"O Galope do Tempo" - Marcelo Nova
por Marcelo Costa Email 05/11/2005
O Galope do Tempo "é um disco autobiográfico e existencialista.
Começa no útero e acaba no cemitério". A definição é do próprio
Marcelo Nova, em entrevista ao S&Y cerca de um ano e meio
atrás, quando o roqueiro se preparava para lançar um DVD ao
vivo do Camisa de Vênus, e começou a maturar este que é apenas
seu quarto disco solo totalmente de inéditas em vinte e cinco
anos de carreira.
Solo, Marcelo Nova lançou o mediano Marcelo Nova & Envergadura
Moral (1988), o excelente (e acústico) Blackout (1991)
e o ótimo Sessão Sem Fim (1994), além do clássico A
Panela do Diabo (1989), dividido meio a meio com Raul Seixas.
O Galope do Tempo iguala o trabalho com Raul, e supera
qualquer outro disco que Nova tenha gravado em toda a sua história,
batendo qualquer um dos discos do Camisa de Vênus, inclusive.
Cincoentão, Nova precisou esperar o tempo certo para parir O
Galope do Tempo. "Esse é um disco que diz respeito ao tempo
e a minha passagem através dele. Custou-me 13 anos desse tempo
precioso para concluí-lo em meio a essa jornada mortal do útero
ao caixão". Assim o roqueiro descreve o álbum no encarte do
CD, e as 16 músicas honram as viradas que os ponteiros do relógio
deram em todos estes anos. O Galope do Tempo, com todas
as músicas e letras assinadas por Marcelo, é um registro de
vida e também um tremendo álbum de rock and roll.
Nova sabe que por mais que as bandinhas de moleques tentem inovar,
o rock é algo extremamente básico. Uma guitarra, um baixo e
uma bateria resolvem a história. Até vale recorrer a um arranjo
de violoncelo para dar um charme, mas nada tira a urgência de
uma canção do que uma boa melodia... e uma boa letra. Tematicamente,
O Galope do Tempo é o grande momento do Marcelo Nova
escritor, um cara que já pediu dinheiro para Deus (Deus Me
Dê Grana), já descreveu a destruição do sonho da classe
média via indústria automobilística (Simca Chambord),
e já elogiou todas as Silvias do mundo carinhosamente em uma
canção.
No novo disco, Marcelo Nova parte do nascimento (Fecundado,
canção que abre o álbum) em direção ao caixão (A Canção da
Morte, música que fecha o disco e é um reencontro do músico
com seu pai). Entre as duas, melodias densas convivem lado a
lado com esporros roqueiros. Um bom exemplo dos dois vértices
é a letra da faixa título, que ganha uma versão pesada logo
no início do álbum, e depois reaparece em arranjo voz e violoncelo
no final do disco, apelidada de O Sonho. "Sinto raiva
do tempo, mas adoro esse vento que ele insiste em soprar", canta
Marcelo nas duas letras.
O violoncelo carrega ainda a bela Um Passo Pra Frente, Dois
Pra Trás ("Alguém perdeu a hora / Horas não param de passar"),
a sublime Angel ("Sempre foi tão difícil esconder / Tudo
o que eu não sabia / Não deixar a mão esquerda saber direito
/ O que a direita fazia") e a acelerada Poeira No Chão,
um atestado de realidade em três acordes: "Qual a importância
se foi sonho ou foi real / Quando estivermos mortos será tudo
tão igual / O tempo ri, o tempo passa, o tempo vai, o tempo
esquece / E o vento ao seu redor é só o que permanece / Um dia
todos vamos ser apenas poeira no chão".
Porém, se nos blues e baladas Marcelo mostra continuar afiado,
os grandes momentos do disco são mesmo os rocks porretas. A
deliciosa Outubro de 65 atualiza Simca Chambord
com humor, sarcasmo e fina ironia ("Pela manhã minha mãe virava
a chave mas o DKV não queria pegar / Meu pai mexia no motor
e no platinado que acabou de trocar / Na traseira, um plástico
grudado com a bandeira do Brasil / Era Outubro de 65, Minutos
antes do ano 2000 // Domingo, o sol pela janela derretia a minha
preguiça / Só que pra chegar na praia, tinha antes que ir à
missa / Então pegava a minha revista e entrava no banheiro /
Meia hora apreciando Raquel Welch de corpo inteiro // O jantar
era na casa do vô, que me abraçava e contava histórias
/ Fazia mágica, estalava os dedos, no rádio o
Bahia dava no Vitória / Então logo eu ia dormir,
meus discos e desejos espalhados no chão / Sonhava com
uma namorada e beijava o travesseiro na escuridão).
