Patti
Smith - Elegia ao Punk como Modo de Vida
Sob um ponto-de-vista não-ortodoxo,
Patti
Smith pode tachada como uma perfeita encarnação do ideário
punk! Não só no que se refere ao estereótipo associado
ao gênero, mas sim à ética no discurso contestatório
inerente ao punk. Aos vinte e cinco anos de uma carreira discográfica
iniciada com o emblemático álbum Horses - um marco filosófico
na história do punk rock, ela ainda consegue angariar respaldo intelectual
ao gênero, em razão da ponte que há tempos promove
entre a vanguarda estética e a tradição iconoclasta
e dionísica do rock'n'roll.
A grande fã de rock'n'roll
que idolatrava Keith Richards, Jim Morrison e Bob Dylan da mesma forma
que mitificava os poetas malditos Allen Ginsberg, William Burroughs e Jean
Arthur Rimbaud é, ainda hoje, aos 53 anos de idade, o paradigma
de um artista íntegro no corrompido e artificialmente frívolo
cenário da cultura norte-americana. Panorama que avaliou numa perspectiva
histórica em "Gung Ho", seu oitavo álbum. No novo trabalho,
a cantora-poetisa reitera a imensa admiração e culto incondicional
a que é agraciada desde suas primeiras apresentações
em sarais de poesia até os dias de hoje, inclusive por expoentes
do cenário pop-rock, tais como Bono Vox (U2), Michael Stipe (REM)
e Sonic Youth.
Aproveitando a ocasião, o
Scream & Yell presta tributo a esta figura que incorpora à
sua obra referências estéticas do melhor da arte feita no
século XX, sempre partindo da perspectiva do apreciador que intertextualiza
em seu trabalho as mais variadas manifestações artísticas.
Da tradição à contestação, a biografia
de Patti também é, por si só, uma elegia à
ética e ao espírito empreendedor do qual se configuram as
grandes obras.
Ela acreditou incondicionalmente em
sua lenda pessoal e lutou com entusiasmo até conseguir seus objetivos.
Essa é uma das razões para que sua história seja fascinante.
Inicialmente, sua motivação era injetar um pouco de energia
revolucionária no universo da poesia, mas ela acabou fazendo mais
que isso. É o que você confere logo abaixo. Aprecie!
POR UM MUNDO MELHOR
Vinte e cinco anos depois do lançamento
de seu primeiro álbum, Patti Smith continua sendo a mais influente
e enigmática figura feminina na história do rock. Sua influência
pode ser notada perfeitamente no trabalho de figuras tão distintas
como Madonna e PJ Harvey, passando por Courtney Love e Alanis Morrissete.
Entretanto, a conotação
atribuída à figura de Patti Smith vai muito além disso.
O culto a que a cantora é agraciada poderia aludir à canonização
dirigida a alguns ícones da tradição religiosa – se
acha isso muita viagem da minha parte, se associe à Babel List,
um grupo de discussão dedicado à cantora, e confira se esse
é ou não real. Entretanto, Patti riria de quem a abordasse
como uma figura santificada ou sobre-humana, mas tem a plena noção
do impacto que seu trabalho tem na vida de muitas pessoas, as quais se
sentem motivadas a explorar o máximo de seus potenciais. Trata-se
de algo mágico e repleto de conexões sagradas para a vida
de muita gente.
Não é exagero afirmar
que Patti é, sem sombra de dúvida, o artista de trajetória
mais idônea entre os sobreviventes de sua geração.
Leve em conta que a dona é, de certa forma, contemporânea
de figuras como Iggy Pop, David Bowie e Lou Reed, entre outros baluartes
da história do rock. A única comparação pertinente
poderia ser feita a Neil Young, diga-se de passagem.
Em "Gung Ho", Patti faz uma reflexão
sobre o passado histórico de seu país, sempre a partir de
uma perspectiva otimista. Afinal, quem mais poderia bradar libelos humanistas
sem parecer rídiculo? Todos os que acompanham a carreira da cantora
sabem que este papel lhe cai perfeitamente. Patti não é uma
idealista utópica, tampouco demagoga.
