Entrevista - Jair Naves (Ludovic)
por
Daniel Faria Blog Foto: Renato Reis (Divulgação)
19/04/2007
"Você já leu um sem-número de vezes que 'agora' é o momento dos independentes. Não acredite no hype, se é que ele existe: ainda demora para o rock independente ser notado, de fato, pelo público médio no Brasil. Mas que ele está ficando mais abusado, ah, isso está." O trecho acima é de uma matéria publicada na recente edição da revista Bizz, com Carlos Eduardo Miranda na capa, e versa sobre o festival independente Grito Rock, realizado simultaneamente em 15 estados durante o Carnaval. Os independentes estão reivindicando um espaço cada vez maior. E se existe hoje no país uma promissora cena que sobrevive longe dos esquemas das grandes majors, a banda paulistana Ludovic é um dos seus principais expoentes.
O Ludovic surgiu em 2000 em torno do vocalista Jair Naves, que procurava músicos para tocarem suas composições. A formação se estabilizou com os guitarristas Eduardo Praça e Ezekiel Underwood, o baixista Fábio Sant'Anna e o baterista Júlio Santos. Desde seu primeiro trabalho, o EP "Ludovic", de 2001, até o elogiado "Idioma Morto", lançado ano passado pela Travolta Discos, a banda alcançou reconhecimento suficiente para figurar em alguns dos principais festivais independentes do país como o Campari Rock e o Goiânia Noise Festival. O grupo concorre esse ano ao Prêmio Toddy, ex-Dynamite, na categoria "Melhor Disco de Rock" com "Idioma Morto", prêmio que a banda já conquistara em 2005 pelo primeiro álbum, "Servil" (Teenage In a Box), na categoria de "Melhor Disco de Indie Rock", em votação realizada junto ao público. Se o país começa a perceber a existência de novas bandas com condição de estabelecer um cenário indie de respeito, o Ludovic é uma das pontas-de-lança. Neste momento, em São Paulo não há banda maior.
A internet é responsável por muito do reconhecimento que o Ludovic alcançou nos últimos anos. A banda mantêm um site oficial, um fotolog, página no MySpace e comunidades espalhadas pelo Orkut, além da página da banda na Trama Virtual. Entre os principais feitos da banda em sua curta carreira, estão aclamadas apresentações em festivais independentes de todo o país, como o Goiânia Noise Festival (GO), Calango (MT), Americana Independente (SP), Kool Metal Fest (SP) e Campari Rock (SP). O grupo faz parte de uma nova e criativa geração de bandas, que inclui, entre outras, o quinteto cuiabano Vanguart, os gaúchos do Superguidis, os caipiras do Supercordas e os goianos do Violins. Se ainda não alcançaram o grande público, talvez seja melhor assim. A pavimentação está feita e com o auxílio da internet, novas bandas surgirão. Os dias do mainstream não estão contados, mas o estigma de gueto para o cenário independente começa a fazer parte do passado. Assim esperamos.
O Scream & Yell bateu um papo com o vocalista Jair Naves, a figura central do grupo. O vocal grave e denso, as performances intensas e os maneirismos epilépticos rendem à Jair comparações com ídolos de outrora, como Jim Morrison e Ian Curtis (a mais óbvia delas). Até Legião Urbana e Renato Russo já foram utilizados como parâmetro para classificar o Ludovic. "Comparam até mais do que eu gostaria", brinca o cantor. "Já me compararam a inúmeros outros vocalistas, do Keith Morris ao Cazuza, passando pelo Iggy Pop, Mark Lanegan e Nick Cave. É natural que as pessoas procurem referências nesse sentido, até mesmo esses cantores que eu citei enfrentaram esse tipo de comparação no início de suas carreiras."
As comparações podem também ter fundamento num dos principais cuidados estilísticos da banda: as letras. Repletas de referências ao teatro do absurdo, as frustrações do dia-a-dia e a própria loucura, é difícil manter se indiferente a sinceridade latente das canções de Jair. Em "Qorpo-santo De Saias", por exemplo, música do disco "Idioma Morto", a personagem central canta sobre ser vítima ou algoz do "maior fiasco que se tem notícia". "Unha e Carne", do mesmo disco, de versos como "você me ressuscitaria com um simples sopro seu", é uma canção de amor carregada de dramatismo suficiente para comover os góticos e confundir os fãs da Legião Urbana. A sofisticação lírica de Jair vem recebendo elogios diversos da critica especializada. E o que o próprio acha disso tudo? Ele responde.
Fábio Massari já falou que você é o melhor letrista do país. Qual a real importância das letras para o trabalho do Ludovic?
