Entrevista - Fred Zero Quatro (Mundo Livre S/A)
por
André Azenha
Foto: Marcelo Lelys
Email
13/10/2006
"Eu voto em Lula, continuo acreditando. (...) A relação das regiões
mais ricas com o Nordeste sempre foi a mesma da Europa com a África,
colonização interna, tipo assim: 'Vocês devem produzir tudo que
a gente precisar, não podem vender pra mais ninguém, se vender é
pelo preço que a gente mandar e vai ter que comprar tudo que a gente
fizer'. É colonização. Quem mora aqui e sempre teve presidente paulista
ou mineiro, não tem idéia do que Lula representou para o Nordeste.
Pra você ter uma idéia, Lula bateu o recorde de Juscelino, na abertura
de novas universidades e extensões universitárias. (...) eu lembro
o velho Josué de Castro, que dizia que cada vez vai ser mais complicado
dormir pra mais da metade da população, ou porque está com fome
ou porque está com medo de quem está com fome".
As palavras acima são de Fred Zero Quatro, frontman do Mundo Livre
S/A. Ele é o cara. Foi ganhar os primeiros holofotes ao liderar
junto com Chico Science o movimento Manguebeat, nos anos noventa,
quando a turma de Recife resolveu apontar um novo caminho para a
música pop brasileira, mostrando que era possível criar um som original
e inteligente, fugindo das letras engraçadinhas de duplo sentido.
O trabalho em questão foi Samba Esquema Noise, de 1994, que
se não conseguiu a mesma repercussão que Da Lama Ao Caos
(de Science com a Nação Zumbi), surgiu como um trabalho mais bem
acabado, triturando punk com cavaquinho em ótimas canções como Cidade
Estuário e Terra Escura.
Talvez pelo fato do estouro da cena recifense ter-se dado apenas
no meio da década passada, muita gente não saiba que a história
da banda começou bem antes, em 1984. Desde então, Fred fez parte
do movimento punk, tocou, ralou e afiou sua trupe. Ganhou notoriedade
como autor de letras afiadas, fez parte de gravadora grande, e voltou
ao mundo que tem a sua cara, o independente. Fundou o próprio selo
(Ôia Records) e seguiu em frente, utilizando com sabedoria os meios
que dispõe, lançando músicas pela Internet como Caiu a Ficha,
que teve mais de 54 mil downloads na época de seu lançamento, e
Dogville, Coleiras e Bombeiros, uma misto de homenagem ao
filme de Lars Von Trier e tiração com Luma de Oliveira, quando a
moça adotou uma coleira com o nome do então marido. “O brasileiro
não vale nada / tem obsessão por brincadeira / A mais formosa (encoleirada)/
sente atração por mangueira...” diz a letra esperta.
Atento a tudo que rola, inquieto e jamais baixando a cabeça para
as dificuldades do mercado, Fred, escudado por seus parceiros, soltou
na praça no ano passado Bebadogroove (que já vendeu três
mil cópias só nos shows), lançado (pelo Ôia) em formato EP, com
seis faixas que radicalizam nos grooves e experimentos sonoros,
mas que mantém o faro afiado da banda, em faixas como Laura Bush
Tem Um Senhor Problema (perdida entre problemas com ‘doleiros,
pitboys poetas, bêbados e Ronaldo – o Fenômeno), Abrindo o Coração
Para Uma Cadela Chapada e Bêbada (que após versos como ‘48 quilos
de melancolia / E elegendo o cretino da vez / Engraçado pois o traste
já imaginava mesmo / Como você pareceria sem o litro de Malte my
lady / Como você pareceria sem o genérico Paraguai / Sem o maltado
escocês’, o vocalista canta: ‘Então relaxa, balança, chacoalha,
dança’) e a própria Dogville...
Em entrevista ao S&Y, após show com lotação completa no Sesc de
Santos, Zero Quatro explicou a escolha pelo formato EP, listou o
que tem rolado de bacana na cena musical recifense, comentou o vídeo
de Daniela Cicarelli, falou dos projetos da banda (que incluem dois
clipes a serem lançados) e alertou aos jovens músicos para a importância
da Internet. Ele ainda disse esperar que o “Ôia” sirva de canal
para novos artistas e aproveitou para dissertar sua verve política
(nas apresentações, o Mundo Livre costuma tocar Tha Clash, influência
punk do músico) confirmar seu voto em Lula, mantendo a esperança
de que o Brasil ainda possa ser um bom país para a próxima geração.
Abaixo, o bate-papo completo.
Por que a opção por lançar o trabalho no formato EP? Como vem
sendo a recepção do público?
Não tivemos tempo de fazer um álbum completo e foi o primeiro disco
que não teve nenhum produtor, foi completamente autônomo, produzido
pela gente e pelo nosso selo. Nós registramos as músicas e tudo.
