Cosquín Rock, na Argentina
Fotos e texto por Leonardo Vinhas
Blog
20/02/2008

É um pouco complicado tentar definir a sensação de estar a milhares de quilômetros da cidade que você escolheu como moradia, no meio de um horizonte verdejante no qual umas vinte mil almas estão extravasando emoções cada qual de forma muito particular, num acontecimento que se verte em uma experiência simultaneamente individual e coletiva. Seria muito errado escrever que eu não estava "perdido" em meio a tudo isso; "achado" seria mais correto.

Esse primeiro parágrafo surge com o propósito de tentar resumir a experiência pessoal de se estar no Cosquín Rock, um dos festivais mais tradicionais da Argentina, que não necessariamente aconteceu na cidade que lhe empresta o nome, mas em outro vilarejo próximo, a Comuna San Roque, previsível e apropriadamente rebatizada de "San Rocke" para esses dias.

A coisa aconteceu de uma forma vertiginosa demais para que eu pudesse me dar conta, mas num espaço de menos de duas semanas, eu havia achado brechas no meio do meu trabalho para poder ir até a província de Córdoba, na região central da Argentina, para viver meu sonho de "periodismo rocker" (e capriche no sotaque ao ler isso!), cobrindo esse festival do ponto de vista jornalístico que - a verdade nem sempre deve ser dita, mas aí está - também é fã. Fãs, você sabe, são aquele tipo de pessoa que idealiza alguém ou algo de modo a tê-lo como combustível, objeto de admiração e/ou de inspiração, alguém que se emociona a ponto de ver grandiosidade nos pequenos detalhes. Daí que sim, eu estava lá como um fã, sem dúvida.

Antes, um pouco de informação útil:

Córdoba é uma cidade tensa: muito trânsito, muita correria e muita mulher bonita de shortinho e saia curta, visto que faz um calor do cão. Ao seu redor, pequenas serras abrigam comunidades que vivem da exploração turística de balneários, já que a região é rica em rios, lagos e cachoeiras (nada que não se encontre no Vale do Paraíba, em São Paulo, mas isso é só um comentário de quem nasceu lá e não perde a oportunidade de lembrar disso). É uma cidade com intensa vida noturna, principalmente devido ao seu caráter universitário - as melhores e mais tradicionais universidades argentinas estão ali. Mas para quem não vive disso, a pilha não é tão grande: a poluição e a urbanização excessiva tornam meio impossível a sensação de estar em férias ou mesmo passeando. O jeito é então passear pelas muitas "peatonales" (os "calçadões" deles, muito mais bonitos e bem-cuidados que os nossos) ou se refugiar nos maravilhosos restaurantes, bares e cafés locais - baratíssimos, para quem ganha em real.

Por ser uma região de turismo de veraneio, os meses de janeiro e fevereiro constituem alta temporada. Foi quase impossível achar acomodações minimamente decentes disponíveis na cidade: albergues e hotéis de baixo custo lotados, restando a escolha entre hotéis caros ou pulgueiros furrecas que cobravam preços incompatíveis com sua decrepitude (acabei ficando num desses). Porém, como Córdoba é vizinha de La Rioja, tem vinho Borgoña de sobra para te fazer companhia, así que no hay problema.

Os festivais contribuem muito para essa lotação: primeiro, é o Festival Nacional del Folklore (com "k" mesmo), que acontece na última semana de janeiro, cujo nome já revela seu caráter, e é extremamente popular em toda a Argentina. Na seqüência, Cosquín Rock, o primeiro dos muitos festivais anuais dedicados à música pop na Argentina, que perde em tamanho e tradição apenas para o Quilmes Rock (que acontece em abril nos arredores de Buenos Aires). O que não quer dizer que seja um festival pequeno. São três dias, com três palcos em cada, contendo em média oito shows cada um. Além do palco principal, com as atrações mainstream, há o palco temático (heavy, punk e reggae, um a cada dia) e o palco patrocinado (esse ano, a Nitro foi a responsável), com artistas "segmentados" (leia-se: o que não cabe nos outros palcos) e/ou "emergentes". Nesses dois últimos palcos, a maioria dos artistas vem como convidada - ou seja, com as despesas pagas, mas sem receber cachê.

