O
CEL é o Limite
O dia em que mataram Apollo Creed
por
Carlos Eduardo Lima
15/07/06
Vou dividir algo muito sério com vocês, leitores. E pessoal também. Em 1986,
eu chorei quando vi
Apollo Doutrinador ser morto a socos por Ivan Drago, durante a primeira luta de
Rocky IV. De
verdade. Não adianta fazer cara feia de Carriers Du Cinema ou atitude blasé de
indiezinho que não
conhece o poder de Eye Of The Tiger. A morte de Doutrinador é uma tragédia
para o esporte e para
qualquer pessoa ingênua de 15 anos, dos anos 80. Eu era assim.
Digo isso porque revi Rocky IV na noite do último Reveillon, há quase um ano.
Ao contrário do que
muita gente pensa, essa noite não é necessariamente e inapelavelmente feliz para
todo mundo. Eu
estava no grupo anônimo dos não muito felizes e via, com certa satisfação, um
velho filme da minha
adolescência. Há metáforas poderosas na série Rocky. Pude notar isso, vinte
anos depois de chorar
(pouco, é verdade) pela morte de Apollo.
É uma tragédia, pois a luta era uma exibição entre um boxeador soviético (sim,
existia ainda a velha
URSS) e um ex-campeão de boxe americano. Um eslavo comunista e um negro
americano. Duas
indesejáveis personas do mundo oitentista, juntas na mesma arena, sob a batuta
de Ronald Reagan,
então presidente dos USA, do tipo W.Bush, ainda que um pouco menos burro.
Do lado de fora está Rocky Balboa, ítalo-americano, outra minoria indesejável,
para o sistema WASP
da América do Norte. No palco, antes da luta, está James Brown, sim, o
Godfather Of Soul, o
Haaaaaaaaardest Man In Showbusiness, fazendo uma apresentação de Living In
America, com sua banda
completa. E, pouco depois, Apollo jaz no ringue, logo no segundo assalto,
porque Rocky atende a seu
pedido de não interromper a luta, custasse o que custasse.
Rocky, o primeiro filme da série de cinco longas, foi
feito em 1977 e ganhou o Oscar de melhor filme e melhor roteiro
(escrito pelo próprio Sylvester Stallone). Nele, como uma música
de Bruce Springsteen, é contada a história de um americano zé
mané, burro, de bom coração, que trabalha como cobrador de um
agiota e que luta como amador nas horas vagas. Por uma reviravolta
do destino, Rocky Balboa acaba tendo a chance de enfrentar o
campeão mundial, Apollo Doutrinador. Apollo é o modelo do empreendedor
bem sucedido. Cuida de sua carreira, usa terno, tem sua negritude
esbranquiçada como uma aula de etiqueta da Motown dos anos 60.
Mas é o campeão. A luta é dura, os dois caem. Há uma revanche,
que Stallone ganha.
A metáfora que há em Rocky é para com a própria América. No primeiro filme,
vemos que ela é boa
gente, ainda que burra. No segundo, temos sua persistência colocada à prova,
diante das tentações
materiais da fama e fortuna pelas quais Rocky passa e se submeter. Temos a
evolução do Estado em
Rocky III, a preparação para o fim do comunismo em Rocky IV, com a derrota de
Ivan Drago em Moscou,
pelas mãos de Rocky, com direito a discurso pacifista no final e aplausos de um
sósia de Mikhail
Gorbatchev num palanque. Rocky V, de 1990, pós-muro de Berlim, é a volta dos
USA ao seu próprio
umbigo, resolvendo problemas internos, personificados pela decadência de Rocky,
as dificuldades de
adaptação de seu filho adolescente e a traição de seu pupilo, sucumbindo ao
dinheiro fácil de um
empresário picareta, que lembra muito o velho Don King, que empresariava dez
entre dez lutadores de
boxe na aurora dos anos 90, quando Tyson caminhava pela Terra.
Pode ser um monte de bobeira de gente de trinta e poucos anos sem ter o que
fazer ou pode fazer um
certo sentido. Não me importo muito com os Estados Unidos, talvez somente com
sua música, mas ver a
queda de Apollo no ringue de Las Vegas é tão sinistro e sintomático como ver a
queda do World Trade
Center da nossa adolescência. Não pelo impacto ou pela tristeza. Mas pela
certeza de que o
impossível está acontecendo e, droga, nada podemos fazer.
Carlos
Eduardo Lima, 36 anos, é caucasiano, apolítico, incolor, inodoro
e insípido. Autor do livro "Vestido
de Flor"
Contato: cel@rockpress.com.br
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