O
CEL é o Limite
Uma Carta De Amor Para O Acaso
por
Carlos Eduardo Lima
30/10/05
Leitor, antes de você começar a ler este texto, aqui vai uma pequena
recomendação: as palavras que vêm a seguir são encadeadas de forma meio
estranha, não necessariamente donas de senso ou significado. Ao mesmo tempo em
que são prenhes de sentido. Serve para todos e apenas para mim. Serve para
emoções serem palpáveis, para concretizar coisas que não são visíveis, mas
críveis e reais.
Não se escreve uma carta de amor para quem se quer dominar. Mesmo que o amor,
em uma de suas várias faces estranhas, signifique mais ou menos dominação.
Mesmo porque eu não queria dominar o acaso, eu queria ser o acaso. O elemento
surpresa, o décimo-segundo homem. Ser isso controladamente, seguramente. Ser
tão imprevisível quanto fosse capaz, mas ser tão preciso que pudesse medir.
Não estranhe a dificuldade de expressão, amigo leitor. Estou falando de amor.
Nada mais banal e ainda assim, impossível de entender totalmente. Ele muda de
cara todo dia, mas, hoje, o amor pra mim é um show de rock, por mais ingênuo
que isso possa parecer. É um solo de guitarra, o reconhecimento de uma canção,
o carinho na face, dado com a alma, o beijo que salva, resgata para o mundo
dos vivos, quem há muito parecia um mero resto de esperança à beira de uma
estrada.
Não se trata de estar apaixonado. Não se trata de paixão. Mas se trata.
Enquanto Elvis Costello, que, após 27 anos de carreira, veio para a minha
cidade abençoar os fatos e o acaso, eu preferia a mesa e cadeira do gelado
Main Stage do Tim Festival. Nada de pular lá na frente. Mas meu coração era a
bateria, o bumbo e a caixa. E ali o acaso controlado, quase ponderável, tinha
lugar. Alison, música de Costello que é uma referência constante na minha
vida, não fez sentido pela primeira vez. Que Alison? Nada disso. Eu estava na
primeira parte da música, aquela que Elvis não canta, mas subentende que
sempre existiu. O início. Nada de decepção, apenas a surpresa. O acaso com
cara de caso.
A cada música que era executada, mesmo as imprevisíveis, tudo parecia ficar
mais claro e menos casual. Menos medo, menos receio. Menos tristeza. Mais luz
no meio da escuridão. Beto Guedes já dizia que "o medo de amar é o medo de ser
livre", mas é compreensível que a liberdade nos assuste nos dias de hoje.
Todos sabemos que o medo é a maior constante dos relacionamentos desde o
berço, quando ainda precisam de um chocalho para sorrir. Deveria ser a falta
dele, mas, infelizmente, guardamos cicatrizes sob nossas armaduras de guerra,
feitas especialmente para a noite escura. Não temos coragem ou bandeira para
empunhar, ante o chamado para a batalha. Só que ... não há batalha. É uma
dança, uma brilhante dança de um casal inesperado, meio torto, meio
descompassado, com muita vontade de acertar o ritmo e seguir em frente, rumo
ao horizonte, não importa onde ele esteja. A idéia de dançar é que se acerte
com o tempo. Não se pode supor que todos sejamos bailarinos perfeitos num
salão de festas dourado, valsando como se estivéssemos no tempo do Império.
Requer prática, mas não muita habilidade. A dança vem, naturalmente.
No meio da chuva, no meio das pessoas, parece que há apenas o necessário para
o acaso agir, ou seja, apenas dois corações. Rumos que são distantes e que
nunca se cruzariam, perpendicularizam-se várias vezes, como se fossem leituras
de eletrocardiogramas de canções drum'n'bass. Corações que batem a 150 b.p.m
não são fruto do acaso, mas do pleno e total fato consumado. E vidas, sonhos,
céus nublados e os pingos dessa chuva acabam virando uma coisa só, no meio da
cidade que amanhece uma segunda-feira que deveria ser um domingo eterno.
Quando o ônibus a leva para o outro lado da cidade, lembro de Roberto Carlos,
cantando uma música de 1969, que diz "do outro lado da cidade, eu sei que a
felicidade está...Ainda vou saber exatamente onde ela vive e vou pra lá" e
penso que as ruas da cidade são como fronteiras de distâncias que não são
longas, se o acaso as encurtar o suficiente.
Eu já estive em lugares. Já vi mundos que nasceram e sumiram em pouco tempo.
Já fui até onde termina o bom senso e começa o destempero. Tudo o que aprendi
com essa jornada estranha e involuntária foi que não adianta temer. Talvez o
medo só adiante para saber a hora certa de fazer as coisas, mas tenho minhas
dúvidas. Minha natureza canceriana me aponta o caminho de casa. Casa latu
sensu. A casa ideal, com um cachorro no portão, quintal e sol. Teimo em pensar
que só é possível construir algo assim colocando o primeiro tijolo numa
cerimônia de inauguração qualquer. E há o tempo. Tempo de Einstein, relativo,
curvo e dobrando-se sobre ele mesmo. Assim como é capaz de curar tudo, o tempo
é o senhor do acaso. Por isso eu queria ser como o acaso. Ser um empregado do
tempo, cumpridor de suas ordens. Que o tempo, então, seja o construtor da
casa, os pingos da chuva, o mestre da dança, o medidor dos corações
drum'n'bass, o afinador das guitarras, o primeiro sorriso de Alison, Costello
nos bastidores, a mesa W do Main Stage e os ventos mornos que sopram das ilhas
que são governadas pelo mar. Que seja apenas isso. Amém.
Carlos
Eduardo Lima, o CEL, tem quase 35 anos, é caucasiano,
apolítico,
incolor, inodoro e insípido. Contato: cel@rockpress.com.br
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