"Neon Bible", do Arcade Fire
por Marcelo Costa
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08/03/2007

"Eu sei que o momento está chegando", canta Win Butler em "Black Mirror", faixa que abre – de forma densa – "Neon Bible", álbum que surge com a tarefa inglória de superar a grandiosidade melódica e temática de "Funeral", estréia dos canadenses em 2004. Porém, antes de pensar se a banda conseguiu parir um álbum a altura da estréia, a pergunta que martela o pensamento é: que momento está chegando, Win? A resposta surge algumas estrofes depois: "Espelho, espelho na parede, me mostre onde as bombas vão cair". Se a tragédia familiar era o tema central de "Funeral", o Arcade Fire retorna abraçando esta bolotinha azul (com sua camada de ozônio esburacada) chamada Terra e tenta nina-la em "Neon Bible", o fim do mundo segundo os canadenses.

Interessante perceber o momento atual da música pop. De um lado – dançante e festeiro e dominado por luzes verde limão – temos o Klaxons implorando para que todos dançem até o fim do mundo, que deve bater as botas ali por 2012. No centro, radiografando essa loucura que virou o planeta Terra século XXI, temos o Bloc Party, do grande vocalista/letrista Kele Okereke, que ainda acredita na existência de heróis, mas no jeitão 2007 de ser herói: um cara armado de pistola, e que se entorpece de cerveja, foie gras, cocaína e Marlboro vermelho. Na outra ponta surge o Arcade Fire, sombrio, negro, com sua bíblia de néon em forma de música pop, melodicamente encantadora, tematicamente assustadora.

Se o campo temático se ampliou de Montreal para o mundo todo, a formação da banda não ficou atrás no quesito instrumentos, sobrepondo sons através de mandolins, fagotes, xilofone, harpa, piano, violino, violoncelo, orgão de música sacra (o disco foi gravado em uma igreja, aliás, assim como "Closer", do Joy Division, outro álbum dominado pelo desespero) e... baixo, guitarra e bateria. Sem contar um coro militar e uma orquestra húngara. Essa profusão de instrumentos e instrumentistas deixou a música da banda grandiosa, mas não grandiloquente (aleluia, aleluia). Com os arranjos trabalhando a favor da canção, o Arcade Fire consegue o inimaginável: lançar um álbum tão poderoso quanto sua estréia.

"Black Mirror", a tal música que quer descobrir o local em que as bombas vão cair, abre o disco com uma linha de baixo (aqui mais acelerada) que lembra "With Or Without You", do U2. A voz de Win Butler, no entanto, lembra Ian McCulloch fase "Crocodiles/Heaven Up Here", e os instrumentos vão pontuando o arranjo de forma sublime, até quase transformar a canção numa valsa. Teclados suntosos, mandolim e bateria acelerada anunciam "Keep The Car Running", uma canção estradeira, que registra o olhar de quem anda visitando muitos lugares pelo mundo, sem descobrir coisas que valham a pena em cada uma destas visitas: "É a mesma velha cidade, mas com um nome diferente", explica o vocalista logo no início da canção. Quase no fim, ele avisa: "Se alguma noite eu não voltar para casa / Por favor não pense que eu te deixei sozinho". Violinos se misturam com microfonias e bailam estrada adentro.

