ANOTHER
FIVE HUNDRED
Strike no documentário
por
Marco Antônio Bart
04/09/2003
Ganhou grande
destaque, há não muito tempo, uma polêmica
suscitada pela revista Forbes, e logo encampada aqui na terrinha
por nomes (in)suspeitos como Álvaro Pereira Jr., Olavo
de Carvalho e Ricardo Calil (do site nominimo.com)
sobre o filme "Tiros
em Columbine", de Michael Moore. Tratava-se o caso de "desmascarar"
as "mentiras" contadas por Moore na fita, que pretendia-se um
"documentário", mas que na verdade "manipulava", "mascarava"
e "omitia" vários dados e informações,
com o intuito de "ganhar" o espectador.
Ora, quem
sou eu para bater boca com qualquer um dos nomes citados acima.
Ou com a revista Forbes. Mas existem uma ou duas obviedades
gritantes sobre cinema que foram ignoradas no caso. Uma dessas
coisas diz respeito ao gênero documental, no qual Moore
se exercita em "Tiros em Columbine".
OK, um pouquinho
de semiologia tosca, pra começar: todo cinema – melhor
dizendo, toda obra de arte - tem uma função discursiva
subjacente, um sub-texto. No caso de um filme, isso poderia
ser lido como uma espécie de, digamos, "moral da história",
uma idéia que permeia a intenção final
do cineasta ao realizar a tal fita. Exemplificando, o sub-texto
de Orson Welles em "Cidadão Kane" era: o poder e a riqueza
não são garantias de felicidade, e podem mesmo
levar à solidão absoluta. O sub-texto dos irmãos
Wachowski em "Matrix" era: um comentário entre as cada
vez mais tênues fronteiras entre o real e o virtual no
contexto pós-moderno do terceiro milênio. O sub-texto
de David Fincher em "Clube
da Luta" era: uma caótica visão da decadência
moral do homem moderno, anonimizado e embrutecido pela sociedade
de consumo. O sub-texto dos irmãos Farrelly em "Débi
& Loide" era... bom, deixa pra lá.
Aceitando-se
isso, deve-se aceitar também que todo cineasta tem um
sub-texto na cabeça ao realizar um filme, ou seja, quer
comunicar uma idéia que ultrapasse a mera "historinha"
do roteiro e diga algo mais para os espectadores além
do tríptico começo-meio-fim. E que quanto mais
autoral (i.e., independente de amarras comerciais e corporativas)
for o cineasta, mais pessoal, intransferível e individualizado
será este sub-texto. É aí que entra o documentário.
Pois no documentário
o sub-texto é o próprio texto. Um cineasta resolve
fazer um documentário para comunicar, de forma ainda
mais clara e explícita que num filme de ficção,
uma determinada idéia. Uma "tese", digamos. A fé
do cineasta nessa "tese" e sua vontade de transmití-la
ao público são tão grandes que ele prefere
abdicar das parábolas e metáforas que um roteiro
ficcional ofereceria. Ele parte para coletar cenas reais, que
serão usadas para enriquecer a “defesa” de sua "tese".
"Disfarçado" de registro da realidade, o documentário
na verdade é o mais discursivo e parcial dos gêneros
cinematográficos. Ele é pura organização
de idéias em forma de cinema. O potencial ideológico
disso nunca escapou a nenhum cineasta digno de seu nome. Pioneiros
como Eisenstein e Leni Riefenstahl não me deixam mentir.
Já
aí reside a primeira desonestidade (pois não dá
para crer em ingenuidade) das críticas a "Tiros em Columbine".