Em vários momentos de "Gung
Ho", Patti avalia alguns períodos da história americana e
reivindica uma evolução social por meio do amor. Desde a
capa, temos uma prova desse flerte com o passado: uma foto de seu pai,
uma polaróide de 1942 em preto e branco. Com uma produção
apurada, a cargo de Gil Norton (conhecido por seus trabalhos com os Pixies),
trata-se de um trabalho intricado - assim como boa parte de sua discografia,
dissecada no decorrer da matéria.
Na primeira faixa, "One Voice", Patti
nos chama a atenção para que deixemos nossos corações
falar por nós mesmos: "movidos pelo amor a servir, celebramos todos
os méritos na vida /... / repleto de alegria que o paraíso
transborda / Deixe o amor ressoar / Se ele estiver mudo, dê-lhe um
sino / Se estiver deprimido, um apoio..." Os mais novos hão de notar
a semelhança de alguns temas messiânicos típicos de
Bono Vox e cia. Em tempos de babacas como Eminem e seu discursinho pseudo-durão
pra enganar otário se torna referência pop, o que você
diria de uma figura com culhão (êpa, apenas modo de dizer)
suficiente para cantar uma parada dessas?
Mas o disco vai além disso!
Duas faixas de "Gung Ho" são dedicadas à figuras históricas,
uma delas é "Libbie's Song". Inspirada na esposa de General Custer,
ela se assemelha a uma canção folclórica norte-americana.
A diferença está em seu discurso contundente.
Outro exemplo disso é a poderosa
faixa-título, um improviso de 11 minutos, em que a cantora reflete
sobre a figura do líder vietnamita Ho Chi Minh. É um momento
em que Patti acena à sua própria trajetória fonográfica,
marcada pelo improviso sonoro e pela poesia declamada em longas faixas,
artifício estético no qual se notabilizou desde o primeiro
álbum. Nesta música, Patti clama por "uma nova revolução",
longe de parecer uma figura caricata ou demagógica.
Na zeppeliniana "New Party", destaca-se
a coesão entre as duas guitarras, a cargo do fiel escudeiro Lenny
Kaye e de Oliver Ray. Vale ressaltar que a cantora é acompanhada
pelos mesmos músicos do disco anterior, "Peace And Noise".
Em "Lo And Beholden", uma parceria
com Lenny, Patti conta a saga de índios americanos na sangrenta
Batalha de Wounded Knee. Mas a maioria das canções do novo
álbum são narradas a partir da perspectiva de escravos. Neste
disco se percebe claramente a importância de Lenny Kaye no trabalho
da cantora. Ao contrário de seus dois últimos lançamentos,
trata-se de um trabalho concebido em conjunto. Isso é comprovado
na fluidez do repertório, que reserva ao ouvinte uma audição
agradável da primeira à última faixa.
Mas apesar da contundência,
o disco também reserva momentos pop. Como na dançante "Gone
Pie", uma canção pop que, por ironia do destino, não
faria feio nas pistas de dança. Assim também é "Glitter
in their Eyes", que conta com solo de guitarra de seu filho Jackson, que
honra o sobrenome da família. Esta última conta o episódio
do tumulto na Organização Mundial de Comércio, ocorrido
ano passado, a única concessão feita à atualidade.
Um contraponto a todo esse bem-estar
é conferido na climática "Strange Messengers", em que Patti
canta sobre a escravidão na era pré-colonial. Para isso,
ela incorporou o espírito de um mulher negra da época, algo
como o xamanismo ao qual fazia uso em determinados momentos de sua carreira.
É uma das canções mais fortes do disco, em que se
destaca a fúria com a qual a cantora é acometida ao perceber
a forma como a ancestralidade é tratada por parte dos negros americanos,
espiritualidade que se esvai na fumaça de cachimbos de crack, conforme
ela mesma ressaltou a forma como é paga a dívida destes com
os antepassados.
Mágoa e sarcasmo em forma de
música, o único momento raivoso em um trabalho calcado na
devoção ao espírito humanitário. Tal julgamento,
atípico a sua personalidade só entrou no disco em razão
de sua perspectiva positiva com relação à situação,
em que estes são observados como vítimas da história.
São vários os destaques
de "Gung Ho", um trabalho em que Patti presta tributo a si mesma e ao culto
ao qual é agraciada com o passar dos anos. Logo abaixo, você
confere as razões para tamanha idolatria incondicional, que sobreviveu
até nos hiatos em que a cantora-poetisa se afastou dos holofotes.
Divirta-se!