Toda, simplesmente a maior possível. Não dá para descrever. É como se alguém nos perguntasse se a sonoridade da banda é algo com que a gente se importa ou não. Tudo o que é dito nas músicas possui um valor sentimental enorme para mim, é uma parte do nosso trabalho com a qual eu me preocupo de tal forma que chega a ser incômodo, doloroso. Eu nunca tive a pretensão de ser o melhor letrista, o grande poeta, ou qualquer coisa exagerada do tipo, mesmo porque seria um erro infantil da minha parte acreditar nisso. Minha preocupação é apenas escrever coisas que sejam verdadeiras para mim e que eu vá querer cantar durante algum tempo. É ótimo saber que alguém gosta do resultado a ponto de fazer um elogio como esse, mas agradar as pessoas não é exatamente algo que eu tenho em mente durante o processo de composição.
As suas letras são geralmente descritas como intensas e pesadas, principalmente na escolha dos temas abordados. Você é adepto da teoria de que todo artista deve sofrer para compor?
Definitivamente não, ainda que as pessoas possam imaginar o contrário (risos). Nunca acreditei nesse tipo de pensamento, nessa coisa de glamourização do sofrimento, de auto-piedade excessiva. Sei lá, não é algo que me pareça muito condizente à realidade. Acredito que o teor das coisas que eu canto tem muito mais a ver com o fato de enxergar na música uma possível válvula de escape para certas emoções reprimidas
do que com uma possível crença de que o sofrimento é necessário para escrever, ou mais inspirador.
O EP "Ludovic" e o primeiro disco "Servil" parecem um Ludovic mais direto, mais cru, tanto na sonoridade quanto nos temas abordados. Já "Idioma Morto" é mais denso, climático e as letras estão mais sofisticadas. Você concorda?
Concordo, é bem isso mesmo. Até porque nossas influências mudaram com o passar do tempo, no começo nós estávamos muito ligados ao punk rock e trabalhávamos quase que unicamente com esse tipo de abordagem. Sendo assim as músicas eram mais curtas e mais rápidas, as letras mais diretas. Isso tudo mudou bastante quando começamos a escrever as músicas do "Idioma Morto". Estávamos conscientes da necessidade de tentar algo diferente, que ainda não tínhamos feito antes, até para que o processo todo continuasse a ser desafiador e empolgante. Se nada der errado daqui pra frente e nós conseguirmos manter a banda em atividade por mais alguns anos e gravarmos mais alguns discos, creio que continuaremos alimentando essa mesma necessidade de renovação artística sempre, até o fim.
O indie é o novo mainstream? Lá fora existem bandas que vendem muito sem ter contrato com gravadoras. Acha que é possível sobreviver de música no Brasil sem o apoio de uma major?
Sim, é viável, embora não seja nada fácil, leve muito tempo e exija um grau de dedicação que chega aos limites do que é humanamente possível.
A banda vem recebendo uma atenção especial da crítica nos últimos dois anos e o número de fãs vem aumentando gradativamente. Dá para imaginar vida fora do circuito independente? Acha que a banda tem potencial para isso?
É difícil dizer. Nunca se sabe o que o futuro nos reserva e aquela história toda, mas eu acho praticamente impossível que isso aconteça conosco. Até porque não precisa ser muito esperto para constatar que o Ludovic não tem o mesmo perfil das bandas de rock que consegue algum êxito comercial no Brasil.
Concordo. O país não tem um histórico de receber comercialmente bandas de apelo mais alternativo como o Ludovic.
Eu digo isso sem qualquer intenção de desmerecer ninguém. Acontece que é a pura verdade. Nossas músicas são dissonantes demais, poucas delas têm qualquer apelo comercial, as letras também não são lá muito fáceis. É até engraçado pensar isso, mas quando eu analiso a trajetória dos músicos que nos influenciaram, poucos deles foram realmente populares ou venderam muitos discos na época em que estavam em atividade. Talvez só os figurões mesmo, aquelas coisas clássicas de quem todo mundo gosta, o
Bowie, Smiths, Beatles, Dylan e outros. De resto, nenhuma das minhas bandas preferidas foi um grande sucesso de vendas na sua época, do Mission of Burma ao Vzyadoq Moe, do Black Flag ao Velvet Underground, do mundo livre S/A ao Morphine, da Kate Bush ao Olho Seco. No fim das contas, acho que isso diz muito sobre o tipo de banda que nós somos. Além do mais, com toda a sinceridade que me é
possível, eu acho até que nós já chegamos mais longe do que eu poderia imaginar. Eu nunca poderia imaginar que conseguiríamos tanta coisa apenas tocando as nossas próprias músicas, do jeito que elas são, sem fazer concessões e sem maquiar as nossas limitações.
Onde vocês pretendem chegar?
