Entrevista - Dulce Quental
por
Marcelo Costa
Foto - Divulgação
maccosta@hotmail.com
02/12/2004
Dulce
Quental retorna ao mercado fonográfico com Beleza Roubada,
quarto disco de sua carreira solo, e seu primeiro álbum em 16
anos, lançado de forma independente por seu próprio selo, o
Cafezinho. "Esse é o meu primeiro CD independente, isto é, feito
totalmente por mim, com a ajuda é claro, de parceiros, músicos
e amigos de todas as áreas. Foi um disco feito com poucos recursos
mais com muitas idéias", diz a cantora em entrevista ao S&Y.
Musicalmente, o blues, o folk e o pop dos primeiros discos perderam
espaço para a bossa, que já marcava presença em sua estréia
solo, Délica (1985). "Sempre tive o sonho de fazer um
disco mais Bossa Nova. Essa experiência com a Bossa ainda não
é a que de fato sonhei toda a vida mas a continuação de um namoro
que já existe há muitos anos. Faço Bossa Nova do meu jeito",
acredita Dulce.
A cantora fez fama nos anos 80 com o grupo Sempre Livre, de
sucessos como Esse Seu Jeito Sexy de Ser e Eu Sou
Free ("Só estudei em escola experimental / meu pai era surfista
profissional"). Após o fim do grupo, Dulce enveredou em uma
bela carreira solo, inaugurada com o diverso Délica (1985),
que trazia o sucesso Natureza Humana, a deliciosa versão
para Pro's Que Estão em Casa (do Hojerizah), o blues
Diferentes (com alguns membros dos Titãs empunhando os
instrumentos) e o dueto Tudo é Mais, com Cazuza, além
das bossas Pra Nós e Bossa para Bayard. Na seqüência,
Voz Azul (1987) amparou-se na delicadeza e beleza do
blues em faixas tocantes como Voz Azul, Stoned
e Não Atirem no Pianista, além do hit Viver e
de Caleidoscópio, presente de um dos produtores do disco,
Herbert Vianna, que já tinha cedido para Dulce a canção
Fui Eu, sucesso com o Sempre Livre. O terceiro álbum,
Dulce Quental (1988), trazia parcerias com Frejat e Arnaldo
Antunes (Onde Mora o Amor), uma bonita inédita de Cazuza
(A Inocência do Prazer) e uma interessante regravação
de Terra de Gigantes, dos Engenheiros do Hawaii. Nenhum
dos três discos ainda viu a luz do laser. "Quero conversar com
a (gravadora) EMI para estudarmos a possibilidade de relançarmos
os meus antigos LPs em CD", promete a cantora.
Com elogios da imprensa, mas vendendo pouco, Dulce acabou entrando
em crise frente a uma possível pressão da gravadora em tornar
seu repertório algo próximo ao de Marisa Monte, que despontava
com imenso sucesso. Insegura, decidiu rescindir um contrato
de três novos discos e optar pelo silêncio, quebrando o gelo
eventualmente em parcerias com Frejat (O Poeta Está Vivo,
Pedra, Flor e Espinho, Túnel do Tempo), Leoni
(O Fim da Estrada) e Cidade Negra (Cidade Partida).
"Não tive pudores de ter que procurar emprego e trabalhar para
sobreviver, mas não me vendi ao mercado e mantive as minhas
convicções e a minha dignidade como artista intacta", garante
a cantora, que chegou a deixar um disco inédito, em 1994, por
não conseguir uma gravadora que quisesse lança-lo. "E é um disco
do caralho. Com participações de músicos fantásticos como Sergio
Dias, Jaques Morelenbaum, Frejat, Jongui, Nilo Romero e muitos
outros... Espero ter a oportunidade de lançar ele um dia", torce.