"ENTÃO VOCÊ QUER SE
TORNAR UMA ESTRELA DO ROCK?"
trecho retirado
de "So You Wanna Be (A Rock’n Roll Star)", do álbum Wave
Nascida em dezembro de 1946 em Chicago,
Patricia Lee Smith foi criada em Woodbury, New Jersey. Sua mãe,
uma garçonete dublê de cantora de jazz, tinha propensões
à fantasia. Já seu pai trabalhava no campo e, apesar de ser
uma pessoa moldada pelo raciocínio objetivo, passou sua vida apostando
em corridas de cavalos.
Patti, a mais velha dos quatro filhos
do casal, se tornaria uma síntese perfeita dos pais. Incapaz de
encontrar espaço em seu meio ginasial, ela encontrou refúgio
em imagens de Rimbaud, Bob Dylan, James Brown e Rolling Stones. Ela idolatrava
seu pai, que a introduzia a leituras da Bíblia, Bertrand Russel,
o mitologista Joseph Campbell e também livros de ufologia. Como
tinha de tomar conta dos irmãos mais novos, ao mesmo tempo ela exercitou
sua capacidade nata de contar histórias (herdada de sua mãe).
Foi justamente no vilarejo, no interior
de New Jersey, que ela freqüentou bailes de música negra e
teve contato com o rock'n'roll. Após uma desventura como Testemunha
de Jeová, o gênero aos poucos se tornaria sua profissão
de fé. Patti não conseguia entender porque as religiões
se voltavam contra algumas manifestações artísticas,
pois fora alertada de que os museus e as obras de arte não seriam
dignas de salvação no final dos tempos. Em sua mente, criou
um paradoxo entre devoção e carnalidade, que se tornaria
uma constante em seus trabalhos iniciais. Era fascinada com a imagística
da religião, ao mesmo tempo que sentia repulsa à característica
excludente dos dogmas.
Patricia trabalhou uns tempos no magistério
e sonhava ser artista, embora fosse totalmente indisciplinada quanto ao
aprendizado de qualquer ofício. Engravidou aos dezenove anos e,
por essa razão, foi expulsa da escola. Na ocasião, contou
com o apoio de um casal hippie e vegetariano. Encarou a gravidez até
o final, mas não o filho, que entregou-o para entidades de adoção.
Anos depois, este episódio seria tema de um dos poemas de seu primeiro
livro de poesias. Foi nessa época que seguiu em direção
às luzes brilhantes da metrópole cosmopolita Nova Iorque,
onde se sentiria acolhida pela diversidade cultural inerente à cidade.
Ao chegar à cidade com apenas
dezesseis dólares, conheceu um estudante de arte e fotógrafo
chamado Robert Mapplethorpe e foram morar juntos em alguns hotéis
e muquifos. Conseguiu emprego como funcionária da livraria Strand
And Scribner's, onde se sentia acolhida em meio a grandes obras da Literatura
Universal. Em 69, viajou a Paris com sua irmã Linda, onde trabalhou
nas ruas como artista performática e fez suas primeiras incursões
junto às artes visuais.
Com a chegada dos anos 70, Patti retornou
à Nova Iorque, onde posteriormente angariou repercussão em
points como o Max Kansas City. Foi nesta cidade que conheceu figuras como
Johnny Winter e Bob Neuwirth (amigo de Bob Dylan e em quem este se inspirou
na canção "Like A Rolling Stone"), que a encorajaram a subir
aos palcos. Nessa época, ela discretamente escrevia poesia, mais
como um artifício estético que utilizava em suas pinturas.
VAI RIMBAUD!
trecho tirado
de poema "Rock'n Rimbaud"!
Em fevereiro de 71, Patti foi atração
de abertura para Gerard Malanga no Poetry Project, projeto semanal de leitura
de poesia na Igreja de St. Mark, situada no Lower East Side. Sua estréia
coincidiu com o aniversário de Bertold Bretch e, na ocasião,
foi acompanhada em três canções por Lenny Kaye - incluindo
"Oath", cujos versos posteriormente fariam parte de duas canções:
"Fire of Unknown Origin" e também de sua releitura para "Gloria"
(Them).
