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Antológicas
"Alfredinho", o missionário que se vai
por
Marcelo Rubens Paiva
Acabei
de saber da morte de um amigo, Renato Russo. Aliás, "Alfredinho",
como ele gostava de se apresentar. Quando vinha a São
Paulo, carregava no sotaque italiano. Nos chamava de "belo".
Orgulhava-se de sua ascendência. Nos conhecemos antes
do sucesso. Ele, um brasiliense misterioso, meio punk sem ser,
com a Legião Urbana explorando os espaços de São
Paulo: Rose Bom Bom, Napalm, Carbono 14. Um brasiliense sabia
de mais coisas que nós. E Renato sempre soube de mais
coisas que nós. Trocávamos opiniões sobre
livros. Eu lia Camus, ele lia Dante. Eu lia Kafka, ele a Bíblia.
Eu o achava anacrônico. Ele me chamava de "niilista incorrigível".
Eu o achava puritano.
Renato
se sentia um messiânico, um catequizador. Primeiro, a
palavra. Não usava máscara, figurino. Renato era
Renato, dentro e fora do palco. Provocávamos: "Alfredinho,
compre outra roupa". Ele saía de casa de camiseta e jeans,
e lá estava ele no palco com a mesma camiseta e jeans.
Ele não precisava de artifícios, dominava como
poucos a palavra. Hospedava-se na casa da Fernanda Andrade,
minha namorada. Havia um misto de euforia e desconfiança
ante à abertura política e, conseqüentemente,
ao renascimento do rock brasileiro.
Éramos
quase garotos nos lançando às feras do showbizz.
Não falávamos de contratos. Falávamos de
um projeto coletivo: o desencanto. Éramos amargurados,
só pensávamos em uma fórmula comum para
exprimir nosso descontentamento. Queríamos mudar o Brasil.
Éramos socialistas. Éramos anarquistas. Na verdade,
não sabíamos o que éramos. "Nasci em 62",
o nosso lema (música do Ira). "Cadê o Socialismo?",
cantava o Zero. "Ainda é Cedo", cantava Renato.
Renato
quase não dividia suas impressões. Trancava-se
no quarto, enxugava uma garrafa de uísque e só
descia para contar piadas. Éramos cúmplices de
um movimento que não sabíamos alçar. Queríamos
o grande público sem perdermos a identidade. Tínhamos
medo de sermos corrompidos pela fama. Eu dava entrevistas
com camisetas de bandas amigas. A Legião, com uma camiseta
estampada "Feliz Ano Velho". Talvez fôssemos isso, saudosistas,
órfãos de um mundo velho, com projeto, com História.
Quando
eu ia a Brasília, me hospedava na casa do Dado. Era lá
que ensaiavam, apertados num quarto de empregada sem acústica.
A surpresa: começavam às 8 da manhã. Um
pastor deve acordar antes do rebanho. Eu ficava na cama, procurando
decifrar o que Renato cantava. Renato era indecifrável.
E quando eu saía do quarto, vinha com versos escritos
num papel. "O que você acha?", perguntava. "Ainda é
cedo", eu ironizava. Eu sabia, todos sabiam, que ninguém
furava o bloqueio de sua loucura pessoal. Seu cérebro
fervia, como o inferno de Dante.
Mas
ele era doce, gentil. Era simples, sincero, com uma barba histriônica,
os óculos quadrados, tudo fora de moda. Não se
abalava com a quantidade de discos vendidos. Nem sabia o que
fazer com tanto dinheiro. Sua atenção estava voltada
para o público. Sua vocação era liderar.
Seus shows eram manifestações. O que mais o afligia
era saber se o estavam entendendo. Mas nada mudaria, o que ampliava
a sua (a nossa) solidão. Conseguiu
não ser engolido pelo sistema que tanto combateu. "Quando
a esperança está dispersa, é a verdade
que liberta", diz uma de suas últimas músicas.
A esperança morreu, e Alfredinho resolveu seguir o mesmo
caminho.
Texto
publicado no jornal Folha de S. Paulo, quando da morte do vocalista
da Legião Urbana.
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