Este retorno começou a ser preparado em 2001, com Quando,
música inédita que a cantora gravou para a coletânea Para
Sempre, que trazia, ainda, treze canções de
seus primeiros discos. Três anos se passaram e Dulce Quental
surge com Beleza Roubada, um álbum suave, na linha de
Voz Azul, mas com muito mais sotaque de bossa, embalado
por batidas eletrônicas e pela maresia de Ipanema, bairro em
que a cantora mora no Rio de Janeiro. E por cinema, que a inspira
muito. "Eu adoro cinema e a minha maneira de pensar e sentir
a musica sempre foi muito influenciada pelo cinema. Uma idéia
musical muitas vezes me vem primeiramente através de uma imagem,
depois vem às palavras, às vezes com melodia ou mesmo uma idéia
de arranjo", explica a letrista e compositora, que se inspirou
em Bertolucci na faixa que dá título ao CD. "Eu tinha revisto
recentemente o filme do Bertolucci em DVD, no período em que
estava compondo para o disco. Na verdade, escrevi primeiro Beleza
Escondida, depois associei com o titulo do filme, que acho
mais bonito e também me remetia à idéia central do disco que
é a de alguém que perde alguma coisa e depois encontra".
Interessante que, mesmo com 16 anos de diferença de seu primeiro
repertório, Beleza Roubada mantém as principais características
do trabalho de Dulce Quental: a rigor, como em seus trabalhos
anteriores, o bom texto da letrista ganha destaque, mas os delicados
arranjos também chamam a atenção. "Muitos jornalistas que escreveram
sobre o Beleza Roubada chamaram especialmente a atenção
para o fato desse disco dar continuidade a minha carreira, como
se ela não tivesse se interrompido durante um certo período.
Na verdade, eu acho que o grande desafio foi exatamente esse.
Fazer um trabalho que dialogasse com as novas tendências da
musica contemporânea e que ao mesmo tempo honrasse a minha historia
e a herança que herdei do pop, rock e bossa nova", avalia a
cantora. Capuccino, parceria de Dulce com Zélia Quental,
abre o disco resumindo em seu refrão que "somos pó e chantilly,
creme e café, chocolate e canela". "É nossa única parceria",
diz Dulce sobre Zélia. A canção Beleza Roubada flagra
Dulce filosofando que existem coisas que não podem ser aprendidas
nas páginas dos livros, nem de Foucault e Shakespeare: "Quer
saber o que eu aprendi? / Nenhum livro vai ensinar / O que eu
sou, o que eu quero / O que eu esperava encontrar".
A parceria com Paulinho Moska, Bordados de Psicodélia,
é mais agitada, com a batida a frente, enquanto Dulce recorta
detalhes de um relacionamento: "Você queria alianças / Eu pensava
em viajar". Dulce diz que gosta muito do trabalho do amigo e
que ficou feliz com o resultado da parceria. "Estávamos gravando
num mesmo estúdio em horários diferentes, uma proximidade acolhedora
que ajudou", explica. Já No Topo do Mundo, parceria com
Frejat, havia aparecido em versão roqueira no disco Puro
Êxtase, do Barão Vermelho. Frejat também assina Conferência
Sobre o Nada, uma parceria antiga, porém inédita. "Frejat
é um parceiro mais constante. Temos grande facilidade em compor
e é natural que ele esteja no meu trabalho assim como estou
no dele e do Barão Vermelho", conta.
Quando foi gravada em 2001 para a coletânea Para Sempre
e traz belos achados poéticos ao retratar aquele período em
que fazemos tudo por instinto, apaixonados que somos: "Embarquei
sem sentir de mala, poesia e sonhos demais para caber na vida
de alguém / Como eu pude viajar sem saber para onde, até hoje
eu não entendo bem". Ipanema é uma declaração de amor
ao bairro em que Dulce mora no Rio de Janeiro: "Ipanema, me
ama e me violenta / Me assalta e me encanta com suas amendoeiras
/ Meu Central Park é aqui / Onde foi que eu me meti / Em que
utopia de cidade eu estou / Onde eu afoguei meu rock and roll
and blues". Fino e Invisível é outra parceria com Paulinho
Moska, de bonitos dedilhados de violão, enquanto Nova Idade
das Trevas tem sotaque blues ("Como vai ser a nossa história
nesse filme sem cor").
