Caetano trafega entre paixão e poder em novo show
por
Marcelo Costa
maccosta@hotmail.com
02/06/2004
"Minha paixão é a língua portuguesa", disse Caetano Veloso
para o público que lotou a terceira noite (sexta/28) do show
A Foreign Sound no Tom Brasil Nações Unidas, em São Paulo.
A frase surgiu no meio do show, após Caetano cantar uma longa
seqüência de músicas em inglês e se preparar para apresentar
a única música inédita do repertório do show, o sambinha
Diferentemente. Porém, se a língua pátria é a paixão, "o
inglês é o poder", diz o músico logo depois. Balizado por estas
duas hastes - a paixão e o poder, Caetano apresentou seu novo
projeto aos paulistanos, uma ode aos Estados Unidos via repertório
do cancioneiro norte-americano.
A Foreign Sound, o show, é um passeio pelo disco com
a inteligente inclusão de canções que usam a contradição como
objeto de reforço. Não espere, então, ouvir sucessos de carreira,
canções para se cantar e bater palmas. O repertório (ao mesmo
tempo) inibe e convida a admiração. A platéia, lotada, saboreia
o inusitado. Assim, Não Tem Tradução, canção de Noel
Rosa de 1933 que abre o show, prega que "as rimas do samba não
são i love you" e traz, na seqüência, Baby, que termina
curiosamente com "leia na minha camisa: Baby, baby, i love you".
E Baby surge emendada, como um medley, com Diana,
de Paul Anka, explicitando uma citação que Caetano havia usado
de backing vocal ao final da versão da música cantada por Gal
Costa no clássico disco Tropicália, de 1967.
Mesmo com as duas canções de quase domínio público vertidas
em medley, a platéia mais observa que participa. Seguem-se,
reverentes, So in Love (Cole Porter), I Only Have
Eyes For You (Harry Warrens) e Body and Soul (conhecida
na voz de Louis Armstrong), destacando o acompanhamento luxuoso
de 21 membros da Orquestra Sinfônica de São Paulo regidos por
Jaques Morelenbaum (completam o grupo o violão de Lula Galvão,
o baixo de Jorge Helder, a percussão de Léo Reis, a guitarra
de Pedro Sá e a bateria de Carlos Bala). Surge então Bob Dylan.
De óculos e letra em punho, Caetano praticamente declama It's
Alright, Ma (I'm Only Bleeding) (1965), desconstruindo a
melodia, optando pela estranheza em um arranjo que soa exagerado,
mas ganha brilho com um forte (e arrebatador) riff de guitarra
que Pedro Sá deixa flutuando pela atmosfera em um bom e estranho
momento do show.
Após o dilúvio, a suavidade volta a marcar presença com The
Man I Love de George & Ira Gershwin. Minutos de devoção
depois, o público assovia e dá sinais de participação pela primeira
vez na noite. É Come As You Are, um dos sucessos do álbum
Nevermind, do Nirvana, o disco mais famoso do movimento
- norte-americano - grunge. Pedro Sá conduz a balada fazendo
na guitarra o que no Nirvana era contrabaixo. O público canta,
tímido, mas canta. Ao quase final da música, Caetano levanta
do banquinho pela primeira vez no show (e já era a oitava canção),
simulando atirar no público com a arma imaginária que Kurt Cobain
dizia não ter na letra da música. A performance arranca aplausos
do público, que ovaciona, também, a mais paulista que americana
Feelings, de Morris Albert.
Caetano, então, apresenta a sua única música inédita do repertório,
um sambinha pra lá de bacana que explica que seu autor, "diferentemente
de Osama e Condolezza", não acredita em Deus. O passeio pela
língua pátria rende uma declaração de amor a Nova York (via
leitura de um trecho de seu livro Verdade Tropical, páginas
504/505: ...'É completamente estimulante sentir-se a vontade
na capital saxã do Império Mundial'...) e serve para relembrar
Carmen Miranda (a primeira a cantar em língua portuguesa e conquistar
os States, como não), em uma triste versão de Adeus Batucada.
Com a benção de João Gilberto - "que tudo sabe e tudo ensina
a todos" - surge uma versão da canção que Assis Valente compôs
especialmente para Carmen Miranda cantar, mas ela não ousou
gravar, deixando a batucada para os jovens Novos Baianos: Brasil
Pandeiro (sintomático que em um show de canções norte-americanas,
uma canção brasileira ateste que "o Tio Sam está querendo conhecer
a nossa batucada").
Em um exímio exercício de bate/assopra, Caetano brinca com suas
dúvidas, em frente ao público, divertindo, entretendo e criando
a sua arte. O exercício faz o músico explicar que é impossível
acreditar que um disco de Caetano Veloso cantando standarts
norte-americanos tenha chance nas paradas dos Estados Unidos,
assim como Fina Estampa (seu disco em espanhol) não podia
competir em vendagens com Christina Aguilera. A deixa permite
análises: "Eu sou um cara oblíquo", avalia Caetano, contando
que quando gravou em espanhol, apenas quis ampliar o alcance
de suas interpretações, mas sabia que não tinha como competir
no mercado hispânico. Porém, os caminhos tortos fizeram o oblíquo
Caetano encontrar o oblíquo cineasta Pedro Almodóvar. E dá-lhe
Cucurucucu Paloma, irrepreensível.
O show caminha para o final, mas Caetano ainda exercita suas
ligações oblíquas, unindo a No Wave (movimento novaiorquino
do fim dos anos setenta) de uma ex-banda de Arto Lindsay (na
minimalista e curtinha Detached) com o Caetano Estrangeiro
produzido pelo próprio Arto, vertendo opiniões de famosos como
Cole Porter, Paul Gauguin e Claude Levis-Strauss sobre o Rio
de Janeiro, a cidade que o interlocutor "menos a conhecera,
mais a amara, e é cego de tanto vê-la", perfeito modo de validar
seu modo de olhar 'estrangeiro' ao admirar o cancioneiro gringo.
O golpe final com The Carioca (o Brasil visto - pelos
gringos - e dançado por Ginger Rogers e Fred Astaire) não serve
para arrematar a noite. Caetano ainda volta, emociona com uma
bela versão de Love Me Tender (eternizada na voz de Elvis
Presley) e 'ameaça', para alegria do público, uma sessão de
"standarts brasileiros", descendo as cortinas ao som de Mamãe
Eu Quero (que chegou a ser gravada por um trio vocal norte-americano
nos anos 50, as The Andrews Sisters).
Do embate entre a paixão pela língua portuguesa e o poder da
língua inglesa surge A Foreign Sound, um show que não
reúne sucessos como os de Noites do Sertão Ao Vivo (2001)
(que trazia, entre outras, Tropicália, Meia Lua Inteira
e Menino do Rio) ou Prenda Minha (1998) (que ultrapassou
a marca de 1 milhão de cópias, sustentado pelo sucesso de Sozinho),
mas que consegue brilho na estranheza de ver (e ouvir) standarts
norte-americanos em arranjos à la Caetano, oblíquos, porém,
bastante pessoais. É um show atípico, como é, alias, o próprio
disco (segundo o próprio Caetano), mas bonito, muito bonito.
Entre a paixão e o poder, sobrevive a musicalidade de Caetano
Veloso, já não tão brasileira, nem americana, nem espanhola,
mas mundial.
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Site Oficial de Caetano
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