Kaye era um crítico de rock
e também funcionário de uma loja de discos, que ela conheceu
por intermédio de um artigo que ele havia escrito sobre música
à capella. Patti o procurou no Village (Nova Iorque), bairro onde
Lenny trabalhava, e o convidou para acompanhá-la com sua guitarra
em seus sarais de poesia - estimulada pela descoberta de que gostavam do
mesmo tipo de gravações obscuras. Assim, ela incluiu o ritmo
de seus acordes à sua poesia cantada-declamada, ainda que já
houvesse um certo senso de que isso poderia chegar mais longe.
Ao mesmo tempo, Patti fazia nome atuando
no teatro underground (estrelando peças como Femme Fatalle e Vain
Victory, do travesti teatrólogo Jackie Curtis - um sujeito notório
por não se lavar regularmente) e colaborando com o dramaturgo Sam
Shepard, com quem foi co-autora de Cowboy Mouth (alusão a uma canção
de Bob Dylan). Esta última só seria encenada uma única
vez em abril de 71 e, incipientemente, já expunha suas aspirações
roqueiras.
Patti continuou se apresentando como
uma poetisa-atriz pelos dois anos seguintes, sendo inclusive atração
de abertura para os New York Dolls no Mercer Arts Center (espelunca que
até 73 abrigou os futuros habitués do CBGB's). Escreveu canções
para o Blue Oyster Cult (banda do baixista Allen Lanier, seu namorado na
época), resenhou discos para as revistas Creem e Rock, como também
teve publicados seus primeiros volumes de poesia.
Seus trabalhos com literatura, inicialmente
capturados em três antologias - Seventh Heaven (71), Kodak (72) e
Witt (73) - foram bastante inspirados por Rimbaud e William Burroughs mas,
à medida que os anos 70 seguiam, ela foi progressivamente levada
a fundir sua verve literária com o rock'n'roll. Consta que sua primeira
gravação para um grande selo foi de uma versão para
um poema de Jim Morrison no álbum solo de Ray Manzarek, também
ex-Doors.
Em seu primeiro livro, Patti se notabilizou
por incorporar ritmo à narrativa poética, elemento emblemático
de todos os seus trabalhos posteriores. Seus poemas eram basicamente sobre
garotas, pois tinha dificuldade em aceitar o fato de ser mulher. O livro
marca o primeiro momento em que, de fato, considerou as mulheres. Apesar
disso, Seventh Heaven apresentou poemas sobre mulheres seduzidas, violadas
– sempre do ponto-de-vista masculino. Na adolescência, ela queria
ser um garoto e se irritou quando seus seios começaram a crescer.
Patti tinha uma imensa dificuldade
de aceitação pelo fato de ser feia e talvez isso explique
essa obsessão, presente em outros momentos de sua carreira. Em Witt,
seu terceiro livro de poemas, se apresentava como um ser humano "sem mãe,
sexo ou pátria" - o que levou alguns críticos equivocados
a tacharem a narrativa como se fossem geradas a partir de uma perspectiva
lésbica.
Ela já demonstrava aspirações
relacionadas ao mundo do rock, treinava seus dotes vocais acompanhando
Iggy Pop em sua vitrola e até tentou formar uma banda só
de garotas. Mas nenhuma delas estava tão ligada naquilo, achando
que fosse apenas mais uma excentricidade de Patti. A coisa só começou
a ficar séria em novembro de 72, quando ela se uniu a Lenny Kaye
para uma performance de poesia, intitulada Rock'n'Rimbaud, num nightclub
gay localizado no Times Square de Nova Iorque.
Ali foram plantadas as sementes para
a formação de uma banda de verdade. Na ocasião, os
dois apresentaram um set em homenagem ao dramaturgo Bertold Bretch e ao
bad boy Jesse James. Um dos destaques da apresentação foi
o poema "Oath", em que Patti declamou versos que seriam notabilizados por
sua releitura de "Gloria", um clássico do rock: "Jesus morreu pelos
pecados dos outros / E não pelos meus", assim ela regurgitava toda
a culpa embutida na filosofia judaico-cristã, um de seus emblemas
iconoclastas do início de carreira. Mas não se tratava de
um mero brado ateísta, e sim um líbelo pelo livre arbítrio
proposto no próprio Evangelho.
