"Pega Vida", Kid Abelha
por Marcelo Costa
maccosta@hotmail.com
02/05/2005

A passagem de Leoni pelo Kid Abelha foi marcante. Ao menos, metade dos mais de vinte hits da banda tem o dedo do ex-baixista, que só participou dos dois primeiros discos do grupo, os clássicos Seu Espião (1984) e Educação Sentimental (1985). Depois disso, o trio Paula Toller, George Israel e Bruno Fortunado lançou sete álbuns de inéditas, com hits aqui e acolá, mas todos irregulares. Foram necessários vinte anos para que o Kid Abelha se inspirasse e lançasse um álbum no nível de seus clássicos. A espera valeu a pena.

Pega Vida é o décimo álbum de inéditas de uma discografia que ainda conta com três discos ao vivo (dois deles acústicos), um álbum em espanhol e um disco de covers (o bom Coleção, 2000). De cara, dá para perceber que a gravação do programa Acústico MTV, que rendeu o CD/DVD homônimo e uma extensa e vitoriosa turnê pelo País, é influência direta no novo repertório. Quase todas as canções são conduzidas por violões, de forma quase acústica, que receberam por cima a guitarra econômica de Bruno Fortunado.

Das doze faixas, Paula Toller divide a autoria de onze com George Israel. A canção que "sobra" é Será Que Eu Pus Um Grilo Na Sua Cabeça?, sucesso de Guilherme Lamounier, em 1973. Paula volta a se vangloriar (exageradamente) de suas letras, assim como fez em Tudo é Permitido (1991), que, segundo ela, teve temas inspirados em D.H. Lawrence (e ótimos hits: Grand Hotel, No Seu Lugar e Gosto de Ser Cruel). Desta vez, além do release para a imprensa, a gravadora enviou um calhamaço de folhas com as letras, só para destacar o trabalho de Paula, como se jornalistas não soubessem ler o encarte do CD (que traz as letras).

Tudo bobagem. O Kid Abelha insiste em querer parecer intelectual, mas é uma banda pop, e das melhores da história da música brasileira em todos os tempos. Pega Vida é econômico nos arranjos, excelente na execução e inspirado no resultado. Poucas vezes na carreira da banda, Paula Toller cantou tão bem e com tanta calma quanto agora. Bruno brinca com wah-wahs, pedais de efeito, e ignora a distorção, enquanto George está cada vez mais apegado aos violões, deixando o sax para momentos oportunos (se é que existem momentos oportunos para um saxofone).

O disco gira em torno do tema sexo, que já foi bem mais exposto nos dois primeiros álbuns do Raimundos, convenhamos. Mas vamos entender que Paula Toller é uma "mocinha", e é mais jeitoso para uma menina dizer "quando quero preciso transar / quando transo preciso querer" (Eutransoelatransa) do que "eu queria ser o banquinho da bicicleta / pra ficar bem no meio das pernas / e sentir o seu anus suar". Levando isso em consideração, Pega Vida é um grande disco pop e tem tudo para ser um greatest hits.

Eu Tô Tentando abre o disco de forma acústica, mas com bateria acelerada e um teclado que lembra algo da Legião Urbana. Paula canta: "eu tou tentando largar o cigarro / eu tou tentando remar meu barco / eu tou tentando armar um barraco / eu tou tentando não cair no buraco / eu tou tentando ser brasileiro / eu tou tentando saber o q é isso / eu tou tentando ficar com Deus / eu tou tentando q Ele fique comigo", para concluir no refrão, "eu tô tentando ser feliz".

Poligamia, a seguinte, é uma canção tipicamente Kid Abelha anos 80. Paula canta pra cima, a boa letra: "Meus amores me querem inteira em qualquer posição / Meus amores não marcam bobeira e eu ñ fico na mão / Escritório, supermercado banco de condução / Todo canto é apropriado. Eu nunca digo não". Questiona o desperdício dos hormônios e decreta: "prazeres já temos de menos, produtos já temos demais". A base dançante sobrepõe teclados até a chegada do bom refrão.

A faixa título é brega (e deliciosa) até não poder mais enquanto Por Que Eu Ñ Desisto De Vc é uma balada rock bonita que cita ecstasy e o ponto G. A cover de Será Que Eu Pus Um Grilo Na Sua Cabeça? é um regaee estilizado, que periga seguir o mesmo caminho de sucesso da cover de Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda, de Hyldon. Já Peito Aberto tem inspiração folk e outra boa letra de Paula, que se assume ouvindo baladas bregas enquanto briga com o dicionário e só é considerada por "velhos, bêbados e animais". "Deixar de amar não é normal / Não se desama dando um mero tchau", encerra, perfeita.

Fala Meu Nome tem boa bateria, clima grandiloqüente e um amontoado de citações que une Lennon e Drummond no refrão. Já Mãe Natureza volta a optar pela simplicidade dos violões, deixada de lado novamente nas boas guitarras de Duas Casas, a seguinte, e o único rock do álbum, que traz a boa frase "vcs ñ têm futuro sinto muito quem mandou dormir junto". Eutransoelatransa traz o sax de George, vocal em contraponto e outro bom refrão: "eu prefiro no chuveiro / ela no elevador / eu tento ganhar dinheiro / ela só vive de amor / ela vai de pinga e gim / eu sou mais guaraná / ela ouve Guinga e Jobim / eu obladi-oblada".

O CD se encaminha para o final. Strip-Tease, a próxima, é leve e tão pop que gruda na cabeça na hora. A letra, com um q de de tola e outros nove de boba, até diverte. "Cai t-shirt / mais um avião sai do chão / E outro pede permissão / a vida corre solta e sem previsão / cai o jeans / cai um mundo além do jardim / alguns acham normal / vida breve boba e sem manual". É uma das poucas que a melodia do refrão perde para a melodia das internas. Órion, a faixa que encerra Pega Vida, é de longe a mais fraca. Uma balada arrastada que versa sobre saudade, mas não impressiona.

Pega Vida é uma coleção de pop songs deliciosas, com letras que trafegam do inocente para o inteligente em questão de piscar de olhos. Demorou pacas para o Kid Abelha lançar um disco excelente do começo ao fim, em uma carreira que trafega entre os bons Kid (1989) e Tudo é Permitido (1991), os medianos Tomate (1987) e Meu Mundo Gira Em Torno de Você (1996) e os fraquinhos Iê, Iê, Iê (1993) e Surf (2001). Não bastasse ter as melhores canções do Kid Abelha em muito tempo, Pega Vida ainda traz um trabalho gráfico primoroso assinado por Fernanda Villa-Lobos.


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Site Oficial do Kid Abelha