Rainer Maria
Rilke
Na minha aventura ensaistica
de poesia, acreditei em certa época que o que eu escrevia
atrapalhava meus relacionamentos. Decidi, um dia, por fim, deixar
de escrever. Não que fosse fazer falta ao mundo, mas
faria a mim, contudo, coloquei na cabeça que isso seria
o melhor.
Fiquei pensando isso até me
deparar com Rainer Maria Rilke. O primeiro encontro veio com a tensão
poética de "Elegias de Duíno", ciclo de dez elegias que começaram
a ser escritas em 1912 no castelo Duíno, em Trieste, Itália,
e foram finalizadas apenas em 1922. Escrevendo sob o ponto de vista de
amantes infelizes, mulheres abandonadas e história trágicas,
Rilke inicia as elegias com uma das mais belas frases da poesia universal:
"Se eu gritar, quem poderá
ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos?"
O segundo encontro foi decisivo. "Cartas
A Um Jovem Poeta" reúne cartas trocadas entre o escritor e um jovem
admirador e poeta, Franz Xaver Kappus, entre fevereiro de 1903 e dezembro
de 1908. São dez cartas que, mais do que falar de poesia, falam
de vida. Alias, vida e poesia estão misturadas nas cartas, uma como
resultado constante da outra.
Nas cartas, Rilke aconselha o poeta
iniciante a deixar de lado a ironia, a fugir da crítica afundando-se
na solidão, não se deixar impressionar pelo grandioso nem
entregar-se ao drama, entre outros conselhos. Mais do que conselhos a um
jovem poeta, são conselhos de humildade, honestidade e perseverança.
Seguem, abaixo, a primeria das dez
cartas entre Rilke e Kappus e a primeira das dez elegias de Duíno.
Os dois livros estão em catálogo com edições
novas e são fáceis de achar entre preços de R$ 12,00
a R$ 20,00, editora Globo.
Os conselhos do poeta me fizeram enxergar
a inocência em meus escritos. Sobretudo, me fizeram sentir-me satisfeito
com eles. E a enfrentar a solidão. E a me apaixonar de novo.
Marcelo Costa
Editor S&Y
CARTAS A UM JOVEM POETA
"PRIMEIRA CARTA"
"Paris, 17 de Fevereiro de 1903
Prezadíssimo Senhor,
Sua carta alcançou-me apenas
há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança.
Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações
acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e
qualquer intenção crítica. Não há nada
menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica,
que sempre resultam em mal entendidos mais ou menos felizes. As coisas
estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis
quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos
é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma
palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que
qualquer outra coisa são as obras de arte, - seres misteriosos cuja
vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei
ainda que seus versos não possuem feição própria
somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto
com maior clareza no último poema, "Minha Alma". Aí, algo
de peculiar procura expressão e forma. No belo poema "A Leopardi"
talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário
esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio
e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi.
Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar
certa insuficiência que senti ao ler seus versos, sem que a pudesse
definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o
a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos,
compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são
recusadas por um ou outro redator. Pois bem - usando da licença
que me deu de aconselhá-lo - peço-lhe que deixe tudo isso.
O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos
deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar,
- ninguém. Não há senão um caminho. Procure
entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se
estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse
a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo:
pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite:"Sou mesmo
forçado a escrever?" Escave dentro de si uma resposta profunda.
Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por
um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com
esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina,
deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se
então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem,
dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de
amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são
essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande
e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que
sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve
fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência
cotidiana lhe oferece; relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade.
Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus
sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência
cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga
consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas.
Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho
e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes
impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos,
não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida
e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte
a atenção para ela. Procure soerguer as sensações
submersas desse longínquo passado: sua personalidade há de
reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se
numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído
dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro,
deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em
perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará
interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver
neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua
vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste
caráter de origem está o seu critério, - o único
existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar
outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de
onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a
resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como
se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la.
Talvez venha significar que o senhor é chamado a ser um artista.
Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem
nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com
efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa
natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de,
após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário,
ter o senhor de renunciar a se tornar poeta.
(Basta, como já disse, sentir
que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito
de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço
não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento,
há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos
e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.
Que mais lhe devo dizer? Parece-me
que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas
sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade
ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do
que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez
somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais
silenciosa.
Foi com alegria que encontrei em sua
carta o nome do professor Hoaracek; guardo por esse amável sábio
uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe,
por favor, neste sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de
mim; e eu sei apreciá-la.
Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos
que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza
e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta
sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do
que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer Maria Rilke"
Esta Primeira Carta do livro "Cartas
a um jovem poeta", foi traduzida por Cecília Meireles, retirados
da edição : "Cartas a um jovem poeta e Canção
de Amor e morte do porta-estandarte Crsitovão Rilke", ed. Globo,
1983
O mundo estava no rosto da amada
O mundo estava no rosto da amada -
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.
Por que não o bebi quando o
encontrei
no rosto amado, um mundo à
mão, ali,
aroma em minha boca, eu só
seu rei?
Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno
de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.
(Tradução: Augusto de
Campos)
Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Que farás tu, meu Deus, se
eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.
Depois de mim não terás
um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo
tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.
Que farás tu, meu Deus? O medo
me domina.
(Tradução: Paulo Plínio
Abreu)
ELEGIAS DE DUÍNO
PRIMEIRA ELEGIA
Quem se eu gritasse, me ouviria pois
entre as ordens
Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração,
eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte.
