Freqüências Freqüentes
Capítulo 1: Longe Demais das Capitais

por Fábio Bianchini
1999

Humberto acordou cedo, como sempre fazia. Olhou pela janela e viu que todas as previsões de que o mundo acabaria na entrada do ano 2000 estavam mais um dia atrasadas. "Oito meses e nove dias de atraso é um pouco demais", pensou. Enquanto tomava seu café da manhã, releu a carta da gravadora que recebera no dia anterior. "Não é um produto vendável", "letras chatas e redundantes" e outros elogios mais pipocavam. Era definitivo, não lançariam o novo disco dos Engenheiros do Hawaii.

Não chegava a ser um problema tão grande. Na verdade, era quase uma solução. Desde Tchau Radar!, Humberto sentia-se cada vez mais empolgado com experimentações sonoras que obviamente não agradariam os diretores das majors. Fã de Rush, Pink Floyd e progressivo desde guri, Humberto dedicava cada vez mais tempo à continuação de sua preferência juvenil, atualizada sob o nome de post rock. Em uma semana comprara quase todo o catálogo de selos como Kranky, Too Pure e afins, que lançavam a nata dessa turma. Sabia que precisava encontrar a sua turma e pra isso, teria que mudar de ares. E de selo.


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Capítulo 2: Somos quem podemos ser

Passou algumas horas debruçado sobre seu computador pesquisando as opções de selos para lançar seu novo trabalho. Várias gravadoras microscópicas, outras nem tanto, lançavam novas bandas. Era ali, apostava, que encontraria seu verdadeiro nicho. E encontrou. Pegou no site o número e foi imediatamente telefonar para o responsável pelo selo.

- "Alô"
- "Bom dia, eu gostaria de falar com o Rodrigo Lariú"

- "Sou eu mesmo. Quem é?"

- "Aqui é o Humberto Gessinger, dos Engenheiros do Hawaii"

- "Quem?"

- "Humberto, dos Engenheiros. Sabe aquela música, 'você me faz correr demais os riscos desta highway'’?"

- "Não, calma. Eu sei exatamente quem são os Engenheiros do Hawaii. Só não tô entendendo por que você está me telefonando. É de alguma matéria pra MTV?"

- "Não, nada disso. Tu não é o dono do Midsummer Madness?"

- "Sou. Mas por que?"

- "É que a gente tá saindo da nossa gravadora e já estamos com o disco novo pronto. E eu quero lançar pelo Mid Mad"

- "Mid Mad? Mas que intimidade é essa? Cara, não me leva a mal, mas não rola. Nosso perfil de banda é completamente diferente. Você deve estar confundindo a gente com outra coisa."

- "Não, tu é que está confundindo. Deixa eu explicar. O disco novo que eu tô terminando é diferente. Eu decidi evidenciar o nosso lado experimental, mas sem largar a transa pop."

- "Como assim?"

- "Eu acho meio complicado de explicar assim, ainda mais pelo telefone. A gente pode marcar de se encontrar e eu te passo uma fita."

- "Olha, eu ainda acho complicado."

- "Se tu não gostar, não lança."

- "Hmmmm... tá, tudo bem"

Rodrigo ouviu. Receoso e sem acreditar muito, mas ouviu. E continuou incrédulo. Não conseguia acreditar de jeito algum no que ouvia. Gessinger não estava brincando quando falou em evidenciar o lado experimental e preservar o apelo pop, o chantilly que disfarçava o sabor amargo das suas letras. Maravilhado, só conseguiu balbuciar "mas isso é melhor que Quickspace. É o Quickspace brasileiro e melhorado'. Ligou imediatamente de volta pra Gessinger:

- "Cara, a gente precisa lançar isso de qualquer jeito. Mas tem um problema sério."
- "O que é?"

- "Sabe como é, a maior parte do público habitual tem certas reservas em relação aos Engenheiros do Hawaii"

- "Sei, sei. E o que tu sugere pra gente contornar isso?"

- "Entrevista coletiva"


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Capítulo 3: Um Beatle, um Beatnik ou um Bitolado?

