"Traje", Pequeña Orquesta Reincidentes
por José Franco Jr.
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30/01/2006

'No fundo, a figura no quadro mostra uma menina, uma flor e o sol a brilhar; na estante abaixo um ursinho de pelúcia com os braços abertos sorri; no canto direito um aparelho de toca-discos faz a agulha trabalhar; no centro, seguindo o fio do fone que sai do aparelho, uma menina com os pés cruzados lê algo, talvez poesia, em um livro; com os fones no ouvido uma lágrima escorre timidamente do olho esquerdo'.

A narrativa acima ilustra uma das primeiras reportagens na mídia nacional sobre a banda escocesa Belle & Sebastian. E talvez seja essa a melhor imagem para traduzir o som da banda argentina Pequeña Orquesta Reincidentes quando constrói beleza - ou então a fúria, muitas vezes contida, de Nick Cave & The Bad Seeds. O ouvinte admirando a audição de um disco em ambiente particular, acolhedor, aconchegante, apenas ele e o som. Se deixarmos os preconceitos para com os vizinhos argentinos de canto, no campo futebolístico, teremos muito a ganhar. Paralamas do Sucesso e Los Hermanos nos provam isso. Acompanhando o mesmo pensamento, se deixarmos, também, a invasão britânica de bandas auto-referentes de lado teremos mais ainda a ganhar.

Juan Pablo Fernández (voz e guitarra), Guillermo Pesoa (voz, piano e acordeon), Rodrigo Guerra (voz, contrabaixo, serrucho, tuba e trombone), Alejo Vintrob (bateria, chapas, tuba) e Santiago Pedroncini (guitarra, mandolina, banjo, trompete) formam a banda que transita entre o jazz puro e o rock furioso de Nick Cave. Juntos desde 1991, colocaram três anos depois a fita cassete Tarde de forma independente no mercado local, a banda acumula até agora mais cinco discos, em que merecem destaque Nuestros Años Felices (1996), escolhido pela revista norte-americana Rolling Stone um dos discos da década, e o homônimo Pequeña Orquesta Reincidentes de 2000, apontado pelo jornal Clarín como revelação do ano (seis anos depois do seu primeiro registro em áudio). E Traje, álbum de 2005 dos argentinos.

Em 1996, a Pequeña Orquesta inaugurou o ciclo de luz/escuridão abrindo um show para Nick Cave & The Bad Seeds no Teatro Opera. Em 2002 foi a vez de uma turnê européia tocando em festivais na França (Garonne Festival, em Toulouse, e Convivencia, em St. Jory), na Suécia (Falun Folk Music Festival) e na Espanha (Festival Iberoamericano das Artes, na capital Madrid), que abriram portas para outros convites. Em 2003, a banda se destaca compondo a trilha sonora do filme uruguaio Whisky, destaque na premiação de 2004 do respeitado Festival de Cannes. Em 2004, tocam no Festival Cosquín Rock para 20.000 pessoas.

Classificações colocam camisas-de-força em artistas, por isso não é de todo correto dizer que a Pequeña Orquesta faz tango rock, como alguns veículos internacionais tentaram simplificar o som da banda. Porque no tango não há a revolta, mesmo que suave, do rock. Uni-los em classificação seria muito arriscado tanto quanto denominar o interessante The Gotan Project como tango eletrônico, embora o Gotan já tenha exibido a provocação em um título de disco, La Revancha Del Tango. No entanto, não é possível colocar a Pequeña Orquesta Reincidentes nesse estilo por eles cortejarem o indizível.

Se não cabe em tango e não pode ser enquadrado totalmente no rock, a Pequeña Orquesta pode em algumas músicas habitar o jazz, como em Negro y Amarillo, do álbum Traje, lançado em 2005, que mostra os instrumentos de forma crua, quase primárias, com a bateria de Alejo Vintrob dando a impressão de ser tocada quase que sem vontade sendo acompanhada por um piano e vocal iguais, mas que apenas caminha por outras trilhas. Já em Escafado, o jazz ainda marca presença, mas o piano mostra mais vitalidade, ainda que contido, e o vocal é menos sofrido, porém - como em grande parte das canções do grupo - sinaliza dor. Em Romance de Suelas y Suelos os metais entram timidamente até estourarem em solos e passeiam com liberdade por um tímido quase tango que brilha com a companhia do piano. Mudanza traz um piano que em particular chama a atenção, além de belos diálogos entre baixo e uma suave guitarra. A bateria marcada e o piano abrem a pop Anoche, o vocal sofrido canta alguma dor.

Tango verdadeiro aparece em El Camión, em que o acordeon de Guillermo Pesoa teima em fazer fundo para o vocal e para uma latinidade que surge graças à guitarra e a bateria. Corazón é frenética como o nosso bom forró (isso mesmo, surpreso?), mas é um tango mais acelerado. O acordeon dá a pista; Abrazame é tão frenética quanto a anterior, mas reserva-se a utilizar piano, guitarra e bateria. Fechando o disco de forma festiva há Invisible, onde o trombone de Rodrigo Guerra é rei supremo e os outros instrumentos seus servos. No inicio da canção o piano tem presença garantida, mas depois soma-se guitarra e bateria a um vocal frenético que aparece, mas logo dá licença aos instrumentos. No final, a música exibe uma faceta free jazz se transformando em uma breve jam session que traz liberdade aos instrumentos contidos.

Em três faces diferentes a Pequeña Orquesta assume o posto de genialidade. São No, a sublime No Hay Un Alma e a furiosa Membranas. Na primeira brilha o vocal e um piano tímido. Juan Pablo Fernández e Guillermo Pesoa fazem o melhor jazz contemporâneo que há hoje na Argentina. Quando percebe-se a canção acabou e não deu nem tchau, talvez sejam os fantasmas cantados na letra. Na segunda, a melancolia e insanidade lembram o Radiohead, com poucas guitarras (como em Kid A) e um vocal Thom Yorke quase suicida. Já em Membranas, todos esquecem a beleza que permeia o disco e explodem seus instrumentos, e do vocal às guitarras a fúria remete ao Nick Cave de The Weeping Song, uma das melhores do cancioneiro das cavernas.

O jornalista Arthur Dapieve certa vez ouviu de um grande amigo, Aldir Blanc, depois de sucessivas e envergonhadas negativas com relação a leitura de um escritor: "Pô, irmão... Se a gente não lê os livros do cara, a vida dele foi inútil". Em outra passagem, sempre usando de fonte sua coluna, de próprio punho escreveu que "Livros não mais lidos, discos não mais ouvidos, são cartas sem resposta". Deixar a Pequeña Orquesta passar despercebida, assim sem maior atenção é, na melhor das expressões, deixar que entrem na nossa pequena área, driblem nossos zagueiros, façam o gol e, em plena Copa, levantem o troféu de campeão do mundo. Porque nos últimos anos não têm aparecido nada mais interessante por essas bandas do sul (mundial) quanto a Pequeña Orquesta e, até mesmo, é possível afirmar que desta vez na batalha entre ingleses e hermanos, o segundo venceria fácil fácil a batalha pelas Malvinas (pop).

Há nos turistas vindos da Argentina a lenda de que lá se faz o melhor alfajor do mundo. Lendas são lendas, mas caso haja veracidade nessa história, o melhor biscoito fino que se tem notícia daquelas bandas é a Pequeña Orquesta Reincidentes que canta as dores dos cidadãos pobres de renda, mas ricos de coração.


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Links
Site Oficial da Pequeña Orquesta Reincidentes

Texto cedido ao S&Y pelo site Poppycorn