Pois o belo não é
Senão o início do terrível,
que já a custo suportamos,
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente
desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é
terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo
o apelo
De obscuro soluço. Ah! A quem
podemos
Recorrer então? Nem aos anjos
nem aos homens,
E os animais sagazes logo percebem
Que não estamos muito seguros
No mundo interpretado. Resta-nos
talvez
Alguma árvore na encosta que
diariamente
Possamos rever. Resta-nos a rua de
ontem
E a mimada fidelidade de um hábito,
Que se compraz conosco e assim fica
e não nos abandona.
Ó e a noite, a noite, quando
o vento cheio dos espaços
Do mundo desgasta-nos o rosto -,
para quem ela não é /sempre a desejada,
Levemente decepcionante, que para
o solitário coração
Se impõe penosamente. Ela
é mais leve para os amantes?
Ah! Eles escondem apenas um com o
outro a própria sorte.
Não o sabes ainda? Atira dos
braços o vazio
Para os espaços que respiramos;
talvez que os pássaros
Sintam o ar mais vasto num vôo
mais íntimo.
Sim, as primaveras precisavam de ti.Muitas
estrelas
Esperavam que tu as percebesses.
Do passado
Erguia-se uma vaga aproximando-se,
ou
Ao passares sob uma janela aberta,
Um violino se entregava. Tudo isso
era missão.
Mas a levaste ao fim? Não
estavas sempre
Distraído pela espera, como
se tudo te ansiasse
A bem amada? (onde queres abrigá-la
Então, se os grandes e estranhos
pensamentos entram
E saem em ti e muitas vezes ficam
pela noite.)
Se a nostalgia te dominar, porém,
cantas as amantes; muito
Ainda falta para ser bastante imortal
seu celebrado sentimento.
Aquelas que tu quase invejaste, as
desprezadas, que tu
Achaste muito mais amorosas que as
apaziguadas. Começa
Sempre de novo o louvor jamais acessível;
Pensa: o herói se conserva,
mesmo a queda lhe foi
Apenas um pretexto para ser : o seu
derradeiro nascimento.
As amantes, porém, a natureza
exausta as toma
Novamente em si, como se não
houvesse duas vezes forças para realizá-las.
Já pensaste pois em Gaspara
Stampa
O bastante para que alguma jovem,
A quem o amante abandonou, diante
do elevado exemplo
Dessa apaixonada, sinta o desejo
de tornar-se como ela?
Essas velhíssimas dores afinal
não se devem tornar
Mais fecundas para nós? Não
é tempo de nos libertarmos,
Amando, do objeto amado e a ele tremendo
resistirmos
Como a flecha suporta à corda,
para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?
Pois parada não há
em /parte alguma.
Vozes, vozes.Escuta, coração
como outrora somente
os santos escutavam: até que
o gigantesco apelo
levantava-os do chão; mas
eles continuavam ajoelhados,
inabaláveis, sem desviarem
a atenção:
eles assim escutavam. Não
que tu pudesses suportar
a voz de Deus, de modo algum. Mas
escuta o sopro,
a incessante mensagem que nasce do
silêncio.
Daqueles jovens mortos sobe agora
um murmúrio em direção /a ti.
Onde quer que penetraste, nas igrejas
De Roma ou de Nápoles, seu
destino não falou a ti, /tranqüilamente?
Ou uma augusta inscrição
não se impôs a ti
Como recentemente a lousa em Santa
Maria Formosa.
Que eles querem de mim? Lentamente
devo dissipar
A aparência de injustiça
que às vezes dificulta um pouco
O puro movimento de seus espíritos.
Certo, é estranho não
habitar mais terra,
Não mais praticar hábitos
ainda mal adquiridos,
Às rosas e outras coisas especialmente
cheias de promessas
Não dar sentido do futuro
humano;
O que se era, entre mãos infinitamente
cheias de medo
Não ser mais, e até
o próprio nome
Deixar de lado como um brinquedo
quebrado.
Estranho, não desejar mais
os desejos. Estranho,
Ver tudo o que se encadeava esvoaçar
solto
No espaço. E estar morto é
penoso
E cheio de recuperações,
até que lentamente se divise
Um pouco da eternidade. - Mas os
vivos
Cometem todos o erro de muito profundamente
distinguir.
Os anjos (dizem) não saberiam
muitas vezes
Se caminham entre vivos ou mortos.
A correnteza eterna
Arrebata através de ambos
os reinos todas as idades
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja
em ambos.
Finalmente não precisam mais
de nós os que partiram cedo,
Perde-se docemente o hábito
do que é terrestre, como o /seio materno
suavemente se deixa, ao crescer.Mas
nós que de tão grandes
mistérios precisamos, para
quem do luto tantas vezes
o abençoado progresso se origina
- : poderíamos passar /sem eles?
É vã a lenda de que
outrora, lamentando Linos,
A primeira música ousando
atravessou o árido letargo,
Que então no sobressaltado
espaço, do qual um quase /divino adolescente
escapou de súbito e para sempre,
o vazio entrou
naquela vibração que
agora nos arrebata e consola e ajuda?
Traduções do poeta paraense
Paulo Plínio Abreu publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os
anos de 1946 e 1948,
realizadas em parceria com o antropólogo
alemão Peter Paul Hilbert.
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