Na mesma linha, Ninguém Vai Sair Vivo Daqui paga tributo
para Aldous Huxley enquanto O Deus de Deus sarreia um
Deus que foi abandonado pelo seu superior ("Então, Deus perguntou
ao seu Deus / Se ele abençoaria esse mundo / E só obteve como
resposta um silêncio profundo"). Entre as porradas, destaque
ainda para Algumas Vezes e a cruel Fim de Festa
("Ás vezes não é bom lembrar / De algumas escolhas que fiz /
O fantasma das decisões erradas / Sempre fez pouco de tudo o
que eu quis"). Mas o grande momento do álbum, e quiçá da carreira
de Marcelo Nova, surgiu de audições ininterruptas de Bob Dylan.
"Eu estava ouvindo o Time Out Of Mind, e traduzindo as
letras. Eu nunca fiz inglês, sempre fui eu e o dicionário, e
acho isso legal porque você acaba descobrindo a letra, uma relação
muito mais pessoal. É algo especial. Mas eu estava lá ouvindo
o disco, e tem uma música, Tryn' To Get To Heaven, em
que o Dylan diz que está tentando entrar no céu antes que fechem
a porta. E eu fiquei dias pensando nisso até concluir: eu não
quero entrar no céu. Daí surgiu A Balada do Perdedor".
O diálogo acima está sendo transcrito de memória, de um show
que Marcelo Nova fez no teatro do Sesc Consolação, em 2004,
apresentando a canção, inédita naquela época. E A Balada
do Perdedor é exatamente isso, as memórias de um cara que
está às portas do paraíso, mas sem nenhuma vontade de entrar.
Se me pedissem como exemplo uma letra de música para explicar
o que é o rock and roll, eu usaria A Balada do Perdedor.
Quer coisa mais rock do que um lugar cheio de mulheres bonitas,
mas o cara está mais preocupado com o isqueiro que não funciona?
Mas isso é apenas rock and roll, baby. O Galope do
Tempo, mais do que qualquer outra coisa, é o disco de uma
vida, a de Marcelo Nova, um cara que já fugiu de fãs como os
Beatles em A Hard Days Night, já teve músicas gravadas
por Eric Burdon, e um dia escreveu, genialmente: "E como está
tudo acabado / Deite aqui do meu lado / Eu vi o futuro, baby,
e ele é passado". Logo abaixo, a letra de A Balada do Perdedor
e a integra do papo de 2004. O resto é com você, caro leitor.
A Balada do Perdedor
Letra e Música: Marcelo Nova
A noite parece tão promissora, luzes por todo lugar
Decotes, sorrisos, sussuros: cheiro de conquista no ar
E eu aqui sozinho tentando fazer esse isqueiro funcionar
Parando em frente a porta do paraíso, mas sem vontade de entrar
Os astros cheiram o pô das estrelas e as trombetas estão soando
É no céu que se morre de tédio, os anjos estavam blefando
Eu conheci a mais bela vingança, vestida de noiva no altar
Parado em frente a porta do paraíso, mas sem vontade de entrar
Essa é pra quem Deus não respondeu
Essa é pra quem o tempo esqueceu
Essa é pra quem não renasceu
Essa é pra quem jogou... e perdeu
Essa é pra Paulo Cezar que fez a mala e sumiu de vista
Essa é pra Marta que pulou da janela de um 8º andar na Paulista
Eu ouvi os sons da dor e da fúria mudarem de lugar
Parado em frente a porta do paraíso, mas sem vontade de entrar
Essa é pra quem brindou ao destino e ao vento traiçoeiro
Essa é pra quem nunca entendeu o exato valor do dinheiro
Eu vi a areia do tempo entre meus dedos escorregar
Parado em frente a porta do paraiso, mas sem vontade de entrar
Mas não há porque sentir vergonha do ponto onde chegamos
Sobreviver é uma forma de arte na rua onde nós moramos
Não há sede que se possa aplacar, nem sonho que se queira sonhar
Parado em frente a porta do paraíso, mas sem vontade de entrar
Se certifique das suas intenções quando for preencher o papel
Pois é você quem carrega a bagagem no corredor deste velho hotel
Aqui não há serviço de quarto e talvez você tenha que ficar
Parado em frente a porta do paraiso, mas sem vontade de entrar
Essa é pra quem Deus não respondeu
Essa é pra quem o tempo esqueceu
Essa é rpa quem não renasceu
Essa é pra quem jogou... e perdeu
Entrevista
com Marcelo Nova, por Marcelo Costa, março de 2004
Quando sai o DVD?
Não sei. Na verdade, eu não tenho a menor idéia. O que nós tínhamos
que fazer era fazer o show, e nós nos divertimos pra caramba,
tinha sete anos que nós não tocávamos juntos, mas quando entra
a indústria, quando entra gravadora, quando entra a parte de
confecção da coisa, foge a nossa alçada. Eu realmente não sei.
Qual a gravadora?
Eu também não sei (risos). Na verdade, temos duas gravadoras
que estão brigando pelo material. Então, quando elas acabarem
de brigar, nós vamos ver como é que fica. (Nota do editor: o
DVD foi lançado pela Som Livre no começo de 2005).
Como será o DVD?
