"Áudio-Retrato", Leoni
por Leonardo Vinhas 

leonardo.vinhas@bol.com.br 

26/08/2003

Em seu livro Letra, Música e Outras Conversas, Leoni comenta com Renato Russo que In Utero, do Nirvana, é um disco de melodias ricas que ficam obscurecidas pelo peso absurdo dos arranjos. Mal semelhante afetava também seu trabalho: excelente compositor e grande letrista, muitas das boas canções que Leoni fez ficaram perdidas em arranjos datados, fosse na roupagem new wave popzinha dos primeiros anos do Kid Abelha ou na tentativa fracassada de soar rock chamada Heróis da Resistência. Além disso, mesmo com um bom trabalho solo, seu nome é desconhecido por uma geração mais nova de ouvintes, que canta Educação Sentimental nos shows do Kid Abelha, mas desconhece seu autor.

Áudio-Retrato, seu terceiro disco solo, não é uma coletânea desses sucessos tampouco mais um na onda oportunista dos acústicos. O subtítulo é bem mais esclarecedor: "Auto-Estrada / Registros da Minha Vida Emprestada", conotando um resumo do que seu talento já rendeu, agora livre das estéticas de determinado período, embalado em econômica roupagem musical, ou seja, sem aquele gosto de PF requentado típico do acústicos da MTV. Até porque o disco não é 100% acústico: embora a base de quase todas as canções seja os violões (de aço ou de nylon) de Leoni, há a presença adicional de órgão e guitarra, que integram-se como atraentes adornos à precisão das canções.

Dessa forma, os hits dos Heróis da Resistência Doublê de Corpo e Nosferatu são valorizados pelo ótimo guitarrista Daniel Lopes, eficiente e criativo em sua simplicidade - Nosferatu ficou fantástica! Já o órgão aparece conferindo balanço à Educação Sentimental e acentuando a emoção devaneadora da injustamente esquecida Esse Outro Mundo. Um violoncelo surge para desnudar a obsessão de Fixação, outrora escondida em uma ultrapassada roupagem oitentista, enquanto o hit solo Falando de Amor é reinventado em sua gaiatice com o auxílio de um cavaquinho.

Mas o melhor está nas faixas mais despojadas. Com vigor impressionante, Exagerado ganha sua versão definitiva, anulando qualquer interpretação anterior e tornando injusta a comparação com qualquer releitura posterior - e servindo ainda para calar a boca de quem associa o formato voz e violão com lerdeza e lentidão. No mesmo formato, Garotos II - O Outro Lado, seu único grande sucesso solo, preserva suas qualidades originais e ganha o reforço vocal de Dinho Ouro Preto, enquanto Lágrimas e Chuva recebe uma interpretação à altura de sua letra, apesar da bisonha participação vocal de Léo Jaime. Porém, dá para perdoar Leoni pela presença do amigo parceiro, já que Jaime é co-autor de Fórmula do Amor, delícia pop que aparece aqui num pot-pourri alegrinho com Carro e Grana.

Há ainda duas interpretações de diferentes extremos que destacam-se naturalmente. Canção Pra Quando Você Voltar vem sofisticada com cello, clarinete e harmonia burilada, mostrando que a simplicidade da letra, que versa sobre a esperança na eternidade do amor, é mais bela, rara e complexa que poderia se supor. Herbert Vianna, parceiro de Leoni na autoria de tal pérola, empresta discretamente sua voz para canção e a deixa ainda mais emocionante, a se considerar sua tragédia recente e subsequente recuperação. 

Por outro lado, Só Pro Meu Prazer desnuda Leoni em uma interpretação conduzida ao piano, tão descarnada que sequer esconde a desafinação para revelar a entrega irracional que há no egoísmo de uma paixão. Livre do arranjo brega original, finalmente fazem sentido os versos "noite e dia se completam/ no nosso amor e ódio eterno/ eu te imagino, te conserto/ eu faço a cena que eu quiser/ eu tiro a roupa pra você/ minha maior ficção de amor/ e eu te recriei/ só pro meu prazer". É até obsceno como a poesia da canção faz com que nos demos conta de quanto nossas paixões são egocêntricas e individualistas, apesar de nossa ilusão de que fazemos tudo pelo(a) outro(a). Méritos também para o produtor Eduardo Souza Neto, que preferiu valorizar a interpretação à buscar a perfeição afinada e asséptica.

Leoni tem hits suficientes para entrar em um estúdio da MTV, gravar um embuste nostálgico, faturar os tubos por um ano e cair no ostracismo de novo. Preferiu seguir com sua carreira ciente de que a realização pessoal e qualidade artística não repousam em números de vendas, todavia sem medo do sucesso e sem desprezar o mercado. Pode ser que venha a se dar tão bem quanto o Capital Inicial e virar ídolo dos adolescentes, pode ser que continue à margem do mainstream. Porém, certamente cravou seu nome como um dos maiores da sua geração (e até mesmo da MPB como um todo, por que não?) e conseguiu, com um disco de recriações, fazer o melhor disco nacional do ano, sem páreo até agora. Chances de surgir um disco melhor até dezembro? Bem...