Entrevista - "Girl Talk"
por Marco Antonio Bart
Blog
26/10/2007

Empregar trechos de músicas alheias para criar novas composições já foi revolucionário. Há tempos, no entanto, a prática foi banalizada por ondas sucessivas de hip hops radiofônicos sem imaginação. O produtor norte-americano Gregg Gillis é o homem que quer recuperar a ousadia e o experimentalismo do sampler. Com 25 anos, ele se apresenta no Tim Festival com o projeto Girl Talk, no qual ultrapassa todas as barreiras no uso criativo e radical do sampling. Em seu terceiro álbum, "Night ripper", Gillis empregou mais de 250 samples, de 167 artistas diferentes, para criar as 16 faixas do disco.

– Manipular idéias musicais de outras fontes é a base da tradição da música popular. Acho que meu trabalho faz parte dessa tradição. Samplear outras canções ainda não é considerado um meio “legítimo” de fazer música, mas isso é só uma questão de tempo – diz Gillis dos EUA, com datas marcadas para São Paulo (na boate The Week) no próximo dia 26, e, no Rio (Marina da Glória), no dia 27.

Pioneiros como o trio de hip hop De La Soul e o coletivo de produtores The Avalanches fizeram discos inteiros a partir de citações a outras músicas. Entretanto, o Girl Talk se diferencia pela quantidade espantosa de samples usados e pela maneira como os combina. Ouvir Night ripper é como ir a uma festa na qual o DJ “discoteca” combinando trechos de canções que pipocam em emissoras de rádio. Imagine uma canção (“Give and go”) que junta pedaços de canções de Phil Collins, Sonic Youth e Hall & Oates. Ou outra (”Once again”) que mistura The Verve, Eminem e Boston. E que tal Paula Abdul, Chicago e George Benson (“That’s my DJ“)? Britney Spears, Weezer, Elton John, Nirvana, Nine Inch Nails, Public Enemy: cabe de tudo, às vezes de modo reconhecível, às vezes não. O resultado espanta pela coerência.

Gillis teoriza um pouco sobre como o sampler mudou a face da música nos últimos anos:
- Não sei se o Girl Talk pode ser considerado a “nova geração” do sampling. Talvez meu trabalho seja apenas mais um passo nessa estrada. Hoje em dia, cada vez mais os garotos estão fazendo remixes por conta própria e pondo-os na internet. À medida que o ato de samplear se torna mais difundido, vai se tornar um lugar comum em todos os gêneros musicais. Pode-se chegar a tantos lugares diferentes com o sampler que não se pode pensar em uma linha evolutiva simples. Vão aparecer muitos mutantes.

Gillis lembra seus primeiros passos:
– Assim que me formei no ensino secundário, em 2000, comprei meu primeiro laptop e resolvi fazer um projeto musical baseado inteiramente em colagens de músicas de sucesso em FMs – explica Gillis, que, na adolescência, chegou a tocar em bandas de rock experimentais. – As possibilidades são infinitas. Ainda é um meio relativamente inexplorado, em comparação com instrumentos convencionais.

Ele segue:
- Na primeira banda de que participei, lidávamos com eletrônica mas também experimentávamos com formas de apropriação de músicas alheias. Trabalhávamos com CDs, manipulação de gravadores de quatro canais, colagens (com gilete e durex) de fitas cassete e também com rádios.

O produtor diz que levou cerca de um ano para catalogar e editar todos os trechos usados em Night ripper.
– Vivo constantemente sampleando pedaços de músicas e catalogando-os. Não me preocupo se vou usá-los. Nem tenho idéia de quantos CDs possuo, minha coleção é uma bagunça. No meu carro, vou ouvindo rádio e fazendo listas mentais de trechos para usar no futuro. É um processo infinito, de tentativa e erro. Às vezes trabalho por dias a fio sem achar um loop que se combine com os outros. Outras, sampleio um trecho que se encaixa de primeira.

Perguntado sobre suas influências primordiais, Gillis cita alguns pioneiros do sampling vindos do hip hop e da eletrônica.
- Toda a música pop que uso me influencia. Minha introdução ao sampler provavelmente foi com o Public Enemy, quando eu ainda era um garoto. Escutei muito hip hop na adolescência, então para mim o sampler sempre foi um instrumento como qualquer outro. Conheci o De La Soul nessa época. Olhando em retrospecto, hoje aprecio o trabalho deles de um modo mais profundo. Toquei com o DLS em um festival no verão passado, foi incrível. Acho que os artistas que me influenciaram diretamente vieram mais do campo experimental, gente como John Oswald, Negativeland e Kid 606. O remix que o 606 fez de “Straight outta Compton”, do N.W.A., realmente abalou meu mundo quando o ouvi, ainda no segundo grau. Foi aquela música que me levou a querer cortar e colar sons no computador.

Também espantosa é a performance do Girl Talk ao vivo. O produtor não trabalha como um DJ convencional. Mouse em punho, combina as batidas e trechos “ao vivo” em seu laptop, mudando radicalmente os formatos das músicas.

– Toda vez que o público ouve uma mudança na música, sou eu mexendo na mão. Cada batida, frase e vocal fica isolado no computador e crio os remixes ao vivo – explica.

O Girl Talk vai tocar no palco Tim Mash-Up, junto ao Spank Rock. O mash-up - ato de juntar duas ou mais músicas para criar uma terceira, geralmente feito de forma não-autorizada e amadora - é uma febre mundial, em pistas de dança e na internet. Gillis diz que está atento ao movimento, ainda que se defina como um artista experimental, e não um criador de dance music.

- Os mash-ups são uma influência definitiva sobre meu trabalho. Mas não me sinto conectado diretamente a qualquer cena. Acho sensacional quando vejo as pessoas dançando com as minhas músicas, mas nunca esperei esse tipo de reação do público. Minha intenção sempre foi fazer música divertida e interessante, mas não necessariamente dançante. Foi uma surpresa para mim o fato de DJs começarem a tocar minhas músicas. Nos EUA, eu náo me apresento em clubes ou boates; toco em casas de rock, e minhas performances são ao vivo. Nesse sentido, me sinto isolado da cultura da dance music.

Em tempos de debates sobre direitos autorais, é natural que o homem por trás do Girl Talk se preocupe com acusações de plágio ou apropriação indébita de composições alheias.

– Até o ano passado, não me importava com isso. O Girl Talk era underground demais para chamar a atenção. Mas agora a possibilidade de sermos processados aumentou. Sei que não estou prejudicando as vendas de quaisquer dos artistas que sampleei em Night ripper. Vejo o disco como uma forma de promovê-los, na verdade – diz Gillis, que, não por acaso, lança seus discos pelo selo Illegal Art (arte ilegal).