O comunicado oficial foi suficiente para abarrotar a coletiva de Humberto Gessinger. O que todos queriam saber era: por que os Engenheiros do Hawaii, ícone do pop radiofônico, largava uma major por um pequeno selo independente? E por que o Midsummer Madness?
Humberto: "Há tão pouca diferença e tanta coisa a fazer... da gravadora, quero mais é que eles façam o disco redondo, que caiba no toca-discos e que tenha um furinho no meio. O resto eu faço. Quando faço um disco novo, sempre acho que é bem diferente, mas no fim as pessoas acham tudo igual. Mas então eu achei que deveria rolar essa mudança, pra ficar mais evidente. Pesquisei vários selos e vi que o Mid Mad tem a transa de se preocupar com os detalhes que realmente importam".

"Que tipo de detalhe?"
Humberto: "Pra ser 'o selo', tu tem que ter dois nomes que começam com a mesma inicial, tipo Malu Mader, Mayara Magri, Marisa Monte, Marilyn Monroe, Renato Russo, Herman Hesse... tipo Midsummer Madness mesmo. E é também por isso que eu quero convencer o Sol Segabinaze a fazer parte da banda agora. Mas, claro, o principal motivo é que a banda dele, o Stellar, é das poucas no Brasil que consegue entender a minha transa com rock progressivo e funcionar em sintonia mental comigo. Além disso, eles tocam com quatro guitarras e sem baixo. E eu sou um baixista, então fecha direitinho".

"Mas você não acha que as bandas do selo não passam de garotos mimados macaqueando seus ídolos, copiando as roupas que vêem na MTV e cantando num inglês muitas vezes sofrível? Muitos criticam o Midsummer Madness por isso":
Humberto: "Eu sei que eles têm razão, mas a razão é só o que eles têm. Eu acho tudo isso lindo. É assim mesmo, a vida imita o vídeo e garotos inventam o novo inglês. Nós somos quem podemos ser e são os sonhos que podemos ter. O disco Freqüências Freqüentes vai um pouco nessa viagem".

"Os Engenheiros não estão fora de lugar no Midsummer Madness, até um pouco deslocados e isolados?"
Humberto: "Não basta ter coragem, é preciso estar sozinho. É preciso trair tudo, trazer a solidão".

E sorriu, confiante.

Não foi preciso dizer mais nada. No dia seguinte, a associação dos Engenheiros do Hawaii com o Midsummer Madness era o assunto do momento. Lariú não perdeu tempo. Para capitalizar a atenção sobre seus novos contratados, anunciou-os como atração principal da terceira edição do festival das bandas do selo: Algumas Pessoas Tentam Te Fuder Porque Tu É Gaúcho e Leva Jeito de Veado.


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Capítulo 4: Nos interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito a mão

A semana anterior ao Algumas Pessoas Tentam Te Fuder Porque Tu É Gaúcho e Leva Jeito de Veado (que daqui em diante, chamaremos apenas de "o Festival", por razões de agilidade) foi de muito trabalho para a nova formação dos Engenheiros do Hawaii. Primeiro Humberto teve que convencer o Stellar, que agora também era o restante dos EngHaw, a subir ao palco e fazer o show. A tarefa seguinte, apesar de menos difícil, também não era nada fácil, mesmo para eles: transpor para a formação "ao vivo" os complicados arranjos, as ambiências e principalmente os sofisticados timbres de Freqüência Freqüentes.

Assim, todo mundo estava lá no dia do show. Imprensa, antigos fãs da banda, fãs da nova fase, curiosos em geral. Iriam tocar os clássicos? As novas músicas agradariam o antigo público? A imagem mainstream seria perdoada pela garotada indie? A resposta começou a aparecer quando Gessinger subiu sozinho ao palco e começou a tocar uma seqüência de notas em seu baixo. Música inédita? À medida em que a banda ia entrando e os instrumentos adicionavam as camadas sonoras da canção, ela foi ficando mais reconhecível, apesar da letra alterada. Humberto aproximou-se do microfone e começou a cantar:

"Era um garoto que como eu amava os Smiths e o Morrissey
Ficava em casa pra lamentar sua tristeza e angústia

Não era belo e não falava bem

Achou que nunca ia comer ninguém

Cantava 'Ask' e 'Cemetery Gates'

'You’re the One for Me, Fatty' e 'Suedehead'

Cantava 'ui, eu sou tão triste', mas uma carta sem esperar

Do seu quartinho o arrancou, fora chamado pra ir festar

Stop com 'Viva Hate'!

