Qual
o significado do dia de Corpus Christi, mesmo? Ah, sim, é a
festa da eucaristia, criação daquele barbudo lá de Jerusalém.
Costuma ser feriado nacional em países católicos. Bom, se temos
um feriado para marcar uma celebração feita há quase 2000 anos
por um barbudo, o que dizer então de uma celebração feita ao
vivo, agora, não por um, mas por quatro barbudos? Foi no dia
de Corpus Christi de 2007 que os Los Hermanos deram partida
à série de três shows que, até segunda ordem, serão os últimos
da carreira da banda - realizados na Fundição Progresso, Rio
de Janeiro. A coincidência entre o feriado e a data do primeiro
show foi, realmente, apenas uma coincidência. O plano original
era a realização de apenas duas datas, sexta e sábado. Mas os
ingressos esgotaram e os LH marcaram um show extra, na quinta
(que também teve ingressos esgotados). Quinze mil entradas vendidas
em tempo recorde. Por essas e por outras, é irresistível tecer
comparações entre o carisma do barbudo de Jerusalém e o (anti?)carisma
dos barbudos cariocas. Blasfêmia?
As cinco mil pessoas que lotavam a Fundição na noite de ontem,
quinta-feira, dia 7, não concordam. Como cheguei em cima da
hora, não pude testemunhar a fila que se formou seis horas antes
do show, na porta. A entrada da malta no recinto é ordeira,
sem gritarias. Parece que não fica bem aos fãs dos Hermanos
dar demonstrações públicas de descabelo. Diria que o clima,
ao menos na porta, é quase solene. O assunto “fim do grupo”
não parece estar na ordem do dia. E aí, acaba ou não acaba?
“Acho que não. Os caras vivem na maior correria, querem um tempo
maior pra descansar, pensar em outras coisas. Eles vão voltar”,
diz Elisa Rocha, 24 anos, que acha o Bloco do eu sozinho o melhor
disco dos LH - aliás, começou a gostar da banda naquela época.
“Antes eu só conhecia ‘Anna Júlia’, mas nem entendia direito
de quem era”, narra. No córner oposto está Alexandre Dias, 27
anos, que se diz “fã desde a época da demo. Vi os caras tocando
no Empório, todo mundo de chapeuzinho ainda, tu lembra?” Alexandre
traja o uniforme típico do fã dos Hermanos: camisa xadrez, jeans
batidos, All Star… e barba, claro. Ele traça um prognóstico
mais sombrio sobre o futuro do quarteto: “Olha, conheço gente
que é amiga dos caras, amiga mesmo. E me disseram que a coisa
tá estranha”. Como assim? Que coisa? Libera a inside information,
aê, cara! “Não sei, não sei. Vim aqui achando que serão os últimos
shows mesmo”, conta Alexandre, que comprou ingresso também para
a noite de sábado.
Dentro, a ambiência era bem outra. Do chiqueirinho reservado
aos credenciados, lá em cima, a visão era impressionante. Tudo
absolutamente lotado, arquibancadas e pista. A Fundição Progresso
é um caixotão de concreto com acústica sofrível e infraestrutura
tosca, mas ainda assim não havia lugar mais adequado para essas
três noites de celebração. O Circo Voador é mais bacana, mas
só comporta metade do público que cabe na Fundição. O Canecão,
um pouco maior que o Circo, cobraria ingressos bem mais caros.
Aquela casa lá na Barra, acho que agora se chama Credicard Hall,
é grande o suficiente, mas também sairia mais cara para o público
- e, putz, é na Barra, né? Não há o costume de associar os Los
Hermanos com a cena da Lapa, mas o bairro boêmio os abraçou
alegremente.
O que representam essas três noites, esses três shows, para
o pop brasileiro atual? Estendamos o debate. Quando foi que
se viu tamanha comoção com o simples anúncio de um “recesso
por tempo indeterminado”? Ou tamanha correria pelos ingressos
do que serão os últimos shows de uma banda? Mais: que outra
banda teria moral para arquitetar tal grand finale, sabendo
exatamente qual o impacto que a manobra causaria na mídia e
no público? Apenas eles. Os Los Hermanos são a banda mais importante
a surgir no rock brasileiro mainstream nesta década. Parafraseando
uma afirmação famosa sobre o Clash, eles são “o único grupo
que importa”. Não é papo de fã (mesmo porque eu não o sou).
O pop nacional é uma terra de sacações poucas e ruins, de falta
de integridade, baixo nível de inteligência, coerência artística
irrelevante. Nesse deserto de homens e idéias, os Hermanos ousaram
fazer suas próprias regras e ganharam o jogo com elas. Recusaram-se
a clonar o próprio (e único) mega-hit, brigaram com a gravadora,
vivem às turras com a imprensa, e viram, em lance pioneiro no
Brasil, as demos de seu terceiro disco surgirem na internet.