Levou muito tempo até chegar a esse processo de maturidade e experiência
e acho que até pelo fato de ser um formato reduzido, se tornou algo
mais oportuno e adequado.
E facilita até comercialmente para a banda e o público...
Facilita e também circula com mais facilidade, porque o preço acaba
mais acessível para o consumidor. E a resposta desde o primeiro
show foi excelente.
O selo "Ôia" cuida apenas do Mundo Livre ou apóia novas
bandas?
A idéia inicial era cuidar só do Mundo Livre, mas com o tempo fomos
percebendo que depois que conseguimos um circuito de parcerias pra
que a coisa andasse com mais fluência, como agora que fizemos parcerias
com a Monstro e a Tratore – para distribuição -, acho que vai ficar
um pouco mais fácil da gente começar a servir um pouco como canal
lá em Recife para as coisas legais, não só em Pernambuco, mas em
Belém, que tocamos com bandas legais, Acre, Macapá e tal. A gente
acha que não de uma forma de se tornar uma grande empresa produtora
de discos, mas à medida que a gente puder utilizar os canais pra
dar um empurrão pra algumas bandas, será interessante.
O que tem rolado de bom lá em Recife?
Aqui mesmo tem o representante de um projeto bacana, que é a Academia
da Berlinda. Tem o Tom Rocha, o Variante, projeto do Bactéria. Tem
música instrumental de ótima qualidade como o GNA, uma música experimental,
e tem rolado música legal em vários estilos, música eletrônica,
sem falar do próprio DJ Dolores, Maciel Salú e o Terno do Terreiro,
Azabumba, no interior tem Sangue de Barro. Tem um monte de coisas
que com certeza eu vou estar esquecendo, mas não tem nem como acompanhar
tudo que está rolando.
Gosta de Mombojó, cujo som tem influência do Mundo Livre?
Mombojó... (sorri, mas não comenta nada). Acho que tem uma galera
nova. O legal é que muita coisa rolou, houve uma transformação,
uma geração nova que chegou, mas o princípio que a gente defendia
desde o início, que era a diversidade, continua presente inclusive
no público. Tem público pra tudo, pra choro, pra música de raiz,
pra hardcore, underground, todo o tipo de som e isso que é massa.
Estamos perto da eleição (a entrevista foi feita antes do resultado
do primeiro turno). Você tem letras com engajamento e uma postura
política. Os Ratos de Porão assumem que não votam em ninguém. Você
vota em quem? O Mundo Livre pode ser considerada uma banda política?
Todas as bandas são políticas. Essa posição dos Ratos de Porão é
altamente política. Ninguém escapa a isso aí, nada mais político
do que você ser apolítico. Eu também venho de uma militância punk,
digamos assim, onde defendia conceitos anarquistas e tal, e acho
que até por princípio, posso dizer que ainda defendo ideais libertários
e anarquistas, mas um país com o Brasil e uma região como a América
Latina, onde você tem tanta gente vivendo numa situação de idade
média, o anarquismo fica como uma coisa meio utópica, mas eu sinto
um compromisso com uma realidade concreta de manter uma posição
que eu considero a responsável e coerente com os compromissos que
a gente sempre teve no que diz ao social. Então eu voto em Lula,
continuo acreditando. Acho que principalmente quem não é do Nordeste,
não tem a menor noção do que representou esse primeiro mandato de
Lula, tanto é que ele está com praticamente 70%, 75% nas pesquisas
(na região nordestina). Inclusive muitos prefeitos e governadores
tucanos e oposicionistas reconhecem que nunca houve tanta coragem
de investir no Nordeste, e só agora a gente sabe o que faz a diferença
de ter um presidente que não vira as costas para sua região. Hoje
eu vejo o César Maia dizendo que o Lula não gosta do Rio, aí o Alckmin
falando que deve investir muito em São Paulo, que enquanto São Paulo
vai bem, o Brasil vai bem, e foi essa posição que manteve o Nordeste,
o Norte e outras regiões como colonizadas dentro do próprio país.
A relação das regiões mais ricas com o Nordeste sempre foi a mesma
da Europa com a África, colonização interna, tipo assim: “Vocês
devem produzir tudo que a gente precisar, não podem vender pra mais
ninguém, se vender é pelo preço que a gente mandar e vai ter que
comprar tudo que a gente fizer”. É colonização. Quem mora aqui e
sempre teve presidente paulista ou mineiro, não tem idéia do que
Lula representou para o Nordeste. Pra você ter uma idéia, Lula bateu
o recorde de Juscelino, na abertura de novas universidades e extensões
universitárias. A diferença é que enquanto Juscelino abriu dezenas
de universidades só no Sudeste, nas capitais e no interior, é só
ver em Campinas, Bauru, Uberlândia e por aí vai; Lula bateu o recorde
de Juscelino só com universidades no Nordeste, principalmente no
interior. Isso vai representar muito para o povo nordestino. Muita
gente diz que Lula traiu as bandeiras e tal... Acho muito ridículo
esperar que quinhentos anos de hegemonia da elite mais irresponsável,
você querer que em quatro anos o cara consiga responder a todas
as demandas.
