"A Ghost Is Born", Wilco
por Marcelo Costa
maccosta@hotmail.com
23/12/2004

No momento em que escrevo esta resenha, A Ghost Is Born, quinto disco da carreira do Wilco, lançado no primeiro semestre de 2004 e ainda inédito no Brasil, lidera a votação de Melhor Álbum do Ano na comunidade S&Y no Orkut com cerca de 25% da totalidade dos votos. Uma passada rápida no Google, busca em língua portuguesa, aponta praticamente 100% de resenhas totalmente elogiosas ao disco. É neste momento que coloco o "ovo" no prato do cd-player e percebo que alguma coisa está muito errada com o mundo, ou comigo mesmo. A Ghost Is Born é chato, chato, chato, chato, chato e chato. Ou seja: achei ruim um disco que todo mundo está achando bom.

Esse antagonismo de opiniões exibido acima permite algumas análises. A primeira, e mais clara, é de que a minha opinião não reflete a da maioria, o que a liberdade de expressão e a democracia avalizam, mas a razão julga como não convencional. Não sou dono da verdade absoluta, mas sou dono da minha própria verdade. Por outro lado, o antagonismo de opiniões também reflete desinformação, fanatismo e, claro, apreço por desconstrução das melodias. Dos três tópicos da frase anterior, apenas o último pode ser validado como opinião, já que cada um tem todo o direito de gostar do que quiser. Cada pessoa tem uma reação própria diante de um "objeto de arte", levando em consideração o seu passado e seu histórico pessoal, o que explica muitos gostarem de Skol e outros preferirem Brahma (no meu caso, Bohemia). Tudo é permitido desde que a razão, mesmo escancaradamente passional, aliada a informação, guie a opinião. Já a desinformação e o fanatismo tendem a distorcer o objeto de estudo.

Como exemplo de desinformação, temos este A Ghost Is Born. Não houve, em 99% dos textos que falavam sobre o álbum, alguém que mencionasse a saída do guitarrista/tecladista Jay Bennett (quem????) da banda após o difícil parto de Yankee Hotel Foxtrot, em 2002. Para entender a importância de Bennett no som do Wilco é preciso voltar no tempo. Quando Jeff Tweedy e Jay Farrar decidiram colocar um ponto final no Uncle Tupelo, a banda já gozava de uma certa popularidade no meio underground. E enquanto Farrar teve que se virar para montar outro grupo, Tweedy continuo tocando com os mesmos caras da última formação do Uncle Tupelo, só mudando o nome da banda para Wilco. No primeiro disco, A.M. (1995), Tweedy praticamente assinou tudo (com exceção de It’s Just That Simple, do baixista John Stirrat), apoiando-se no flerte do country rock tradicional com o rock alternativo. O duplo Being There (1998) antecipava o período de experimentações que viria depois já na faixa de abertura, a maravilhosa Misunderstood, mas não abandonava o country, bastante presente no disco.

É Being There que marca a entrada de Jay Bennett na banda, responsável por guitarras (junto com Tweedy), teclados, órgãos e harmônica. Novamente, Tweedy faz da banda seu objeto pessoal e assina todo o repertório, mas os arranjos são coletivos. A grande mudança acontece em SummerTeeth (1999). As músicas são creditadas aos quatro integrantes (Tweedy, Bennett, Stirrat e o baterista Ken Coomer) e marcam um novo rumo na carreira do grupo: o country se transforma em altcountry escancarando as melodias sessentistas que passeiam pelo disco. A badalação da crítica expõe a banda para um público maior, e começa a rachar o Wilco. Primeira baixa: Ken Coomer larga as baquetas no meio das gravações do disco seguinte, Yankee Hotel Foxtrot (2002), álbum que foi jogado no lixo pela gravadora Reprise, controlada pela Warner, resgatado em seguida pela minúscula Nonesuch (distribuida pela Warner) para atingir a marca de 1 milhão de cópias no mundo todo.

É em Yankee Hotel Foxtrot que fica mais latente a influência de Jay Bennett no som da banda. Das onze faixas, Jeff Tweedy só assina três sozinho. As outras oito carregam a assinatura Bennett/Tweedy. Sintomaticamente, as duas "suítes" do álbum (a faixa que abre, I Am Tryng To Break Your Heart, e a que fecha, Reservations) são de Tweedy. Além de levar o Wilco para uma sonoridade mais, ahñ, pop, Bennett conseguia conter a fúria criativa de Tweedy e transformar tudo isso em canções como Kamera, Radio Cure e War on War, só para citar três exemplos. Porém, o processo criativo de Yankee Hotel Foxtrot esgotou o relacionamento Tweedy/Bennett. Falou mais forte a voz do chefão Jeff, que demitiu Jay. A saída do guitarrista fez com que o Wilco perdesse o apreço por melodias pop e grande parte de sua racionalidade. Nas mãos de Jeff Tweedy, o Wilco se transformou em um dinossauro setentista apaixonado por solos de guitarra, kraut-rock e desconstrução melódica.