Todos esses passos tornaram a trajetória do grupo absolutamente
única. Trocaram o ilusório sucesso de massa - lembrem-se que
a gravadora que lançou a banda quebrou, de tanto distribuir
jabá - por algo que qualquer artista daria tudo para conseguir:
um público fiel, que não apenas adora incondicionalmente sua
música mas também aplaude (e se identifica com) sua postura
independente.
Os Hermanos misturaram Weezer, Acabou La Tequila e Chico Buarque
para criar um som novo, quebrando a seqüência de clonagens sucessivas
que marcaram o rock brazuca nos últimos dez anos (a cadeia involutiva
Raimundos-Charlie Brown Jr.-CPM 22-Pitty). Sua influência se
ouve no britpop paulista do Gram, no pós-mangue beat do Mombojó
e no rock safra 00 do Moptop. E também em uma verdadeira legião
urbana de novas bandas cariocas, que se apropriaram das melodias
sinuosas e das letras românticas criadas por Camelo & Amarante.
Os LH também estão no epicentro de uma outra nova música carioca,
uma meiúca equidistante tanto do pop quanto da MPB, que gerou
projetos como a Orquestra Imperial, o grupo + 2 e a virada roqueira
de Caetano Veloso em Cê (coadjuvada por jovens músicos cariocas.
Aliás, Caetano grava na mesma Fundição o DVD ao vivo de seu
novo repertório, na próxima terça.) Os Hermanos “autorizaram”
os grupos indies a voltar a cantar em português.
E agora, entram em recesso por tempo indeterminado, depois desses
três shows no Rio. Mas não dá pra teorizar muito mais, pois
os caras já estão no palco, tocando “O vencedor”. Não dá para
entender o que Camelo canta, primeiro por conta do som embolado,
segundo porque a platéia canta junto tão alto que abafa tudo.
Não é gritaria beatlemaníaca (apesar do climão de Candlestick
Park), é neguinho cantando tudo, verso por verso, de maneira
apaixonada, ao menos na primeira meia-dúzia de músicas - levadas
só por Camelo. Amarante, neste primeiro bloco, não cantou: só
assumiu o microfone em “Onze dias”, a quinta canção, resgatada
lá do primeiro disco. Antes, teve “Todo carnaval tem seu fim”,
“Casa pré-fabricada”, “Morena” e “Além do que se vê”. (A disposição
do setlist me fez lembrar do show que eles fizeram no Free Jazz
de 2003, com Camelo enfileirando umas dez músicas e Amarante
entrando só depois. Ao fim da apresentação, um insider me disse
que Rodrigo estaria “doido demais” pra começar o show cantando,
e Camelo assumiu as primeiras músicas até a bola do companheiro
baixar.)
A performance é empolgada, mas a banda não se dirige ao público.
Não há discurso, não há deliberações sobre o possível fim, mas
a impressão não é a de adeus. O bate-bola entre os dois cantores-compositores
no palco funciona melhor à medida em que o show progride, alternando
“Retrato pra Iaiá”, “Condicional”, “Cara estranho” e atingindo
um ápice em “Anna Júlia”, sim, aquela, a antes rejeitada, e
que voltou já há algum tempo ao repertório do quarteto. “De
onde vem a calma” esfria os ânimos - àquela altura, o público,
que tinha se acomodado lá pelo meio da apresentação, voltara
a cantar com todo o fôlego. No bis, quatro músicas, fechando
como sempre com “A flor”. Mas antes teve “Quem sabe” - o marco
inicial do emocore brasileiro? Faltou “Pierrô”, pedida insistentemente
pelo povo, e os hits primevos “Primavera” e “Bárbara”. Sexta
e sábado tem mais, o repertório vai mudar a cada noite.
Não se viu, definitivamente, uma banda prestes a acabar. Na
verdade, foi um show dos Hermanos como qualquer outro, das dancinhas
desajeitadas de Camelo à bonachona presença da turma dos metais,
lá no fundão. Mas as poucas palavras que a banda dirigiu ao
público deixaram a impressão de que, talvez, ambos (banda e
platéia) quisessem evitar o assunto desagradável do fim. Se
vocês não perguntarem, a gente não responde, parecia dizer Camelo.
Ao meu lado, um rapaz teorizou: “Vai acabar nada. Eles vão dar
um tempo, depois se reúnem e gravam o Sgt. Peppers deles”. E
o espiríto de Candlestick Park, mais uma vez, se manifestou.
Encerrar as atividades no auge da carreira é uma tentação que
os Hermanos, para o bem do pop nacional, devem tentar evitar.
Mas que iria ficar bem na biografia, ah, isso iria.
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