Entrevista - Nuno Mindelis

por André Luiz Azenha
Fotos: Divulgação
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14/11/2005

Sabe aquele ditado que diz que santo de casa não faz milagre? Pois é, ele serve direitinho para o guitarrista Nuno Mindelis, grande nome do blues brasileiro e internacional, um cara que é mais valorizado lá fora do que aqui no Brasil. Mindelis tem um estilo peculiar de tocar guitarra, não usa palheta ao vivo, manda bem em solos e bases, e ainda improvisa como ninguém. Durante seus shows, costuma descer do palco, tocar entre a galera e parece se divertir demais com tudo isso.

Com cinco álbuns de blues na carreira (Blues e Derivados de 1989, Long Distance Blues de 1992, Texas Bond - gravado junto com Chris Layton e Tommy Shannon, do Double Trouble, banda que acompanhava Steve Ray Vaughan - de 1996, Blues On The Outside de 1999, e Twelve Hours de 2003, todos cantados em inglês), Nuno está preparando seu primeiro trabalho fora desse estilo. Outros Nunos é cantado em português e conta com participações variadas de gente como Zélia Duncan e o rapper Rappin Hood.

Nascido em Cabinda, em Angola, o bluesman se apaixonou pela guitarra aos cinco anos. Aos nove, já mandava brasa em instrumentos construídos por ele mesmo enquanto ouvia gente como Otis Reeding. Aos 18 anos, exilado após a independência de seu País, foi morar no Canadá (onde já tocava blues em bares locais) e um ano depois escolheu o Brasil como pátria. O S&Y teve a oportunidade de bater um papo com essa figura, gente finíssima, que defendeu a importância da eleição como melhor guitarrista de blues pela revista gringa Guitar Player (em 1998, aniversário de 30 anos da publicação), falou do blues no Brasil, de jam sessions com seus ídolos e o novo caminho que pretende percorrer. Confira.

Como é isso de nascer em Angola, passar pelo Canadá, chegar ao Brasil e virar uma fera do blues?
Eu nasci em Angola, e achei que era angolano (risos). Vivi lá até os 17 anos, quando tive que sair por causa de uma guerra violenta. O povo angolano não ficou dono de Angola, que passou a ser da União Soviética. Era como se houvesse quatro exércitos no Brasil brigando pelo poder. Então fui para o Canadá, perdi absolutamente tudo, fiquei com a roupa do corpo. Do Canadá fui para o Rio de Janeiro, fiquei três meses e vim para São Paulo. (Nuno tem nacionalidade portuguesa, aceita para se viver no Brasil. Oficialmente ele não é naturalizado brasileiro).

Quando você escutou um blues pela primeira vez e decidiu que era isso que você queria?
Eu me lembro de ter gravado em uma fita cassete, e nem sei se esse registro existe ainda, mas decidi que faria blues para o resto da vida exatamente nessa transição que Angola tornou-se independente e fui exilado para o Canadá. Lembro-me de ter feito uma fita ao assistir Willie Dixon no Café Montreal, em 1975. Foi uma decisão que tomei naquela altura com absoluta convicção, mas que hoje em dia eu diria: 'não quero mais tocar blues', porém faço por ser escravo desse estilo. Não consigo deixar de fazer blues. Eu fiz um disco todo em português com participações da Zélia Duncan e do Rappin Hood, e que tem pop rock, hip hop, rap. E não tem blues...

Em que pé está esse projeto?
O disco está pronto mesmo, fabricado...

Independente?
Não... bom, sim... Está saindo pela gravadora Eldorado, mas continua sendo independente. É um disco que eu licenciei pelo meu (próprio) selo, o Beastmusic, que tem parceria com a Eldorado, que fabrica e distribui. Pedi para a Eldorado esperar, por que houve uma brincadeirinha estranha e inscreveram uma música minha com o nome da minha cachorra no Festival da Oi, e a música está na semifinal. E, como o prêmio é um contrato com a Sony/BMG, resolvemos aguardar.

Tem nome esse disco?
Chama-se Outros Nunos, que na verdade para quem me conhece, sabe que esse é o Nuno de verdade, que escreve, gosta de literatura, cujos heróis são os americanos do blues, mas os ícones literários são escritores como Fernando Pessoa. Mas com a história desse concurso... O curioso é que você fica buscando a vida toda um contrato com uma major e não consegue, mas daí você inscreve a sua cachorra e de repente você ganha. É um projeto bom, mas o problema é as pessoas ouvirem com isenção. Ele deve sair em novembro, dezembro ou no começo do ano que vem. Pode até ser que saia com um pseudônimo.