Acho que no fundo o que todos nós queremos é apenas aproveitar ao máximo enquanto isso tudo ainda existe. Sabemos que essa banda não vai durar para sempre, que um dia cada um de nós cinco seguirá rumos diferentes e que vai chegar a hora em que nós teremos que abrir mão dessa fantasia meio infantil de tocar numa banda de rock. Já que é assim, que seja o mais intenso, honesto e verdadeiro possível enquanto ainda fazemos isso. Seria ótimo também se conseguíssemos deixar um legado e fazer com que as gerações futuras conheçam as nossas músicas, mas aí já é querer um pouco demais. Um amigo nosso de longa data uma vez me disse que não dá para exigir mais das suas músicas do que o simples fato de elas existirem, e ele tem razão. Depois de algum tempo me dedicando de corpo e alma a esse negócio, consigo ver que ele tem toda a razão.
As apresentações da banda costumam ser intensas e inesquecíveis para o público. Como você se prepara para entrar no palco?
Tento me livrar de todas as influências externas e deixar a mente meio
que em branco. Não há bem um ritual pré-definido, basicamente eu só me
concentro mesmo, e faço o possível para que tudo corra bem.
Como foi tocar no Campari Rock? Dá pra se sentir
intimidado em abrir para o Ira!, o Mission Of Burma, que influenciou vocês, e o Supergrass?
Intimidado não é bem a palavra certa, como podem comprovar as pessoas que assistiram a tudo que aconteceu durante a nossa apresentação naquele dia, mas sem sombra de dúvidas foi uma experiência diferente para nós todos. Pela proporção do evento, tamanho do palco, as bandas com quem tocamos, o fato de termos tido que lidar com o ego e os produtores pouco amigáveis das ditas bandas grandes... Ao mesmo tempo em que nos sentíamos um pouco deslocados, nós estávamos achando tudo muito engraçado. Sem contar que eu estava pouco preocupado com o nosso show, eu estava lá quase que só para ver o Mission of Burma. Eu nunca imaginei que teria a chance de assistir a um show deles, quanto mais de dividir o palco com a banda! Apesar de não ter sido nem de longe um dos melhores shows que a gente já fez, foi algo muito importante para nós, que nos fez amadurecer muito e mostrou a banda pra muita gente que ainda não nos conhecia.
O Campari Rock foi o maior momento da banda até agora?
Foi um momento bem importante, inesquecível e tal, mas eu não acho certo dizer que foi o maior, seria injusto com tudo o que a banda já nos proporcionou. Falando por mim, o fato mais marcante e emocionante da nossa trajetória até aqui foi o momento em que eu finalmente pude ouvir o nosso primeiro disco pronto, no dia em que chegou da fábrica. Aquilo foi a concretização de um sonho de infância, foi uma das maiores emoções de toda a minha vida. Além disso, os festivais independentes fora de São Paulo em que tocamos sempre foram momentos extremamente marcantes também, em especial o Goiânia Noise Festival de 2005 e o Festival Calango de 2006.
Como é a relação do Ludovic com as outras bandas emergentes do cenário independente? Rola rivalidade ou o pessoal se ajuda?
Nossa relação com as bandas com quem a gente toca é ótima em praticamente todos os casos, salvo raríssimas e infelizes exceções (risos). Quase nunca enfrentamos mal-estar ou situações mais difíceis. Acho que todo mundo envolvido nesse meio sabe que é perda de tempo ficar alimentando rivalidades. Pelo contrário, nesses sete anos de estrada tivemos a sorte de conhecer pessoas muitíssimo especiais e talentosas, cuja ajuda continua sendo de fundamental importância para nós até hoje. Fora que algumas das minhas bandas preferidas da atualidade são aquelas com quem a gente convive de perto, como é o caso do La Carne, do Vanguart e do Charme Chulo, então eu posso até me
considerar um privilegiado nesse sentido. Isso para não falar de tantas outros nomes excelentes que tivemos o prazer de conhecer no decorrer dos anos, como é o caso do Vincebuz, do Seamus, do Macaco Bong, do Pugna, do Wasted Nation, da VI Geração da Família Palim do Norte da Turquia. Sinceramente, eu acho que o cenário independente não poderia ser mais promissor e rico do que é.
Quem é o personagem da música "Eu Fiz Pouco Caso de um Gênio"?
Desculpa, mas eu sinceramente não me sinto confortável tendo que falar explicitamente assim sobre as letras. As coisas que eu escrevo são sempre tão claras quanto eu acho que elas devem ser, e o mesmo vale para essa música. Juro que não é por má vontade nem nada assim. É apenas uma coisa que eu realmente não vejo sentido em fazer e não me sentiria nada bem fazendo. Espero que você entenda.
Tudo bem, mas isso elimina a última pergunta, sobre o "maior fiasco que se tem notícia" (alusão à música "Qorpo-Santo de Saias"). Considerações finais?
Muito obrigado pelo espaço e pela paciência, de verdade. Espero que a gente se veja por aí em breve.
Eu também.
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