Seis ou Treze Coisas que Aprendi
Sozinho
1
Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo,
ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas
se cristalizam.
Besouros não ocupam asas para
andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as
palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm
lírios.
3
Tem 4 teorias de árvore que
eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo agüenta
mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz
frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por
rachaduras
lavra um poder mais lúbrico
de antros.
Quarta: que há nas árvores
avulsas uma assimilação maior de horizontes.
7
Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede
umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas
árvores;
E o escuro se umedeça em nosso
corpo.
9
Em passar sua vagínula sobre
as pobres coisas do chão, a
lesma deixa risquinhos líquidos...
A lesma influi muito em meu desejo
de gosmar sobre as
palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra
a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é
a vida de uma pedra a lesma
escorre. . .
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.
11
Que a palavra parede não seja
símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na
infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo,
adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia
de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio
cego.
Tal um verme que iluminasse.
12
Seu França não presta
pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu
as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de
sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser
ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse
ato suicida.
13
Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer
e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos
homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas
acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só
pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados
à indigência.
Onde os homens terão a força
da indigência.
E as ruínas darão frutos
UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO
1a. Parte
"As coisas que não existem
são mais bonitas"
Felisdônio
I
Para apalpar as intimidades do mundo
é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã
não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam
o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas
de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua
existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos
carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece
primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina
os princípios.
II
Desinventar objetos. O pente, por
exemplo.
Dar ao pente funções
de não pentear. Até que
ele fique à disposição
de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não
tenham
idioma.
III
Repetir repetir - até ficar
diferente.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo
estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está
competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a
noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas carregadeiras entram em casa
de bunda.
VI
As coisas que não têm
nome são mais pronunciadas
por crianças.
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio
o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no
começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto
a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que
o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda
a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou de Deus:
foi em
Van Gogh.
IX
Para entrar em estado de árvore
é preciso
partir de um torpor animal de lagarto
às
3 horas da tarde, no mês de
agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato
vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição
lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio
das pedras.
XI
Adoecer de nós a Natureza:
- Botar aflição nas
pedras
(Como fez Rodin).
XII
Pegar no espaço contigüidades
verbais é o
mesmo que pegar mosca no hospício
para dar
banho nelas.
Essa é uma prática sem
dor.
É como estar amanhecido a pássaros.
Qualquer defeito vegetal de um pássaro
pode
modificar os seus gorjeios.
XIII
As coisas não querem mais ser
vistas por
pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul -
Que nem uma criança que você
olha de ave.
XIV
Poesia é voar fora da asa.
XV
Aos blocos semânticos dar equilíbrio.
Onde o
abstrato entre, amarre com arame.
Ao lado de
um primal deixe um termo erudito.
Aplique na
aridez intumescências. Encoste
um cago ao
sublime. E no solene um pênis
sujo.
XVI
Entra um chamejamento de luxúria
em mim:
Ela há de se deitar sobre meu
corpo em toda
a espessura de sua boca!
Agora estou varado de entremências.
(Sou pervertido pelas castidades?
Santificado
pelas imundícias?)
Há certas frases que se iluminam
pelo opaco.
XVII
Em casa de caramujo até o sol
encarde.
XVIII
As coisas da terra lhe davam gala.
Se batesse um azul no horizonte seu
olho
entoasse.
Todos lhe ensinavam para inútil
Aves faziam bosta nos seus cabelos.
XIX
O rio que fazia uma volta atrás
de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que
fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa
volta
que o rio faz por trás de sua
casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma
cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de
casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
XX
Lembro um menino repetindo as tardes
naquele
quintal.
XXI
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho que 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia me vou
no Morais
ou no Viterbo -
A fim de consertar a minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha erudição
tiro nos almanaques:
- Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
- Lembra que és pó e
que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
- Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:
- Coisa que não acaba no mundo
é gente besta
e pau seco.
Etc.
Etc.
Etc.
Maior que o infinito é a encomenda.
Tenho um livro sobre águas
e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava
água na peneira.
A mãe disse que carregar água
na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para
mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa
sobre orvalhos
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio do que
do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era
cismado e esquisito
Porque gostava de carregar água
na peneira
Com o tempo descobriu que escrever
seria o mesmo que carregar
água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz
de ser noviça, monge
ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com
as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo
de um pássaro botando
ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando
uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!