A dobradinha Conferências sobre o Nada e O Escritor
conta com "participações especiais" de Allen Ginsberg e Fernando
Sabino, respectivamente. Ginsberg recita versos de Nota de
Pé de Página para Uivo na música Conferências sobre o
Nada e Sabino lê um trecho de sua obra O Grande Mentecapto,
com acompanhamento de Francis Hime, ao fim da melodia de O
Escritor. Encerrando o álbum, Receita de Felicidade
é uma poesia sobre poetas: "Leve ao fogo o poeta / Ao olhar
as primeiras coisas / Com a inocência que a inveja despe, invade
e rouba".
Em seu quarto disco, Dulce Quental retorna com o mesmo nível
de inspiração de sua discografia anterior. "Um disco é sempre
um recorte do tempo e do espaço em que vivemos. Nesse sentido
acho que Beleza Roubada trás o que há de melhor no meu
trabalho. As limitações trabalharam como um estímulo em vez
de obstáculo", acredita a cantora. Confira a integra da entrevista:
Dulce, como você vê este seu quarto disco em sua carreira?
Ele tem relação com os anteriores? Ficou do jeito que você queria?
Interessante você perguntar isso porque muitos jornalistas que
escreveram sobre o Beleza Roubada chamaram especialmente
a atenção para o fato desse disco dar continuidade a minha carreira,
como se ela não tivesse se interrompido durante um certo período.
Na verdade, eu acho que o grande desafio foi exatamente esse.
Fazer um trabalho que dialogasse com as novas tendências da
musica contemporânea e que ao mesmo tempo honrasse a minha historia
e a herança que herdei do pop, rock e bossa nova. Um disco é
sempre um recorte do tempo e do espaço em que vivemos Nesse
sentido acho que Beleza Roubada trás o que há de melhor
no meu trabalho. As limitações trabalharam como um estímulo
em vez de obstáculo.
Por que tanto tempo em silêncio? Após o disco de 1988, houve
alguma pressão? Sinto que nesse disco de 1988 há mais produção
(no sentido de soar mais comercial), como se você tivesse tido
menos controle. Como era sua relação com a gravadora na época?
O meu ultimo disco feito na EMI em 88 foi marcado pelo inicio
de uma crise com a gravadora. Desentendimentos acerca de produção,
repertório. Como um casamento, a relação se desgastou com o
tempo. Na época eu havia assinado por mais três discos, mas
antes da gravação do primeiro rescindi o contrato pois senti
que não seria respeitada nas minhas idéias e teria que abrir
mão das minhas convicções. No inicio dos anos 90 o mercado se
fechou e o meu trabalho ficou estigmatizado como um trabalho
difícil, pouco vendável. Passei muitos anos tentando encontrar
uma forma de voltar a gravar mas as portas se fecharam. Com
a crescente crise da industria e o surgimento de outras alternativas
senti que era a hora de tentar outra vez. Mas de forma diferente.
Com a informática e novos programas de gravação, como o pro-tools,
ficou mais fácil e barato gravar em casa. Com a ajuda de amigos,
músicos e parceiros resolvi encarar a produção independente
e após o disco realizado tentar uma parceria para distribuição.
Tive sorte de encontrar na atual Sony Music, executivos com
uma nova mentalidade. Isso fez toda a diferença. Nesse sentido
me sinto vitoriosa, pois fiz o disco que queria fazer, sem preocupações
mercadologias, com dignidade e verdade que é como acho que tem
que ser feita as coisas. Não tive pudores de ter que procurar
emprego e trabalhar para sobreviver mas não me vendi ao mercado
e mantive as minhas convicções e a minha dignidade como artista
intacta.
Soube que você chegou a gravar material novo em 1994. O
que consistia o trabalho? Você pretende lança-lo?
Fiz um disco em 1994 com o Nilo Romero, mas naquela época não
tínhamos o mercado que temos hoje. Não consegui que nenhuma
gravadora se interessasse pelo trabalho. E é um disco do caralho.
Com participações de músicos fantásticos como Sergio Dias, Jaques
Morelenbaum, Frejat, Jongui, Nilo Romero e muitos outros...
Espero ter a oportunidade de lançar ele um dia, mas é complicado
porque ele foi todo gravado em adat e seqüenciado. Então alguns
pedaços se perderam. Mas as fitas de adat eu ainda tenho, inclusive
já estão até num estúdio que faz a conversão para o pro-tools.