O dia 09 foi dedicado às bandas "rolingas" (crias dos Rolling Stones que levam demasiado a sério a caricatura "sexo, drogas & rock'n'roll"); no dia 10, uma saladona popularesca (como se Cidade Negra, Alceu Valença e Charlie Brown Jr. ocupassem o mesmo palco). O supra-sumo do mainstream ficou para o dia 08, o qual foi presenciado por este que vos escreve.

DIA 8 de FEVEREIRO DE 2008

Chega sexta-feira e aí vem a mobilização para o festival. No terminal de ônibus, garotos & garotas de todos os tipos vão se acumulando nos decks de embarque, todos copados (empolgados), porém tranqüilos. Há a tradicional predominância de camisetas pretas, mas muita gente "comum" vai subindo para prestigiar uma banda querida ou (a resposta mais comumente ouvida) só pelo astral inigualável do festival. No ônibus, faço amizade como uma fotógrafa riojana que me conta que o Sepultura já tocou em Cosquín e que ela ficou maravilhada com a presença de palco de Derrick e Igor, mesmo não tendo ela muita paciência para o heavy.

O caminho à Comuna San Rocke é muito agradável e tranqüilo, uma autopista larga em meio ao verde serrano, que passa pela concorrida estância balneária Villa Carlos Paz. Descemos todos numa praça à beira do enorme Lago San Roque e já vemos muita gente acampada nos gramados próximos. Muitos vão encontrando conhecidos e já vão se encaminhado à entrada, apesar de faltar três horas para a abertura dos portões. Enquanto isso, me abasteço de vinho e hambúrgueres vagabundos para suportar a maratona. Reviso meus equipamentos de gravação e filmagem e vou me entrosando com os pibes y pibas locais, sem me dar conta que Deus, em sua previsibilidade, estava armando uma chuva absurda que, apesar de breve, transforma o local num imenso lamaçal. Por que será que em todo festival tem que chover, e quase sempre minutos antes da coisa começar?

A desorganização dos responsáveis pelo acesso da imprensa faz com que eu perca o show dos Todos Tus Muertos, uma das mais tradicionais formações regueiras da Argentina, que já teve integrantes que participaram da fase "Tren de Hielo" do Mano Negra. Adentro a "praça" no final da primeira música do Carajo, banda metida a new metal que goza de certa notoriedade entre a molecada pré-adolescente. Pesado, bem tocado, mas sem nenhuma inventividade ou identidade, assim que aproveito o local pouco cheio para circular entre as tendas de discos e palcos secundários. No palco "temático", uma constatação óbvia que me é recorrente: o metal nunca morre. Uma banda da Terra do Fogo, Adher, levava a sério sua caricatura headbanger, com dedinhos em forma de guampa, berros guturais ("gracías por ser metaleros... y argentinos!" - não consegui segurar o riso) e visual que misturava Pantera, Slayer e Def Leppard...

De volta ao palco principal, Los Cafres aparecem com os graves no talo, tornando seu reggae pop bem mais palatável que em disco. A banda se apóia no carisma de seu vocalista Guillermo Bonetto, um branquelo com voz de negão e trejeitos de Toni Garrido - aliás, se apóia tanto nele que custei a perceber que havia uma banda no palco. Para ajudar, a chuva foi embora e abriu um sol criminosamente ardido. De qualquer forma, funcionou - e a presença de muitas garotas veinteañeras de shortinho fazendo coreografiazinhas balançadas ajudou muito bem a passar o tempo. Na praia, deve ser uma beleza.