A mudança de rumo se deu quanto o produtor (e quinto Sonic Youth) Jim O’Rourke assumiu a produção de Yankee Hotel Foxtrot, abrindo a cabeça de Jeff Tweedy para outros sons, outras batidas, outras pulsações. O processo de desintegração da banda aconteceu logo após o lançamento de Yankee. A banda saiu em uma mini-turnê de divulgação, enquanto Bennett arrumava as malas. Tweedy encarou shows solo e, no meio da loucura, ainda se viciou em remédios e armou um projeto paralelo com Jim’O Rourke e com o novo baterista do Wilco, Gleen Kotche, chamado Loose Fur. O primeiro álbum do Loose Fur foi lançado em agosto de 2003 e combina a paixão pelo country de Tweedy com a queda por microfonia de O’Rourke, funcionando, na verdade, como um embrião do que viria a ser o quinto disco do Wilco.

Sem Bennett, e com O'Rourke, A Ghost Is Born acabou funcionando com um álbum perfeito para os fãs mais radicais: um disco difícil, em que Tweedy deixa de emular o Neil Young country para se espelhar no Neil Young roqueiro de longos solos improvisados. Quem se apaixonou pela banda nos dois discos anteriores vai estranhar. Quem acha que Coldplay e Keane são tristonhos, poderá averiguar o verdadeiro sentido da palavra melancolia com A Ghost Is Born. Porém, falta consistência ao álbum. Tweedy compôs várias metades de canções tentando completar o buraco com os arranjos. É isso que deixam transparecer faixas como At Least That's What You Said, por exemplo. At Least That's What You Said abre o disco de forma pálida e sussurada. Também, pudera: ele se aproxima dela na cama e ela começa a chorar, diz a letra. Se você estiver distraído, só perceberá que a canção começou após uns 30 segundos. Tweedy se rende ao solo de guitarra ali pelos dois minutos, e fica solando mais três minutos e meio. At Least That's What You Said é uma das grandes canções do disco.

Hell Is Chrome é totalmente Neil Young, do piano ao solo de guitarra até a atmosfera densa da letra. Spiders (Kidsmoke) ultrapasssa os dez minutos e parece sobra do Loose Fur. Lembra Spacemen 3 e o Sonic Youth de Sonic Nurse. O’Rourke duela nos solos (chatos) com Tweedy. Bonitinha, Muzzle of Bees parece saída das sessões do Led Zepellin 3 enquanto Hummingbird e Company in My Back (as duas melhores músicas do disco) se apóiam no Wings de Paul McCartney e descartam os excessos das canções anteriores. O mesmo não ocorre com Handshake Drugs, que começa muito bem e se perde lá pelo meio, e Wishful Thinking, que tropeça no início mas se acerta depois. Handshake Drugs, inclusive, não é novidade para o fã completista, tendo sido lançada como bônus na versão australiana de Yankee Hotel Foxtrot (versão dupla, com um CD bônus de seis faixas, todas inéditas). I’m a Wheel é outra canção assombrada pelo fantasma do velho Macca. Theologians é uma das poucas canções no álbum que lembra alguma coisa dos discos anteriores, talvez algo de How To Fight Loneliness e Radio Cure. "Teólogos não sabem nada sobre a minha alma", canta Jeff Tweedy na boa letra. Lest Than You Think começa suave, mas se agarra nas guitarras e larga o instrumento só lá pelo décimo quinto minuto. The Late Greats fecha o disco com violões para provar que Tweedy ainda se lembra como cantar um bom country quase tradicional, carregando no sotaque caipira americano.

A Ghost Is Born não é um disco ruim. Até cresce nas audições seguintes. Sobretudo, serve para provar que mais do que os Beatles, Tweedy ama mesmo Paul McCartney. E Neil Young, como todos já sabiam. Porém, os excessos da produção acabam por tornar chatas algumas canções que tinham um futuro promissor, transformando um disco que tinha tudo para ser bom em não mais que mediano. Em teoria, parece que Tweedy quis fazer o seu Kid A, um disco difícil que afastasse puxa-sacos, fãs chatos e público médio após o sucesso de Yankee Hotel Foxtrot. Na prática, porém, não funcionou. A essa altura do campeonato, qualquer coisa que venha com a assinatura do Wilco será louvado como o objeto mais maravilhoso de que se tem notícia. O sucesso tem suas armadilhas. Toda unanimidade é burra. Tweedy não deve conhecer Nelson Rodrigues, mas sabe muito bem disso, e está querendo fugir do cerco que o aprisiona, dos fantasmas que não o abandonam. Apaixonado que é por música de vanguarda, Tweedy pode radicalizar ainda mais nos próximos discos. É uma luta que ainda está em seu primeiro round. A gente volta a conversar quando ele lançar um Amnesiac e, em seguida, um Hail To The Thief, prometo.

Leia também:
Loose Fur, do Loose Fur, por Marcelo Costa
Faixa a Faixa: Yankee Hotel Foxtrot, do Wilco, por Marcelo Costa
Faixa a Faixa: SummerTeeth, do Wilco, por Marcelo Costa

Site Oficial do Wilco