Vamos ver como as coisas andam e quem sabe faço uma edição limitada
para colecionadores e djs.
A sonoridade dos primeiros discos (principalmente do segundo)
trazia mais inspiração no blues. Em Beleza Roubada, a
bossa (ou new bossa) está mais presente. O que levou a isso?
Sempre tive o sonho de fazer um disco mais Bossa Nova. Essa
experiência com a Bossa ainda não é a que de fato sonhei toda
a vida mas a continuação de um namoro que já existe há muitos
anos. Faço Bossa Nova do meu jeito. Procuro fugir dos clichês
musicais e sonho com letras que falem de um imaginário mais
próximo dos dias de hoje. Trato a Bossa Nova sem muita reverência,
para que me sinta à vontade para experimentar novos caminhos,
mas com respeito pela tradição que ela representa na MPB.
Como foi o processo de composição? Você já tinha as canções
prontas ou são todas recentes, escritas para este novo trabalho?
Esse é o meu primeiro CD independente, isto é, feito totalmente
por mim, com a ajuda é claro, de parceiros, músicos e amigos
de todas as áreas. Foi um disco feito com poucos recursos mais
com muitas idéias. Eu costumo dizer que a criatividade para
superar as limitações foi a grande surpresa desse trabalho.
É claro que eu tive que alugar muita gente e contar com a paciência
dos amigos e familiares. Mas acho que valeu a pena pois esse
é um trabalho original e sincero, que procurou fugir de clichês
musicais e formulas prontas. A escolha do repertorio foi difícil
pois eu tinha o dobro de canções pra gravar. Acabou sendo um
processo meio que natural. Ficou o que eu consegui fazer dentro
do tempo que eu tinha. Algumas canções importantes ficaram de
fora meio que por acaso. Uma se perdeu no computador, outra
os amigos fizeram eu tirar depois de pronta, enfim, é assim
que acontece. As parcerias, especialmente as com o Moska , acho
que foram muito felizes. Eu gosto muito do trabalho dele, estávamos
gravando num mesmo estúdio em horários diferentes, uma proximidade
acolhedora que ajudou. Com Zélia fiz Capuccino, nossa
única parceria, que ela acabou não gravando no seu ultimo CD,
e com Frejat duas canções já antigas. Uma inédita, Conferencias
Sobre o Nada e uma regravação Topo do Mundo. Frejat
é um parceiro mais constante. Temos grande facilidade em compor
e é natural que ele esteja no meu trabalho assim como estou
no dele e do Barão Vermelho.
Quais as suas canções preferidas em Beleza Roubada?
E quais as suas inspirações como letrista?
Eu adoro cinema e a minha maneira de pensar e sentir a musica
sempre foi muito influenciada pelo cinema. Uma idéia musical
muitas vezes me vem primeiramente através de uma imagem, depois
vem às palavras, às vezes com melodia ou mesmo uma idéia de
arranjo. Eu tinha revisto recentemente o filme do Bertolucci
em DVD, no período em que estava compondo para o disco. Na verdade,
escrevi primeiro Beleza Escondida, depois associei com
o titulo do filme, que acho mais bonito e também me remetia
à idéia central do disco que é a de alguém que perde alguma
coisa e depois encontra. Nesse sentido Beleza Roubada
fala dessa perda, que é a perda do olhar de inocência sobre
as coisas, que se aproxima da perda da virgindade do personagem
central do filme. Fala também da recuperação desse olhar pois
mesmo não se sendo mais criança, apesar da infância perdida,
é possível recuperar a inocência do olhar através da poesia.
Que não deixa de ser um estado de abertura, quase virgindade
em relação à vida. É difícil um coração ferido se abrir de novo
mas para sermos realmente artistas temos que estar vulneráveis
como uma criança.
Em 2001 saiu uma coletânea que resgatava canções de seus
primeiros discos. Existem planos para que os álbuns sejam relançados?
Por enquanto ainda não mas vou (mexer com isso), mas quero conversar
com a EMI para estudarmos a possibilidade de relançarmos os
meus antigos LPs em CD.
Site Oficial Dulce
Quental
|