Stop com 'Bona Drag'!

Mandado foi a um churrascão tomar jeito de homem"

Ao final dos 15m43s da música, a platéia estava tão estupefata que os aplausos só vieram depois de 30 segundos de espantado silêncio. Mais três horas e meia de show (o suficiente pra que os Engenheiros do Hawaii tocassem oito músicas) depois, o choque era geral. Ninguém conseguiu arredar o pé do lugar, ninguém conseguiu tirar os olhos do palco, ninguém conseguiu captar todo o bombardeio de informações e referências sonoras e visuais, ninguém ficou imune ao massacre de sons e imagens. O que aconteceu naquele dia jamais chegou a ser adequadamente descrito, já que nenhum dos presentes escapou do hipnotismo coletivo. As únicas certezas eram de que o show tinha sido sensacional e de que isso não tinha como não refletir nas vendas do disco. Só naquela noite, três mil cópias de Freqüências Freqüentes foram compradas na barraquinha do Midsummer Madness.


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Capítulo 5: Todo mundo tá relendo o que nunca foi lido

Quem apostou no sucesso da nova fase dos Engenheiros ganhou fácil. Humberto foi comparado a Brizola, por sair de Porto Alegre e tomar fôlego novo no Rio de Janeiro. Até a crítica musical rendeu-se e decidiu: Humberto Gessinger era o Gênio da Raça. Pela primeira vez, um disco de banda brasileira vendeu mais de dez milhões de cópias, mesmo boicotado pela TV e pelo rádio. A excursão por todo o Brasil foi tão bem-sucedida que os Engenheiros do Hawaii não se importaram com a maratona de shows. Conseguiam viver de fazer música sem ter que dobrar-se ao mercado. Pelo contrário: o mercado se dobrava a eles. No dia 17 de dezembro, a Billboard estampava na capa: Brasil é o país do post.

O lançamento de Freqüências Freqüentes nos EUA foi rapidamente acertado. E melhor ainda: pela Kranky. Sucesso de público e vendas também na América do Norte. Chegava a hora da temerária excursão ianque, que prometia ser estafante. Apesar da presença de bandas amigas como Tortoise e Godspeed You Black Emperor, que fariam a abertura dos shows, o ritmo das apresentações era severo: oitenta e sete shows em cem dias. Três horas e meia de show. Total: 304 horas e meia em cima do palco. Isso sem contar as vezes em que os EngHaw levavam seus improvisos noite adentro e não havia hora pra terminar.

No dia do embarque para Nova York, nada de Humberto aparecer. O nervosismo aumentou. Telefonaram para o hotel. Nada de Humberto lá. O que poderia ter acontecido? Uma hora e meia depois do marcado, ele aparece, com uma cuia de chimarrão e desculpando-se "é que eu tive que comprar um mate pra viagem". Mais um hábito de Humberto que a banda não entendia. Como se a mania de beber café com leite não fosse suficiente. Questões como essa foram rapidamente minando o convívio entre os integrantes dos Engenheiros do Hawaii, principalmente entre Humberto e os egressos do Stellar. “Três meses com esse cheiro de café com leite misturado com mate. Eu não vou agüentar", confessou Sol num telefonema para Lariú, que tinha ficado no Brasil.


