yehudi Menuhim. Alguém fez a ponte e Grappelli tocou ao final de “Wish you were here”. Tocou ou teria tocado, não sei. Waters já declarou que sim: “Você pode ouvi-lo se escutar muito, muito, muito atentamente ao finalzinho de ‘Wish you were here’, você pode ouvir um violino entrar depois que o som do vento começa.” Não sei se é uma piada e sei que sou meio surdo. Contudo, escuto o disco há uns 23 anos, no barato, e nunca ouvi nada. 

Seja como for, “Wish you were here” continua a me emocionar. Outro dia, descobri uma versão dela com Thom Yorke, do Radiohead, mais o grupo Sparklehorse, que me deixou transtornado de tão econômica, intensa e sofrida. Ano retrasado, Wyclef Jean (ex-Fugees) também tinha gravado uma bela versão rap-reggae no álbum “The ecleftic”. Depois, cantou-a no David Letterman, em homenagem aos mortos do 11 de Setembro. A comprovar as muitas possibilidades de entendimento para a letra de Waters, ali ela pareceu ter sido escrita para externar aquela dor, aquela separação e aquela saudade. Espero que o sistema de drenagem da Praça da Apoteose esteja funcionando direitinho.