"We Shall Overcome - The Seeger Sessions", Bruce Springsteen
por
Jorge Mourinha
Blog
19/05/2006
O folk é música portátil - viaja de local em local nas cordas de uma guitarra acústica e na memória de quem a transporta e a usa para cantar. O folk - ou seja: música tradicional americana, com raízes fundas nas canções populares dos povos que fundaram o "melting-pot" dos Estados Unidos da América, passada de geração em geração - é uma espécie de ADN comum a quase toda a música popular americana. O folk é música de história, que mantém intacta uma ligação constante e contínua à raíz de uma certa cultura americana proletária; o folk é música de comunidade, que sempre desempenhou um papel de socialização e esclarecimento importante. O folk é música do povo, que conta e canta histórias do povo ao povo.
Tudo isto é importante para explicar a linha histórica, social e política que We Shall Overcome - The Seeger Sessions retoma orgulhosamente através de Bruce Springsteen, um dos compositores definidores da canção popular americana do século XX, ensaiando aqui um álbum constituído exclusivamente por versões, numa linhagem que aprendeu a tornar também sua. E que, numa América indubitavelmente em crise de identidade, funciona como facho libertário que recorda os ideais em que o país foi construído, vistos pelo prisma simples e direto da gente normal, da rua. Como definiu Phil Ochs ao falar sobre o folk: "all the news that"s fit to sing". Afirmação que Bob Dylan, como todos sabemos, se encarregou de levar às últimas e surreais conseqüências.
Quando, em 1972, Bruce Springsteen foi contratado pela CBS, a gravadora não hesitou em vendê-lo como "o novo Bob Dylan". Para o que teria contribuído, e não pouco, o fato da sua contratação ter tido o aval de John Hammond, o lendário executivo que trouxera para o catálogo da companhia não só Dylan, mas também Billie Holiday ou... Pete Seeger - e que, levado pela energia de palco de Springsteen, chegaria a ter um ataque de coração (não fatal) durante um show de Bruce. Claro que essa energia de palco que provara ser demais para Hammond já então explicava que não era exatamente do lado de Dylan que Springsteen se encontrava, e não foi preciso muito tempo para o jornalista Jon Landau apregoar aos sete ventos: "eu vi o futuro do rock"n"roll e ele chama-se Bruce Springsteen".
A verdade é que enquanto Springsteen foi vendido como "o novo Dylan" (ao tempo dos dois primeiros e embriónicos álbuns lançados a escassos meses de intervalo em 1973) nada aconteceu. Só em 1975 é que o rocker de Asbury Park, New Jersey, encontrou verdadeiramente a sua identidade, com o seminal Born to Run, inventando um rock'n'roll gloriosamente urgente, a um tempo intimista e cinemascópico, que não poderia existir noutro país que não os Estados Unidos. A partir de Born to Run, Springsteen tornou-se uma espécie de "porta-voz" de uma América em crescimento, de um país em constante redefinição de identidade, através de uma música que exacerbava ao limite a sua americanidade. Era o imaginário dos "cars and girls" que já havia sido o de Chuck Berry e de que o Prefab Sprout troçaria uns anos mais tarde - mas o que passava ao lado de Paddy McAloon era a escuridão e o desespero que se escondiam nos interstícios dos "cars and girls", ou a "town full of losers" da qual o herói de Born to Run fugia, ou os mânfios scorsesianos do Meeting Across the River, ou a "darkness on the edge of town" que deu título ao álbum de 1978 de Springsteen.
Era rock, sim, épico, "larger than life", arrebatador, cruzado com a entrega sem limites da melhor soul (e em quantos concertos Springsteen não se equivalia a um pregador no púlpito do rock'n'roll?), mas transportando subterraneamente a pulsão escura herdada dos blues e das baladas populares passadas de geração em geração - da música folk tal como a "geração Dylan" a entendeu e perpetuou. Essa pulsão explodiu finalmente em 1982, com Nebraska, quase-maquetes gravadas em casa, voz e guitarra acústica, de canções que Springsteen sentia que precisavam de dispensar os serviços da orquestra rock de sua E Street Band. Canções de luz e escuridão, histórias quase bíblicas da "meanness in this world".
De repente, a tal história do "novo Dylan" já não era tão rebuscada. John Hammond sempre dissera que Springsteen devia gravar um disco só com guitarra acústica. Claro que "novos Dylans" houveram aos pontapés desde que o bardo de Hibbing se tornou, contra sua vontade, no porta-voz de uma geração - tanto mais irônico quanto houve um tempo em que Dylan foi apontado como um "novo Woody Guthrie" - e também desde que o bardo de Hibbing "virou a casaca" eletrificando seu som, forçando muita gente a procurar um sucessor ao "trono" do purismo folk (muito embora "puro" fosse algo que Dylan nunca tinha exatamente sido). Ninguém teria se sentido mais traído pela vontade de Dylan transcender o que entendia como limitações do formato purista da folk do que Pete Seeger, antigo assistente do musicólogo Alan Lomax e que, "usurpando" o lugar que cabia por direito a Woody Guthrie, se tornara no divulgador emérito da tradição folk e uma espécie de "padrinho" para toda uma geração (foi a ele que os Byrds foram buscar Turn! Turn! Turn! ou The Bells of Rhymney).