Após a correria da faixa anterior, "Neon Bible", a faixa título, é um respiro. Mas um respiro pesado, quase lúgubre. O título da canção foi emprestado do romance homônimo de John Kennedy Toole, livro renegado pelo autor, e que só foi lançado postumamente, após o suícidio do escritor, aos 32 anos. O refrão da canção, tristíssimo até onde a tristeza pode chegar, prevê: "Se a bíblia de néon estiver correta, não existe muita possibilidade de sobrevivência". Hora de respirar profundamente, puxar o ar dos pulmões e torcer para que nenhuma bomba caia enquanto o exemplar de sua bíblia predileta é vendido em algum canal de televisão. Nenhuma bomba cai, bíblias brilham no escuro, e um orgão de igreja com notas de piano descendo como lágrimas anuncia "Intervention", que logo na segunda frase diz que "a semente inútil foi semeada". Backings distantes na mixagem surgem para assombrar a melodia, e conseguem transformar "Intervention" em uma das grandes canções do álbum. Mas ainda estamos no meio da caminhada. Precisamos rezar, erguer as mãos, e dar glória a Deus. "Black Wave/Bad Vibrations", com Régine Chassagne conduzindo o vocal, serve para dar uma acalmada na alma. Depois de tanta tortura até acreditamos quando ela diz que podemos alcançar o mar (a terra prometida?), mas basta o conforto fazer colo em nossos ouvidos para Win Butler chegar chutando a porta, gritando "stop now" e avisando: "nada dura para sempre". Ian McCulloch já havia cantado isso, mas de sua voz escorria tristeza, não desespero, como Win Butler.

O genial título "Ocean of Noise" entrega a grande canção de amor (no sentido "Crown Of Love") do álbum, um lamento sobre os ruídos que separaram um casal. Antes dos olhos transformarem-se em oceano surge a trágica "Well & The Lighthouse", que narra a história de um assassino que, após ser solto, volta a matar. "Os leões e os cordeiros não estão dormindo ainda", diz ele sobre um final épico. "Antichrist Television Blues" é uma canção que funde a inspiração temática do Bob Dylan dos primeiros anos com uma execução a la Bruce Springsteen. E é sensacional. Sobre o som de um violão nervoso, Butler conta a história de um pai que se sente no céu só de ouvir sua filha de 13 anos cantar. Ela está pregando as palavras do senhor, mas o pai está em dúvida se essa pregação levará sua família para o céu ou para o inferno. "Será que sou um anticristo?", pergunta o pai na melhor letra do álbum.

Melhor letra? O páreo é duro com "Windowsill", canção que surge na seqüência falando sobre a terceira guerra mundial, sobre abandonar a casa dos pais, abandonar a América, sobre ser uma alma livre, sem endereço, lenço e documento, ou seja, sobre desistir de lutar. Sua estrutura melódica lembra "Black Mirror", e ambas lembram U2. Win Butler enfilera "não quero isso e aquilo" na letra, mas no entanto, como você pode imaginar, desejos não são os sentimentos mais fáceis de se materializar no mundo do vocalista. Pequena pausa, e "No Cars Go" pula do EP lançado de forma independente em 2003 pela banda para a camisa 10 de "Neon Bible". Sua mudança de ambiente serve para avaliar a evolução melódica do septeto entre um registro e outro, ou, como diria alguém, no quanto o dinheiro pode permitir luxos de produção. Fugir é o tema da canção, assim como o de todo o álbum. Deixar esse mundo que está se desmaterializando para trás, e ir para um lugar em que nenhum návio, nenhum submárino, nenhum carro chegue. Para fechar um grande álbum, uma canção magnífica: "My Boby Is A Cage", que joga na lama toda esperança de redenção procurada – de forma inocente até – nas duas faixas anteriores. Como sonhar com liberdade se o próprio corpo é uma prisão? O problema, para Win Butler, somos nós mesmos.

Ouvir "Neon Bible" do início ao fim – saboreando seus 51 minutos – é uma experiência e tanto. Enquanto o Klaxons pede para você esquecer esse mundo maluco e dançar enquanto temos tempo; enquanto o Bloc Party fotografa situações do dia-a-dia e as transforma em música de qualidade; o Arcade Fire, por sua vez, pincela um quadro negro que deve ser observado como se estivéssemos olhando fixamente as imagens de um livro 3D daqueles "Olho Mágico". Porque atrás da tinta negra há um mundo dominado pela televisão, a caixinha que emburrece; um mundo em que religião mais culpa que acalenta; um mundo em que assassinos seriais (loucos e governantes) seguem matando; um mundo em que falsos pastores vendem bíblias de néon e prometem a vida eterna em troca de seu dinheiro; um mundo prestes a acabar numa terceira guerra mundial. É o fim do mundo como nós o conhecemos. E você se sente bem, caro leitor?

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