Ora, qualquer "jornalista cultural" que valha as calças
que veste deveria também ter isso tudo que expliquei
acima em mente antes de dizer que Michael Moore "faltou com
a verdade" em seu documentário. Porque um documentário
nunca mostra "a" verdade, ele mostra uma verdade; a verdade
de quem o dirigiu. Não há documentário
algum que se encaixe nesse padrão de "verdade" que os
críticos de "Columbine" cobram. Todo documentário
se organiza de acordo com as regras fundamentais do cinema,
uma das quais é a montagem – o processo de escolher e
organizar as imagens do material bruto filmado. Só nesta
etapa, o cineasta já pôs o dedo na "verdade" mostrada
na tela e a filtrou. Ao escolher um determinado ângulo
ou movimento de câmera, ou fundo musical, ou ao preferir
o depoimento A ao depoimento B, o cineasta já não
colocou toda a "verdade" em seu filme. Portanto, em maior ou
menor medida, todo documentário "manipula", "mascara"
e "omite" a realidade, ou fragmentos dela. Moore não
fugiu a essas premissas e tratou de pinçar momentos,
diálogos e situações que mais se adequassem
a seu sub-texto: um panorama de como a fixação
da América branca por armas é um sintoma da truculência
e do conservadorismo tacanho do ianque mediano, com reflexos
na própria política exterior dos EUA.
Sendo assim,
os únicos filmes realmente dignos do termo "documentário"
seriam as radicais fitas rodadas por Andy Warhol nos anos 60
– ele pegava a câmera, mirava para um ponto fixo e deixava,
deixava, deixava... Saíram desse método filmes
como "Empire", composto de um único plano (de oito horas
de duração!) mostrando o topo do Empire State
Building. Isso é documentário. Mas quem quer ver
isso?
Não
é possível que os críticos de "Columbine"
ignorem essas questões. Sobraria então uma certa
má-vontade com o filme, decorrente, óbvio, de
desacordos ideológicos com o que está sendo colocado
na tela. Até aí, beleza. Ninguém é
obrigado a concordar com as idéias de Moore. É
a hora então da segunda desonestidade. Sabendo-se que
o documentário é por definição um
gênero que dá margem a discursos politizados, e
conhecendo-se de antemão a virulência de Moore
contra o conservadorismo direitista da(s) era(s) Bush, o que
mais poder-se-ia esperar de um filme como "Tiros em Columbine"?
Porrada no establishment, é claro. Acho mesmo que Moore
nem quis "catequizar" ninguém com o filme, e sim, mais
uma vez, pregar para os já convertidos. Imbecil
seria o crítico que saísse surpreso com o conteúdo
do filme. Mas os críticos da fita demonstram-se indignados
com a forma do filme. (No caso dos brasileiros que ecoaram as
críticas da Forbes, à desonestidade pode-se juntar
a uma tremenda vontade de ser "do contra" só pra aparecer
– e também de macaquear a imprensa gringa.)
Levantar questões
como "traição à verdade" em relação
a Columbine é chover no molhado; é rebater com
um discurso conservador outro discurso pseudo-subversivo (pseudo
sim, pois afinal Moore depende das corporações
que ele tanto xinga para fazer seus filmes chegarem aos cinemas).
Mas usando argumentos desonestos e distorcendo noções
de linguagem cinematográfica para detratar a obra de
Moore. Pior ainda, ficar esperneando que "ah, tal cena não
aconteceu na vida real como foi mostrado no filme" é
manter-se ao nível da picuinha, do detalhezinho revanchista.
(Releia o quinto parágrafo, se ainda não ficou
claro o que acho sobre o gênero documental.) Discuta-se
o quanto quiser as bandeiras levantadas pelo cineasta com seu
filme; mas não se pode fechar os olhos para os méritos
artísticos e a coerência de Columbine. Michael
Moore provou ser um dos cineastas mais inteligentes em ação
nos EUA hoje, fazendo um filme tão divertido e ágil
quanto eficaz e convincente no plano ideológico. Cabe
à direita não discutir os méritos do filme,
e sim correr atrás do tempo perdido e achar um "Michael
Moore" disposto a divulgar as idéias deles com tanta
elegância, contundência e bom humor.
Fale
com o colunista em mab@cliquemusic.com.br
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