Mas já era hora da coisa começar pra valer, e pouco antes das sete horas, o Café Tacuba sobe ao palco. O vocalista Rubén Albarrán sorri como se tivesse ganhado na Mega Sena e recebido uma benesse oral da Penélope Cruz ao mesmo tempo. Violões e programações rufando nos falantes. Era "No Controles" vindo para dar ao festival o sentido que ele deve ter (festa irrestrita e, ainda assim, pacífica). Os Tacubos são uma das melhores bandas pop do mundo, e ao vivo, toda a parafernália seqüenciada entra como complemento na receita dinâmica e envolvente criada pelo quinteto (agora com o baterista definitivamente integrado à banda), fazendo com que sua música ocupe espaços vazios da alma e ajudando a tirar o corpo da letargia.

Humildemente escalados como uma das primeiras bandas, não se fizeram de rogados e conseguiram enfiar uma saraivada de hits de todos os seus discos (até do instrumental "Revés"), todos com mais peso que nas versões de estúdio. Costurando as canções, intermezzos circenses e dancinhas impagáveis dos músicos, vestidos como uma mistura de dândis latinos e executivos em almoço de negócios em um restaurante mexicano de São Paulo. Apesar da emocionante rendição de "Las Flores", estrategicamente lançada como a segunda canção, o momento mais forte da apresentação foi a recriação de "Dejáme Caer", numa versão mais psicodélica que subiu em crescendo deixando todo mundo leve para o encerramento inesperado, com "El Baile y El Salón", uma excelente faixa que às vezes fica meio esquecida entre os hits do disco "Re". Disparado o melhor show do festival.

Não que depois tenha vindo um anticlímax: a "praça" (como eles chamam o local) estava lotada de gente que vinha se aglomerando para não perder o show do Árbol, responsável pelo pogo mais famoso da Argentina. Uma grande quantidade de crianças com a camiseta da banda se misturava a barbudos e gurias que não viam a hora do agora quarteto subir ao palco. Entrando no palco montados em pôneis e vestidos com togas romanas vermelhas, escancaram a coerência com o espírito descontraído de suas canções (mesmo as mais nostálgicas) e deixaram claro que os próximos quarenta minutos seriam puramente festivaleiros, deixando de lado momentos mais delicados (como as lindas "El Fantasma" e "Memoria", e as lúdicas "Rosita" e "Ya Me Voy") e privilegiando os hits rápidos e pesados. Saíram com "De Arriba, De Abajo" e o pau comeu, no bom sentido. Cabelos brancos, moicanos e "fashionados" se sacudiam num pogo desenfreado e pacífico, enquanto lama voava com os chutes da massa formada por pais, filhos e pobres mães desavisadas. Em "Pequeños Sueños" (que ganhou uma introdução à Agnostic Front), um garoto que perdera braços e pernas num acidente subiu no palco para tocar gaita. Grotesco? Seria, não fosse esse o sonho do rapaz, que entrou acompanhado do pai e que pedira insistentemente para poder ver a banda do palco. Um momento singular de emoção, que foi seguido pelo já tradicional pogo coreografado na dobradinha "Enes/Vomitando Flores". O encerramento, com "Cuosa Cuosa", deixou muita gente com barro até nos ouvidos e um sorrisão na cara.

A noite chegara, e já era quase impossível se movimentar pelo terreno, devido à escuridão, ao mar de lama e, principalmente, à aglomeração. Assim, perdi o heavy fascistóide e hilário do Almafuerte (que encerrava o Palco Heavy frente a um enorme público fanático) e a combinação de beats sincopados e guitarreira grunge do Kinky, banda mexicana que - me disseram fontes confiabilíssimas - deu um show surpreendente. Fiquei observando de longe o show do Catupecu Machu, uma mistura de Bon Jovi, Capital Inicial e Nine Inch Nails fase "pop". No auge de sua popularidade, o grupo apelou para todos os hits em execuções cheias de guitarras sintetizadas e efeitos iguaizinhos ao disco - tão iguais que perdiam boa parte do seu interesse. O grandalhão Fernando Ruiz Díaz é o sonho de metade das meninas lá presente, mas não consigo deixar de ver um ar de Paulo Ricardo naquele vestuário "elegante" que ele insiste em ostentar. E o mise-en-scéne com o pedestal do microfone, não bastasse estar surrado pelo uso, acabou resultando num arremesso acidental dentro do fosso dos fotógrafos (aparentemente, ninguém se feriu). Mas vá lá, é festival, e "A Veces Vuelvo", "Plan B Anhelo de Satisfacción", "Magia Veneno" (na qual um guri gordinho jogou suas muletas ao ar, provocando arrepios nos presentes) e as novas "Viaje del Miedo" e "Dialecto" são ótimas canções, que se prestam justamente a um show de arena. Para "¡Dale! ", chamam ao palco Cristián Aldana (El Otro Yo) e volta o pogo descomunal que o Árbol havia desencadeado. Brigas? Nenhuma. Fosse mais curto o show, e permitisse a banda mais espaço para improvisação, eu não estaria segurando os adjetivos, mas realmente nem todos os superlativos dos shows foram dignos de elogios.