A idéia seria que tivesse o show e um pouco de história, afinal
de contas, é um DVD que foi feito 24 anos depois da banda ter
tocado os seus primeiros acordes. São quase que duas décadas
e meia, então seria interessante ter um retrospecto, mas é preciso
primeiro definir se o lançamento vai ou não ser viabilizado
comercialmente.
Vocês gravaram alguma canção inédita?
Não. Nada inédito. Só coisas que nós gravamos do primeiro álbum,
de 1983, até músicas do último álbum que o Camisa de Vênus gravou,
em 1996.
Como foi se reunir novamente?
Foi divertido. A cada sete anos é ótimo. Na nossa próxima reunião,
deveremos tocar de cadeira de rodas e bengala. (risos)
Fale sobre Deus Me De Grana?
Deus Me De Grana é uma constante na vida de qualquer
brasileiro. Qualquer um não, né. Alguns não estão mais preocupados
com isso, mas eu diria que a grande maioria da população está.
E é curioso, porque nestes tempos caretas de 'vai com Deus',
'fica com Deus', 'Deus te acompanhe', onde a idéia de um suposto
ser que toma conta de tudo e de todos, ele é usado apenas como
um intermediário para conseguir favores. Eu não consigo entender
isso, porque eu sou ateu, graças a Deus (risos). Então eu não
consigo entender como é que pessoas que acreditam em uma entidade,
seja lá ela onde estiver e que fiscalize o planeta e o universo,
eles só se dirigem a essa entidade para pedir. "Cura minha gripe",
"Me dá um emprego", "Traz a minha mulher de volta". É uma coisa
no mínimo curiosa. Deus Me De Grana é, inclusive, a teoria
que todos esses pastores resolveram por em prática: "eu jogo
tudo pra cima, o que Deus pegar é dele, o que cair no chão é
meu". Aliás, eu estou esperando que eles me façam uma proposta
para colocar isso como um hino, para recolher grana dos fieis.
E Simca Chambord?
Essa é mais séria. Simca Chambord foi uma canção que
eu escrevi em parceria com um amigo de Salvador, o artista plástico
Miguel Cordeiro. É uma das raríssimas parcerias que eu tive
de letra na minha carreira. As letras de 99% de tudo que eu
gravei são minhas. Então, nós estávamos em um restaurante e
pedimos a refeição. Enquanto esperávamos, ficamos rabiscando
em um guardanapo de papel. A idéia era traçar uma espécie de
letra que falasse da destruição do sonho da classe média, mas
não utilizando esses elementos que normalmente se associam,
como a crise econômica, o desgoverno, a inflação. Eu queria
usar um elemento que, ao mesmo tempo em que fosse mais sutil,
não fosse, por isso, menos pertinente. Assim, eu acabei escolhendo
a indústria automobilística. A história da destruição do sonho
de uma classe média, que nos (anos) setenta era emergente. Eu
era moleque na época e me lembro da alegria do meu pai quando
ele comprava um carro, era uma espécie de conquista. A indústria
nacional estava se solidificando. Já não havia mais apenas a
idéia de importar carros. Antes, todos os carros eram Chevrolet
e Ford, e ai começaram a se fabricar carros no Brasil. Então
havia uma esperança de desenvolvimento tecnológico que, talvez
conseqüentemente, trouxesse um desenvolvimento cultural. Simca
Chambord é uma letra que fala disso. "Eles fizeram pior".
Pior do que o presidente fez, do que o governo fez, do que o
povo aceitou, do que não foi concluído, pior do que tudo é que
eles acabaram com o Simca Chambord. Simca Chambord é
uma canção que até hoje eu consigo encontrar prazer em cantá-la,
outras nem tanto. É uma canção que permanece, é uma das canções
que eu acho que valeu a pena ser composta.
Quais outras?
Ah, não. Eu tenho mais de 150...
Carreira solo?
No dia 19 de abril eu entro em estúdio para gravar meu disco
de músicas inéditas, que eu venho protelando, literalmente,
há vários anos. Agora chegou a hora. É um disco que eu estou
trabalhando nele há muito, muito tempo. Isso acabou sendo bom,
no sentido que o disco ficou mais consistente e eu pude tirar
algumas coisas que não estavam me agradando. É o disco mais
autobiográfico de tudo que eu já fiz até hoje.
Como é o disco?
Ele não tem nenhuma versão, são todas canções minhas, letra
e música. E quem toca comigo é a mesma banda que me acompanha
há seis anos, Denis Mendes (bateria), Lu Stopa (baixo) e Johnny
Boy (teclados/guitarra), que é meu velho escudeiro há 16 anos.
O disco também vai ter algumas cordas de violoncelo e quarteto
de cordas, que vão preencher um compartimento sonoro que esse
disco exige. É um disco autobiográfico e existencialista. Começa
no útero e acaba no cemitério. As canções têm uma certa seqüência
temática e cronológica que ouvidas na ordem em que vão estar,
elas fazem um sentido de amplitude e fatos, embora não haja
nenhuma necessidade de você ouvir a primeira para depois a segunda
e em seguida a terceira. Você pode ouvir qualquer canção, independente
disso.
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