Nesse contexto, o Brasil tem jeito? Num país como o nosso de
tantas disparidades, os artistas devem ter uma posição político-social?
Eu nunca acreditei tanto que o Brasil é viável, apesar da imprensa,
desculpe a franqueza, apesar da elite que a gente tem, que foi a
ultima que aboliu a escravatura, que é a mesma que chama a Bolsa
Família de esmola, sendo que no mundo todo existe assistência social,
nos Estados Unidos tem um cartão de assistência que é constitucional,
essa mesma elite que foi a última a abolir a escravatura é a que
diz que a Bolsa Família é esmola. E a esmola era antes, quando milhares,
milhões de famílias do interior nordestino iam pedir esmola nas
prefeituras e agora eles têm o cartãozinho, que a constituição dá
o direito. Então, apesar da elite que temos, da concentração da
comunicação e da imprensa, eu nunca detectei tanto que ainda o meu
filho de quatro anos, tem a chance de pegar um país muito melhor
do que a minha geração pegou. E quanto à questão do compromisso
político, toda América Latina, num planeta que tem regiões como
a África, grande parte da Ásia, na situação atual, é como eu lembro
o velho Josué de Castro, que dizia que cada vez vai ser mais complicado
dormir pra mais da metade da população, ou porque está com fome
ou porque está com medo de quem está com fome.
Já que você falou da imprensa, "Dogville, Coleiras e Bombeiros",
é uma música que além de ser inspirada no filme de Lars Von Trier,
cita o ocorrido com a Luma de Oliveira, que colocou uma coleira
com o nome do marido e que a mídia alardeou muito, uma história
tão boba. O assunto do momento é o vídeo da Cicarelli. Isso daria
uma boa música?
Cara, podia dar sim, uma coisa interessante pra fazer, uma charge
musical, mas não no mesmo tom, no mesmo enfoque que está sendo colocado,
mas tentar colocar o quão patética é essa discussão em torno do
vídeo, que sinceramente eu nem vi. Podia dar sim, mas não me senti
nem um pouco inspirado pra fazer nada. Acho interessante hoje uma
banda que seja uma boa referência pra boa parte da juventude, sempre
que tiver alguma coisa interessante pra dizer sobre algo que está
todo mundo falando, usar como exemplo, a Internet, como fizemos
no caso de Dogville, pra explorar esse lance da urgência.
Para alguém como eu que sou formado em comunicação, seria algo quase
utópico imaginar na minha época de estudante uma ferramenta como
é hoje a Internet, pra alguém que tem uma força de expressão, pra
galera poder comentar direto, on-line.
O caminho melhor a ser seguido é o independente?
É veio, acho que não tem uma receita, a galera tem que ocupar cada
vez mais esses espaços alternativos que estão surgindo. Tem uma
banda nova lá de Recife que mal tem demo, mas conseguiu fazer um
clipe, colocou no orkut e está bombando, inclusive o clipe foi proibido
por ter umas cenas, a banda tem poucos meses e já está até excursionando
no Sudeste por causa do clipe. Não há uma receita e acho que nunca
se teve tanto acesso aos meios e canais de produção e expressão
como se tem hoje. A geração mais nova é privilegiada nesse sentido
de comunicação, então é procurar se expressar da forma mais espontânea
e urgente possível.
E os próximos projetos da banda?
Já foram quase três mil cópias vendidas apenas em show, e agora
vamos começar a distribuir o CD em lojas e continuar vendendo em
shows. Tem dois clipes prontos. Estamos até negociando o lançamento
de um deles com a MTV e outros canais. Ambos foram feitos em película
com mega-produção, Laura Bush com um Senhor Problema e o
outro é Carnaval Inesquecível na Cidade Alta. E tem uma boa
possibilidade ainda esse ano de fazer algumas coisas a nível internacional,
França, Portugal e tal. Há uma coletânea que acabou de sair pela
Luaca Bop com música nossa. É continuar bombando aí essa coisa de
estruturar o selo e como eu falei, talvez nos próximos meses; ou
lançar o segundo produto do selo que já tem material inclusive suficiente
pra um álbum. É seguir com o trabalho, temos um blog que está no
ar que é o www.diariodomundolivre.blogspot.com onde está a agenda
oficial da banda, tudo que é oficial da banda, mas isso é uma coisa
transitória enquanto o site que está com a página principal pronta,
não está todo no ar. Já tem um grande portal interessado em ser
o hospedeiro do site.
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