O
CEL & o Limite
Os
Outros, Os Outros Anos, O Mesmo Sonho
por
Carlos Eduardo Lima Foto; Site Oficial - Arte: S&Y
30/03/05
Houve um tempo em que um dos meus sonhos mais acalentados era
receber uma fita cassete gravada de uma ex-namorada que tivesse
me feito sofrer bastante. E nesta fita deveriam estar algumas
canções importantes dos tempos idos, alguns pedidos de perdão
implícitos, sendo que a primeira música do lado A deveria ser
Os Outros, do Kid Abelha. Sim é isso mesmo.
Por quê? Porque Os Outros é, sem dúvida nenhuma, um dos
mais intensos e fiéis retratos de uma relação de namoro que
já foram feitos na língua portuguesa em muito tempo. Exagero?
Pode ser, mas vamos entender os fatos.
O ano era 1985. Segundo ano do segundo grau. Colégio Santo Agostinho.
Para o Kid Abelha era o ano do segundo disco de sua carreira.
Educação Sentimental, o tal disco, foi lançado com a
responsa de suceder o debút multivendedor de Seu Espião,
que teve todas as suas músicas tocadas nas rádios da época.
Quase um trabalho conceitual sobre relações amorosas dos jovens
dos anos 80, Educação Sentimental tinha músicas perfeitas
sobre assuntos muitos pertinentes. Como se fosse um pretenso
manual de ensinamentos amorosos. O disco tinha na figura do
baixista Leoni a sua peça chave. Leoni era o compositor do Kid
Abelha e tinha um dom fora do comum para assumir a figura feminina
que era o centro da banda. Como Paula Toller, na época com cabelo
joãozinho e castanho, não sabia nem cantar direito, Leoni precisava
adaptar suas letras para que ela cantasse com máximo de verossimilhança.
E ele conseguiu neste disco pelo menos três perolas pop, que
se fossem feitas por algum grupo pós-punk ou new wave gringo
seriam hoje clássicos absolutos: Os Outros, A Fórmula do
Amor e Garotos.
Em A Fórmula do Amor Leoni, em parceria com Léo Jaime,
discutia se algumas artimanhas masculinas, como dançar bem,
ter um bom papo ou gestos exatos serviam alguma coisa na hora
de conquistar uma menina. Versos como "eu tenho o gesto
exato, sei como devo andar, um certo ar cruel, de quem sabe
o que quer tenho tudo preparado pra te conquistar" retratavam
os playboizinhos de então, com suas camisas Rock 85 da Company.
Já em Garotos, uma menina faz um inventário de
suas experiências amorosas listando todos os defeitos que os
jovens homens tinham na hora de assumir uma relação. "Garotos
fazem tudo igual e quase nunca chegam ao fim, talvez você seja
melhor que os outros, talvez quem sabe , goste de mim"
era o que Paula Toller cantava com ar blasé numa melodia singela.
Como quem realmente desesperançoso de algum futuro.
Mas é em Os Outros que o bicho pega mesmo. Aqui uma menina
faz declaração de amor cortante para o ex-namorado, despindo-se
de qualquer orgulho fútil (talvez o grande inimigo do amor,
mas isso já é outro papo), colocando o coração na garganta.
Poucas vezes ouvi em algum idioma algo tão singelo, sincero
e verdadeiro. Paula empresta o tom de sofrimento e melancolia
meio alegre, como quem tentasse eclipsar o sol com um grão de
areia, chegando a admitir a derrota como em "ninguém pode
acreditar na gente separado, eu tenho mil amigos mas você foi
meu melhor namorado" ou então "procuro evitar comparações
entre flores e declarações, eu tento esquecer (...) a minha
vida continua mas é certo que eu seria sempre sua (...) depois
de você, os outros são os outros e só". A música era tão
autenticamente feminina que era estranho um homem cantá-la,
mas quase dava pra pegar a tristeza no ar.
O Kid Abelha seguiu, sem Leoni, que formou os Heróis da Resistência e depois
lançou um belo disco solo ignorado totalmente pelo público. Hoje um trio, o
Kid é o tipo de banda que não se pode levar a sério se o seu caso é ouvir algo
relevante, mas há dezesseis anos a coisa era diferente. E quanto aos sonhos, a
tal fita cassete nunca veio, mas o meu sonho desde sempre acabou vindo
triunfalmente no ano passado, quando me casei com uma menina linda chamada
Renata.
Bem, isso era 2001. Há quatro anos. Renata se foi, nos separamos
no início deste ano. Latino, o mestre dos magos, fez Renata
Ingrata em homenagem. A vida segue, as músicas continuam
sendo dardos certeiros espetados em várias partes do coração,
como um vudu de desenho do Pica-Pau. O que importa realmente
é que a fita (hoje provavelmente seria um CD-R) ainda não veio.
E o sonho, que parecia ser realidade há quatro anos, ainda é
uma lacuna a ser preenchida na minha vida. Um dia, tenho certeza,
ela virá.
Nessa volta ao Scream & Yell, depois também de quatro anos, muita coisa mudou.
A vida veio e foi, o site veio e foi. E voltou. Fico feliz de estar aqui,
novamente.
Carlos
Eduardo Lima tem 34 anos, é caucasiano, apolítico, incolor,
inodoro e insípido.
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