Numa dessas ocasiões, o poeta
beat William Burroughs, um de seus ídolos, assistiu a uma de suas
apresentações e ficou fascinado com seu senso de performance
e showbiz. Posteriormente, a dupla Lenny/Patti passou a ser acompanhada
por uma sucessão de pianistas, que culminou com a entrada de Richard
"DNV" Sohl, no início de 74. Com o trio consolidado, começaram
a tocar com maior regularidade. Era uma curiosa mistura musical com o improvisado
jogo de palavras de Patti, algo entre o free rock e o free jazz. Canções
próprias eram mescladas com estranhas releituras de trabalhos de
outros artistas, usadas como contratempo, que enfatizavam a dinâmica
das performances.
"VOU SER UMA ESTRELA! AGORA PRESTE
A ATENÇÃO EM MIM"
trecho do poema
"Piss Factory"
Uma delas, uma regravação
de "Hey Joe", tendo como pano-de-fundo o, amplamente comentado na época,
seqüestro da menina Patty Hearst, acabou se tornando sua primeira
gravação oficial. Entraram no estúdio Electric Ladyland
em junho de 74, onde grupo fez experimentações para ver se
a eletricidade que geravam ao vivo poderia ser traduzida para o vinil.
Com a ajuda de Tom Verlaine (do Television)
na guitarra, intimado por Robert Mapplethorpe, e lançado pelo seu
próprio selo do guitarrista Mer Records, o resultado foi um dos
primeiros singles do indie-rock calcados no emblema do-it-yourself. O lado
B trazia a profética "Piss Factory", inspirada angústia de
Patti com seu trabalho numa linha-de-montagem e na promessa que havia feito
a si mesma de que viajaria à Nova Iorque, rumo a uma nova vida:
"Gonna be a star / Watch Me Now!" é um de seus versos.
Amparada por uma energética
nova banda e pela emergente cena local centrada no CBGB's em Nova Iorque
(levante pré-punk do qual surgiram Ramones, Blondie, Television,
The Heartbreakers, entre outros expoentes da "blank generation"), o grupo
(ainda contando somente com Patti, Lenny e DNV) viajou para a Califórnia
no inverno de 74, onde tocaram no Whiskey a Go Go (Los Angeles) e no Fillmore
East (São Francisco). Ao retornarem, sentiram que o som do grupo
precisava de maior consistência e recrutaram o guitarrista Ivan Kral,
um refugiado tcheco.
Foi com este line up que o grupo tocou
por oito semanas no CBGB's no início de 75, apresentações
as quais incrementaram seu trabalho conceitual. Foi numa dessas ocasiões
que o Patti Smith Group atraiu a atenção do produtor Clive
Davis, que os contratou no meio do ano para seu recém-criado selo
Arista Records. Antes mesmo de se tornar uma celebridade, Patti já
era uma figura cult na efervescente cena nova-iorquina do início
dos 70. E sua gravadora soube explorar bem esse potencial, não tratando
seu trabalho como um mero produto de consumo.
Nos palcos ela incendiava as platéias
como uma riot girrrl, muito antes do termo ser inventado, utilizando técnicas
teatrais recomendadas por Antonin Artaud (mentor do pré-punk "Teatro
da Crueldade", que também servia de manancial para as artes cênicas
em Nova Iorque no início dos 70). Sua música combinava conto
de fadas, felicidade histérica, traumas de infância e fantasias
masturbatórias embaladas por vocais melódicos numa atmosfera
hipnótica que remetia ao rock mais toscão dos anos 50 e 60.
Em suas apresentações,
Patti evocava imagens da história do rock e isso era parte de seu
apelo. Dotada de uma poderosa tensão dramática, ela atemorizava
a audiência ao mesmo tempo em que a instigava a impulsos protetores.
Energia fluindo da espinha, Patti lidava com a magia dionísica inerente
às grandes manifestações artísticas.
Para completar o line up do Patti
Smith Group, foi convocado o baterista Jay Dee Daugherty, que trabalhava
o som do grupo sempre que se apresentavam no CBGB's. Ele já havia
tocado várias vezes com o pessoal e integrou a banda oficialmente
em tempo de gravar seu álbum de estréia, que contou com a
produção de John Cale. Gravado no Electric Ladyland, Horses
foi lançado em novembro de 75.
GLÓRIA
Cover do Them
gravado pela cantora em versão personalíssima no álbum
Horses
Durante anos, Patti perambulou pelas
redondezas dos circuitos literários e boêmios do Greenwich
Village e era tida como lunática por acreditar em amizades imaginárias
com celebridades como Keith Richards, Bob Dylan, Marianne Faithfull, John
Lennon, Frank Sinatra e Brian Jones. Não fazia a menor questão
em esconder que todos esses ícones faziam parte de sua vida.
