Renato Teixera
por
Leonardo Vinhas
leonardo.vinhas@bol.com.br
22/07/2003
A maior parte da "mídia pop"
- revistas, sites e cadernos culturais - costuma se referir a muita coisa
que foge de seu universo anglicizado ora com muxoxos convencionais de "respeito",
ora com delírios de antropologia e tipificações, isso
quando não pratica o vilipêndio. Nenhuma dessas atitudes oculta
a preguiça que há em conhecer outro tipo de música.
Assim, segmentos totalmente diferentes dentro de culturas claramente distinguíveis
acabam se fundindo em termos medíocres como "música de raiz",
"música tradicional", "folclore", "world music" e afins.
Renato Teixeira só não
é vítima constante desse mal porque é ignorado pela
grande mídia. Ainda assim, nas raras vezes que seu nome aparece,
é sempre associado ao rótulo "música caipira", em
grande parte por causa do megasucesso "Romaria" ("Sou caipira, Pirapora/
Nossa Senhora de Aparecida"...). Mas já se vão longínquos
vinte e cinco anos desde que essa pérola foi feita, e há
bem mais na carreira do cantor e compositor que mantém seu resgate
de modas de violas aliado à tradições contemporâneas
há quase trinta anos com uma regularidade impressionante na qualidade
de suas composições.
Dono de uma lúcida visão
e de total domínio sobre o que faz, o Menestrel de Taubaté
conversou brevemente com o Scream & Yell minutos antes de um espetáculo
conjunto com Pena Branca (ex-parceiro do falecido Xavantinho, dupla que
também merece louros bem maiores que os habitualmente conferidos),
e se surpreendeu com o conhecimento da indústria cultural demonstrado
pelo Trovador, conhecimento mais apurado e contundente que o de muitos
teóricos frankfurtianos que brincam por aí. Involuntariamente,
Renato legou lições que servem inclusive para nosso inflado
(em ego e idéias prontas) meio musical, indpendente ou não.
S&Y - Você se considera
um músico nativista?
Renato Teixeira - Não, de jeito
nenhum! O que eu faço... é uma coisa contemporânea,
né? No final dos anos 60, teve essa coisa de recuperar a música
da Era do Rádio, coisas sertanejas mais antigas, para que todo esse
espírito musical, essa teoria musical que se desenvolveu não
se estagnasse, para não ficar só gravando o que já
tinha sido feito, não se deixar influenciar por isso (o passado),
projetar uma música contemporânea. Mário de Andrade
já cobrava isso!
E incomoda ao senhor a associação
com esse tipo a música caipira, principalmente graças à
"Romaria", que acabou sendo uma música emblemática de sua
carreira?
Não, a identificação
é total, até porque é uma influência nossa,
é uma coisa antiga, dos romeiros, uma coisa caipira mesmo. Não
caipira somente como Jeca Tatu, Tonico e Tinoco... Tião Carreiro
e Pardinho! É isso também, mas é Tarsila do Amaral,
Monteiro Lobato, Mazzaróppi, uma série de intelectuais, inclusive
o Sérgio Buarque, o próprio Fernando Henrique Cardoso (N.:
sim, um dia esse "ex-sociólogo" já exaltou a cultura caipira),
o Antônio Cândido. São pessoas que viveram esse universo
e aumentaram sua cultura, projetaram sua vida intelectual a partir dela.
A classe média - pessoas que apenas labutam, não têm
nenhuma atividade cultural - não compreendem isso, não têm
essa visão. É uma visão superficial, e às vezes
(a classe média) se deixa levar pelo poder da mídia, que
pegou as duplas caipiras, mas não quis ceder às duplas caipiras,
não quis ceder à cultura caipira, e transformaram nessas
duplas sertanejas que cantam Bee Gees.
(risos) Que não têm
absolutamente nada de sertanejo.
Exatamente.
E dentro desse espírito
de "apropriação", o que o senhor achou da versão rock
que a banda valepraibana Dotô Jéka fez para "Romaria"?
Achei uma coisa linda! Fizeram uma
gravação ousada, corajosa, instigante. Tudo isso é
um aspecto da cultura que é muito importante
O senhor sabia que há uma
banda de rock de São Carlos, o McQuade,
que declara abertamente ser influenciada pelo senhor e por Pena Branca
e Xavantinho, de quem costumam tocar "Cuitelinho"?
Não sabia, mas... se
você ver a quantidade de violeiros que há hoje no Brasil por
causa do Almir Sater, pelo próprio trabalho nosso (meu e do Pena)...
"Romaria" foi composta em 1978, até hoje toca - quer dizer, nós
já somos uma expressão nacional. Nosso trabalho é
baseado na música do sertão, mas não é música
caipira, não é esse termo hediondo chamado "música
de raiz", é... É como se ela (a música sertaneja)
tivesse continuado.
Até porque "música
de raiz" é um rótulo muito preconceituoso
Extremamente preconceituoso e de mau
gosto. Tem duas coisas que eu odeio, duas expressões de que eu não
gosto: "música de raiz" e "galera".
Por que são palavras que
não querem dizer nada, não é?
(Concorda com a cabeça, sorridente).
O senhor acha que o trabalho desenvolvido
pelo senhor e por sua geração possa ganhar continuidade de
alguma forma em algum artista novo?
Sem dúvida nenhuma. O que acontece
é que isso (meu trabalho e o dos meus contemporâneos) é
uma realidade, uma imensa realidade de público, que toca no Brasil
todo. Apenas ainda não encantou a mídia. A mídia continua
no rumo para o fundo do poço. Quando isso acontece, é um
bom sinal, porque daí tem que haver uma reversão. Quando
vier essa reversão, aí ela a mídia vai ver que existe
muita coisa. Nessas pessoas que estão, por assim dizer, off-media,
se encontra uma quantidade expressiva de bons músicos, de bons compositores,
que estão trabalhando conscientemente. Isso é uma prova de
que a coisa não pára, apenas a informação é
que é superficial. Tem muita informação que é
corrompida, comprada... articulada.
http://www.renatoteixeira.com.br/
Poucos minutos após essa conversa,
Renato subiu ao palco para, ao lado de Pena Branca, emendar versões
perfeitas de "O Cio da Terra", "Canção À Morena da
Praia", "Romaria" e outras. Sozinho, bastou uma empolgante interpretação
de "Amanheceu (Peguei a Viola)" para a maioria do público entender
que estava diante de um dos maiores nomes da música brasileira.
Antes da dupla se reunir para a emocionante rendição final,
o músico taubateano ainda brincou com lembranças da terra
natal em antigas composições inéditas e novas que
ainda estão no rascunho. Uma criatividade que não pára
no tempo. (E não dá para deixar de destacar o carisma de
Pena Branca, que brilhou especialmente numa longa versão de "Cuitelinho",
na levanta-poeira "Vaca Estrela e Boi Fubá" e numa agitada moda
ainda inédita).
Sem que nenhum dos dois recorresse
excessivamente ao passado e jamais se constrangendo nas composições
recentes, Pena Branca e Renato Teixeira fizeram jus à sua condição
de "músicos contemporâneos". Há uma música realemnte
brasileira que não necessita de franjinhas sacolejantes nem pálidas
emulações das garagens do Tio Sam. É o retrato de
um Brasil menos neoliberal e ainda disposto a sorver a vida em grandes
goles de alegria e trabalho, embalado por acordes grandiosos de viola.
Apesar de todas as dificuldades e provações, esse povo sobrevive
e encontra no articulado Renato Teixeira seu trovador. Que sua voz chegue
limpa ao outro Brasil - esse aí no qual você está.
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