Você falou sobre seus heróis do blues. Já tocou com alguns deles?
Sim. Toquei com Magic Slim, com um bocado de gente que me emocionou, mas não sou muito "bluesófilo", aquele cara que fica gravando com quem tocou, guardando palheta de todo mundo, e fotos daquele momento. Sou muito relapso nessas questões. O que eu gosto mesmo é de tocar e não de dizer com quem toquei. Eu realmente toquei com o Magic, com o Bo Didley e Ronnie Earl. Mas assim... vamos ser honestos, eu não fiz turnê com os caras, nem me apresentei no Madison Square Garden com eles. Foram jam sessions. Toquei com o Double Trouble, com o John Turner, que era baterista do Johnny Winter. Com ele fizemos várias turnês americanas. Mas tive também a honra de convidar a Zélia Duncan para gravar no meu disco.

E da música brasileira, o que você curte?
Tem a Zélia, o Fagner. Acho que o Rappin Hood tem coisas bem legais. Acho que seria completamente inconsciente um cara que não tivesse absoluta devoção ou um respeito muito grande por toda a bossa nova. Mas nesse instante o que me dá um prazer imenso é Zé Ramalho, que é uma espécie de Lou Reed nacional. Gosto de um monte de coisa. Meu sonho é gravar com Chico Buarque, quem sabe... Também gravei no novo disco da Babi (Siqueira), muito legal...

E também está produzindo...
Ah! A Patrícia Pena. Ela gostou desse disco Outros Nunos e pediu para eu ser o produtor. Ela é uma cantora que ninguém conhece por enquanto. E como estava numa correria tamanha, eu estou produzindo uma música, que é um blues estranho, sujo, feio, malvado, inglês e não americano, deturpado, mentiroso, de propósito (risos). É como se fosse um garoto inglês pensando em imitar o Jeff Beck, mas a música é de uma canalhice espetacular.

Você falou umas duas vezes do BB King no show, que ele é o rei do blues...
Claro, ele é sem dúvida...

Ele costuma se ofender quando o chamam de roqueiro. Você fica ofendido?
Não, eu não me ofendo. Sou um roqueiro desnaturado. Ao contrário do que acontece normalmente, o cara curte rock, conhece o blues e começa a gostar. E eu não. Eu tinha nove anos e comecei a gostar de blues, e depois minha atenção foi desviada para o rock. Guardada as colossais proporções, é como Bob Dylan que começou com folk e depois resolveu juntar folk e rock. Eu comecei ouvindo blues puro... do Delta... Robert Johnson... mas não sou americano nem inglês... então fiz esse caminho em países de terceiro mundo...

Chegou a tocar em Angola?
Toquei em Angola antes de ser exilado. Ganhei meu primeiro cachê aos 14 anos. A gente fazia blues em Angola! Era expulso de festas. Aqueles portugueses meio reacionários me chutavam para fora das festas. Tenho foto disso.

E a eleição pela Guitar Player, o que acrescentou na sua carreira?
Acrescentou bastante. Sempre há um fantasma... Imagina o seguinte: um americano, que nasceu lá, ouviu samba a vida inteira, e ganha um prêmio no Brasil como melhor "pandeirista" de samba da "revista do samba". Foi o que aconteceu comigo. Ganhei como melhor guitarrista de blues pela bíblia mundial da guitarra! Liguei lá para pegar o prêmio, uma guitarra espetacular que tenho em casa, e o cara que atendeu falou: "Você é o brasileiro que ganhou no blues". Ele não acreditou...

Dá para viver tranqüilamente de blues no Brasil?
Nada! Dá para viver nada!!!

Mas você tem feito vários shows...
É, não posso me queixar muito. Tenho conseguido fazer um show aqui e outro ali, mas rolam uns sufocos. E não é só o blues. O blues, o teatro, o samba de verdade, a música de qualidade não têm suporte da indústria nacional. É mais fácil fazer axé, sertanejo, fazer pagode ou aquele rock meio pop para conseguir ser inserido em uma indústria que possa te alimentar. No blues, e eu não quero parecer estar falando em nome do blues, em nome de uma corporação nem nada, mas qualquer projeto de qualidade, se você quiser ser escritor, pintor, ator de teatro, o diabo a quatro, o cacete que você queira fazer e que tenha proposta, qualidade não é a palavra (principal). Você vai ter que suar. Eu trabalho 99% do meu tempo para conseguir recursos, para me manter vivo e 1% fazendo música. Eu adoraria que fosse o contrário. Meu estúdio não é só um estúdio, é o meu escritório!

E, para encerrar, por que tem gente reclamando que não acha os seus discos nas lojas?
As gravadoras só colocam no mercado o que dá resultado imediato. É algo quase comparável as drogas (risos). Se você usar drogas, você tem uma recompensa imediata e um castigo a médio e longo prazo. Se você usar drogas farmacológicas, você vai recompensar a longo prazo e terá um castigo logo de cara. (Para eles) é melhor mostrar a bunda de alguém e vender um milhão de cópias - e que acaba esquecido - do que colocar dez artistas que vendam cem mil cópias cada. Há um equívoco entre gravadoras de catálogo e gravadoras de sucesso instantâneo.


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Site Oficial de Nuno Mindelis