"Carioca", de Chico Buarque
Por Jorge Wagner
Blog
21/05/2006
Chico Buarque é hors-concours! Nelson Rodrigues disse, certa
vez, que toda unanimidade é burra. Se levarmos em conta a frase
acertada do dramaturgo, poderíamos entender que há algo de errado
com essa louvação geral, mas é preciso lembrar
também que toda regra tem a sua exceção. E na MPB essa exceção
se chama Francisco Buarque de Holanda. Relevante até quando
se cala - ou, se pensarmos na ocasião da censura da época da
ditadura, quando o tentavam calar -, Chico quebra um silêncio
de oito anos sem gravar e lança Carioca, primeiro álbum
com composições inéditas desde As Cidades, de 1998.
O cantor transpira o Rio de Janeiro - suas ruas, amores, mulheres,
dores e mazelas - em Carioca, o que o título torna até
óbvio, e o passeio pela cidade começa por/pelos Subúrbios,
faixa de abertura em que ele canta a periferia - esquecida nos
mapas que o próprio cantor e escritor, em entrevista, diz ter
comprado em uma banca de jornal - listando bairros, descrevendo
a pluralidade de sons e costumes, e chamando pela voz do povo
desse subúrbio. É verdade que, num primeiro momento, o conceito
da letra pode lembrar a canção Gente Humilde,
gravada em 1970, no álbum Volume 4. A diferença está
no fato de que, enquanto a antiga composição - mais de Garoto
e Vinícius de Moraes que de Chico -, falava de um subúrbio poético
e saudoso, a nova trata da periferia do presente, menosprezada
por autoridades, mapas e cartões-postais.
Uma nova polêmica envolvendo o nome do compositor diz respeito
à sua postura a favor da flexibilização das leis antidrogas.
Chico tem dito por aí que o uso de entorpecentes no Brasil,
ao contrário dos países ricos, é um drama social, e não um problema
de saúde pública, e que a discussão da descrimilazição é algo
mais do que necessário. Outros Sonhos, a segunda canção
do álbum, reflete bem essa posição. Durante toda a letra, Chico
fala sobre sonhos impossíveis, sobre um lugar em que "De mão
em mão o ladrão/ relógios distribuía", e onde "Maconha só se
comprava/ Na tabacaria /Drogas na drogaria". Numa cidade cujo
tráfico observa a praia do alto dos morros, a paisagem cantada
por Chico soa poética e sonhadora. Quem dera...
Entre os destaques do disco ressurge Ode aos Ratos, composição - parceria com Edu Lobo - feita para a trilha sonora da peça Cambaio, de João e Adriana Falcão, encenada em 2001. Em tom menor e com referência de ritmos nordestinos, Ode aos Ratos traz uma parte bastante interessante, que fica por conta de uma embolada trava-língua que, ao mesmo tempo em que tem um pé em Jackson do Pandeiro, é praticamente um rap, e é um tanto difícil de acompanhar: "Rato / Rato que rói a roupa / Que rói a rapa do rei do morro / que rói a roda do carro / Que rói o carro / Que rói o ferro / Que rói o barro (...)", e por aí vai.
Assim como Ode aos Ratos, nem todas as músicas de Carioca
são inéditas: Dura na Queda está em Do Cóccix ao Pescoço,
de Elza Soares; Renata Maria teve seu primeiro registro
na voz de Ivan Lins, que divide a autoria com Chico; Imagina
(que em Carioca traz a participação de Mônica Salmaso),
música de Tom Jobim e letra de Chico, fez parte da trilha de
Para Viver um Grande Amor, de Miguel Faria Jr.; e Leve
já foi gravada por Dora Vergueiro, Carol Sabóia e Carlinhos
Vergueiro - co-autor ao lado de Chico. Essa última é outra das
faixas reluzentes do álbum, com seu arranjo bossa-novista,
basicamente piano e violão, e sua letra, que passeia por pontos
turísticos da cidade do Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que
o personagem dispensa, com classe e - perdoem a repetição -
de forma "leve", um caso recente. Carioca que só ele.
Jorge Helder, responsável por gravar os baixos do disco, compôs a bela melodia de Bolero Blues, a qual Chico Buarque - amigo e ídolo de Helder - preencheu com uma letra tão brilhante quanto a própria melodia, contando em primeira pessoa a história de um sujeito que espera pela amada, durante anos, ainda que sem se dar conta disso, mas quando enfim a encontra, perde sua única oportunidade. "Eis que do nada ela aparece / Com o vestido ao vento / Já tão desejada (...) Mas aquela ingrata corre / E a Barão da Torre e a Vinícius de Moraes / São de repente estranhas ruas". Ela se foi, e ele só pode lamentar: "Tarde demais".
A triste Porque Era Ela, Porque Era Eu completa o disco ao lado deAs Atrizes (uma homenagem de Chico às atrizes dos filmes franceses que via quando garoto), Ela Faz Cinema (de uma ironia um tanto quanto divertida) e Sempre. Alguns críticos acusam Chico Buarque de ter feito um disco difícil e (maldito saudosismo!) aquém de obras como Construção (1971), Volume 3 (1968) e Meus Caros Amigos (1976).
Carioca não é mesmo tão perfeito quando os álbuns
intocáveis citados acima, mas surge como o melhor trabalho de
Chico em anos - bem melhor que As Cidades, de 1998, por
exemplo. E sim, é um disco difícil, como difícil é a vida no
Rio de Janeiro. Tendo a cidade como fonte de inspiração, não
se poderia esperar um disco fácil. Como define o próprio em
entrevistas, "o Rio está uma esculhambação, do futebol ao Aeroporto
Tom Jobim". Mas Chico bate forte no peito, duro na queda, chama
a responsabilidade pra si e crava Carioca na capa do
CD, como um manifesto de amor à sua terra, simbolizada na beleza
de uma menina que "perdeu a saia, perdeu o emprego", mas "desfila
natural (...), samba no chafariz", e canta "viva a folia, a
dor não presta, felicidade sim". A dor não presta. Mesmo
cantando o Rio, Chico é um artista brasileiro. Paratodos.
Links
Gravadora
Biscoito Fino
Site
Oficial de Chico Buarque
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