De certa maneira, Seeger, que nunca escondeu o seu ativismo político, seguiu Guthrie como o responsável pela equação "folk = canção de intervenção"; mas, onde Guthrie escrevia material próprio, Seeger, essencialmente um adaptador, face "aceitável" da ortodoxia folk liberal, marcou a abertura da tradição folk americana a música proveniente de todo o mundo, refletindo exatamente o tal "melting pot" primitivo - e, de caminho, reforçando ainda mais o fator comunitário da folk. É esse fator comunitário a primeira coisa que salta em We Shall Overcome. O primeiro álbum da carreira de Springsteen inteiramente composto por versões - 13 tradicionais associados/redescobertos/popularizados por Seeger - , gravado "muito lá em casa" com uma associação bastante livre de músicos, que remete muito a uma festa comunitária ou uma "jam session" ao vivo em estúdio, e mais parece uma reunião de amigos que se junta para cantar umas canções que têm herança comum (ouça-se Old Dan Tucker, John Henry ou Jacob's Ladder).
Nesse aspecto, Springsteen limitou-se a transpôr para um outro ambiente, mais "tradicionalista", se quiser, a forte ligação comunitária que sempre transpareceu em sua carreira - quer com o "gang de bairro" que era a E Street Band, por um lado, quer com um público norte-americano que literalmente cresceu com ele e que se foi revendo (tal qual um espelho) ao longo dos anos nos seus discos (e talvez em nenhum mais do que em The Rising, de 2002). E, ao reciclar estas canções que foram sendo passadas de geração em geração, Springsteen parece estar apenas reforçando os laços que unem toda uma nação ao seu próprio passado, sublinhando os paralelos entre estas histórias séculos acima e uma América contemporânea muito mais turbulenta do que muitos querem fazer aparentar.
No entanto, a verdade é que, depois da aproximação com o country no subestimado Tunnel of Love, em 1987, o que de melhor, mais vital e mais extraordinário Bruce Springsteen fez veio do seu "lado acústico" (porque chamar-lhe folk é redutor) - ou, se quisermos, da veia narrativa que já existia, mas na qual Springsteen sentiu como um caminho a seguir, um artesanato a explorar. The Ghost of Tom Joad (1996) e Devils & Dust (2005), autenticamente coleções de contos em forma de canção transformadas pela herança das "story songs", formam com Nebraska uma trilogia essencial para balizar o crescimento do músico enquanto compositor e contador/cantador de histórias, inserido numa tradição mais próxima do folk e do country do que propriamente no universo rock onde se revelou. Tomados como pontos-chave na carreira do músico, são três álbuns que desenham pontos de transformação de uma América em ressaca do triunfalismo conservador Reaganiano, tomando o pulso de uma "pequena América" que crescera com o rock"n"roll, mas vira a "land of hope and dreams" tornar-se numa versão moderna do "dust bowl" Steinbeckiano.
Seria natural enquadrar We Shall Overcome, ainda por cima com a razão inescapavelmente ativista de ser um álbum de versões folk, na seqüência desses três discos, mas a verdade é que We Shall Overcome está muito longe de ser um Springsteen "vintage", sobretudo quando comparado com a excelência do material próprio exibido em Devils & Dust. Percebe-se que We Shall Overcome é um disco político no sentido em que o folk - tal como pensado no início dos anos 60 por gente como Pete Seeger e Bob Dylan (e por Woody Guthrie antes deles) - era político. O folk é uma música pensada para sacudir consciências, aqui apresentada por um músico que utiliza a sua reputação (ainda tendo aqui o nome populista de Seeger como "gancho") para galvanizar ainda mais um sentido de comunidade que se torna fulcral em tempos difíceis; para mostrar às pessoas um acervo de temas tradicionais que articulam em total simplicidade, como só a melhor música popular consegue, questões morais que voltam hoje a ser centrais para a pacificação da identidade de um país em crise. Como quem resiste invocando uma tradição, uma linhagem, outros tempos (os tais Better Days que, afinal, já não são estes que se vivem).
O folk faz isso alargando com evidente "savoir-faire" o molde "roots" do qual Springsteen tão bem soube apropriar em The Ghost of Tom Joad e Devils & Dust. A verdade, no entanto, é que apesar de toda sinceridade e entrega que foram colocadas nestas gravações (e é verdade que as excelentes versões de My Oklahoma Home ou John Henry poderiam fazer parte de qualquer dos discos anteriores), falta a We Shall Overcome a urgência do material próprio do compositor, deixando a sensação de que estamos diante de um disco que funciona como um anexo à obra completa (como o foram o registo do MTV Plugged ou a seleção da coletânea Greatest Hits).
A verdade é que, por todas as suas boas intenções, ainda por cima perfeitamente alinhadas com a evolução da carreira do músico e com sua efetiva crença na necessidade de mudar uma América perdida nas malhas do "big government", We Shall Overcome é um disco de folk demasiado certinho para aquilo que Bruce Springsteen tem obrigação de fazer. Se calhar, o "gancho" Pete Seeger até faz sentido para um disco que apenas confirma que Bob Dylan nunca andou longe do horizonte do cantor-compositor de Asbury Park, New Jersey. Só que não estamos falando do "novo Dylan" que tanto se quis apregoar, mas sim do "velho Dylan" dos primórdios, aquele que ainda não descobrira o seu modo poético de jogar com as palavras. E isso, vindo de alguém como Springsteen - um contista de primeira - nunca há-de ser menos do que uma desilusão.
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Texto publicado originalmente no jornal Público, de Portugal,
e cedido pelo autor.
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Springsteen, por Jonas Lopes
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Bruce Springsteen, por Marcelo Costa
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