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Capítulo 6: Tudo se divide, todos se separam

Lariú ficara no Brasil, mas atarefadíssimo. Além de defender a banda das constantes acusações de dar as costas ao mercado nacional, ele aproveitou os lucros das vendas de FF para realizar dois antigos sonhos: patrocinar o Vasco e fundar o Espaço Cultural Rodrigo Lariú. Um lugar onde os talentos poderiam manifestar-se com liberdade. Dez shows simultâneos o tempo todo, ambientes para ensaio, estúdio com equipamentos de última geração, seis cinemas, quatro teatros, além de sauna relax e quadra polivalente, que ninguém é de ferro. Uma prensa e uma gráfica viabilizavam a fabricação dos próprios CDs e fanzines sem depender dos prazos pouco confiáveis da indústria. E não era só: o espaço-museu contava a história do indie pop brasileiro, com um acervo de fanzines, vídeos e cassetes que incluía tudo o que o rock independente brasileiro lançara até então.

Curiosamente, à medida que ficava cada vez mais claro que a cena underground nacional dividia-se entre antes e depois dos Engenheiros, a banda responsável por tudo aquilo esfacelava-se. Humberto estava isolado, não conversava com mais ninguém. Apenas ficava no seu quarto, vendo fitas de antigos jogos do Grêmio, tomando chimarrão e tocando theremin. Ainda faltavam mais de cinco semanas de turnê. Algo precisava ser feito. Uma reunião foi marcada, Humberto não compareceu. Foi o fim. À revelia dele, o restante da banda decidiu cancelar a excursão e voltar ao Brasil para retomar o Stellar.

Humberto só voltou dois meses depois. Era óbvio que música pop não era mais pra ele. Ainda lançando pelo Midsummer Madness, passou a dedicar-se apenas a trilhas sonoras de filmes e peças escandinavas. Em 2007, numa longa entrevista ao 1999, falou pela primeira vez de tudo o que aconteceu: "eu nem sempre faço o que é melhor pra mim, mas nunca faço o que não tô a fim de fazer. E eu não tava mais a fim daquilo. É a transa do ciclo. Chegou a hora em que a cobra mordeu o próprio rabo e o círculo se fechou. O importante é que as coisas nunca mais foram as mesmas."

FIM



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Alguns comentários do editor S&Y

O Fábio Bianchini, conhecido nas internas como Bibikas e Mutley, nos cedeu toda sua série Guarda Noturno que ele publicava diariamente num dos melhores sites de 1999: o 1999, claro. Para quem não vive o universo pop brasileiro (sic), alguns nomes talvez sejam estranhos. Então, dicionário:

*1999: a 1999 era uma página cujo slogan já dizia tudo: "Mais Que Música". Uma quantidade imensa de textos geniais, desde resenhas a contos pop, todos ainda disponíveis no endereço http://www.geocities.com/CollegePark/Hall/3340. Diversão em alto e bom som.

* Rodrigo Lariu: Chefão todo poderoso da gravadora independente Midsummer Madness. Figura controversa que cai bem naquele clichê "amor ou ódio". No pouco contato que esse editor teve com a figura, nada a reclamar.


* Midsummer Madness: Uma das principais gravadoras independentes do país, tendo no currículo a fina flor do indie nacional, como Pelvs e Cigarretes e muitas outras bandas legais. Lançou o The Gilbertos, primeiro álbum do projeto de Thomas Pappon, ex-Fellini, e acaba de lançar um dos melhores álbuns nacionais do momento, " Melodias de uma estrela falsa", do Astromato. Mais informações no endereço http://www.mmrecords.com.br.


* Stellar: Banda do selo Midsummer Madness.


* Malu Mader: Um dos melhores pares de coxa da televisão brasileira, casada com o guitarrista dos Titãs e dublê de roqueiro, Toni Belloto, que nas horas vagas traveste-se de romancista.


* "Algumas Pessoas Tentam Te Foder De Novo...': Festival organizado por Rodrigo Lariu, inspirado em uma canção b-sdide do Teenage Fanclub.


* Festar: Ato de sair de casa, ir para algum lugar abarrotado de gente e beber, fumar, falar besteiras, levantar a camisa e mostrar os pelos púbicos, farrear, ver e ser visto, resumindo, festar.