A noite, entretanto, era do La Vela Puerca, pelo menos para o público, que adotou os uruguaios como heróis locais. A numerosa agremiação charrua é hoje a banda sulamericana de maior sucesso na parte sul do continente (Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile, além de também ser massiva na Espanha). Estavam lá todos os hits, desde os primeiros, do longínquo álbum "Deskarado" ("Alta Magia", "Mi Semilla", "Madre Resistencia") aos últimos, do ótimo "El Impulso" ("El Señor", "Sanar"), mas... Mas parece que o megasucesso subiu à cabeça da banda, que aparenta manter uma relação de superioridade e enfado com o público, estabelecendo uma distância que nem o fato de ter nove integrantes em sua formação parece diminuir. Dois vocalistas que não tem o carisma de um, sendo que um deles ("Cebolla" Cebrero) não serve para nada (mal se ouvem seus backings) e o principal ("Enano" Teysera) parece o Stephan Nercessian fazendo teste para o Los Hermanos. Quem foi para vê-los saiu dividido: os que querem ouvir "as músicas da rádio" saíram felicíssimos, mas os fãs da banda não esconderam sua decepção. Tanto que muitos desses foram embora um pouco antes do final.

Ainda havia o Attaque 77, uma das poucas bandas argentinas conhecidas dos brasileiros, dita punk, mas inegavelmente radiofônica, com power ballads que não ficariam más na voz de um Juanes... ou Fabio Junior. Punk de terceira geração, para quem nasceu anteontem. Perdonenme, amigos, pero me voy. Vai que eles resolvem tocar sua versão emocore para "Amigo", do Roberto Carlos... em castelhano (presente no álbum "Otras Canciones"). Não, não... Passo! Deixo o local quando soam os primeiros acordes do Suicidal Tendencies, banda para qual eu não dava bola no incipiente começo dos 90, e para qual não pretendo dar atenção agora. Havia um longo e agradável caminho de volta à Córdoba, com os maravilhosos efeitos "pós-festival" me esperando... (completem as reticências como quiserem), e eu não ia ficar estirado no lamaçal só para ouvir gordos decadentes tentando tocar "How Will I Laugh Tomorrow" e "You Can't Bring Me Down".

Se fosse para dar um saldo final da coisa, e tentar retomar o viés jornalístico perdido parágrafos atrás, eu diria que... Ah, o que eu diria mesmo? Talvez que eu já estive em muitos festivais no Brasil e não me lembro de ter visto um público tão roqueiro, agindo tão festiva e respeitosamente, em tão grande quantidade, para bandas majoritariamente locais. Caso me fosse habitual tal tipo de comparação, eu certamente diria: "coitado do Planeta Atlântica". Mas isso não tem a ver com competição. Tem a ver com a ilusão e o sonho gerados pelo rock que, esses sim, nunca morrem dentro de nós.

¡Aguante, Cosquín!

Agradecimentos: Rocio Paulizzi (organizador do festival), Natacha Avellaneda (guia involuntária e conselheira riojana) e "Super Mario" (o fotógrafo mais entusiasmado e com o olho mais clínico da Argentina).

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