Vivia como se fosse um deles até
que sua obstinação lhe valeu ao ponto de alcançar
certo status cult por sua poesia, o que se concretizou posteriormente com
o lançamento de Horses e o aval de um de seus maiores ídolos,
Bod Dylan. Ao assinar contrato com a Arista, ela sabia que havia chegado
sua vez e não desperdiçaria a chance. A aclamação
atribuída a Horses coroou a obstinação de quem ralou
durante anos na obscuridade e a adoração aos mitos do rock.
O disco contém releituras personalíssimas
implementadas por Patti para clássicos do rock, tais como "Gloria"
(da banda Them, mas também bastante conhecida pela versão
dos Doors) e "Land" (Of a 1000 Dances), um hit de 1963 do grupo Cannibal
and the Headhunters. Horses é clássico desde o lançamento.
Embora Horses tenha perdido o senso
de humor característico de suas performances ao vivo, é um
trabalho poderoso que incorpora poesia declamada e a pegada básica
do rock'n'roll a um patamar inédito para os experimentos anteriores
dos Doors, Frank Zappa, The Fugs e Velvet Underground, entre outros. A
maioria das músicas surgiram de jam sessions com os músicos
nas quais Patti sonhava acordada enquanto expelia poesia e o som rolava
numa estrutura básica de acordes.
O trabalho contém alusões
a sexo rude, violência, apocalipse, suicídio e morte. Quatro
de suas faixas são lamentações a pessoas mortas, sendo
que três delas são celebridades. Uma delas é "Elegy",
uma homenagem a Jimi Hendrix gravada no dia de seu aniversário de
morte. Vale ressaltar que o disco foi gravado no Electric Ladyland, estúdio
planejado pelo cantor antes de sua morte.
Outro cadáver ilustre dos
sixties é homenageado em "Break it Up", uma canção
sobre Jim Morrison repleta de simbolismos. A letra expressa a manifestação
alegórica de um sonho em que ela se depara com Morrison aprisionado
sobre um balcão de mármore. Ele possuía asas de pedra
e tentava se libertar, mas suas asas o impediam. A narrativa é contada
da perspectiva de uma criança que grita até que ele consegue
se livrar de suas asas. Patti declarou que sua aptidão a devaneios
e alucinações seja uma reminiscência da febre escarlate
que a acometeu na infância, a mesma doença que seu discípulo
Michael Stipe contraiu quando criança.
Inspirada em Book of Dreams, livro
de Peter Reich, "Birdland" é um devaneio intertextual em que Patti
narra um sonho infantil de Peter no qual é capturado por um OVNI,
logo após a morte de seu pai, o psicólogo não-ortodoxo
Wilhelm Reich. A canção remete ao funeral de Wilhelm e uma
interpretação repleta de imaginação da experiência
do jovem Peter em que imagina seu pai retornando em um disco-voador, que
se assemelhavam às limusines pretas do cortejo fúnebre.
Mas Horses não é caracterizado
apenas pelo drama. "Redondo Beach" narra de uma forma irônica a história
de uma jovem lésbica que se mata ao atirar-se no mar revolto. Patti
ironiza a dramaticidade da letra ao cantá-la sobre um leve sotaque
reggae, quase que como uma paródia perversa aos números músico-teatrais
típicos dos anos 50, que ela odiava. Apesar da ironia, duas canções
do disco homenageiam mulheres: a já citada "Gloria" e "Kimberly",
composta para a irmã da cantora, repleta de referências a
seu nascimento. "Gloria" é a canção mais emblemática
da primeira fase do Patti Smith Group, época em que a cantora entoava
versos como "Jesus morreu pelos pecados de alguém, e não
pelos meus /... / As pessoas falam para eu ter cuidado, mas eu não
estou nem aí", uma idiossincrasia dirigida de forma curta e grossa
aos dogmas cristãos. Mas o rock'n'roll básico também
vem à tona em "Free Money", a história de uma garota pobre
que sonha ter encontrado um bilhete de loteria premiado.
A dramaticidade reaparece em "Land",
uma faixa de quase dez minutos com a narrativa ambígua de um garoto
chamado Johnny, que é violado por outro no corredor da escola. Combinando
a batida roqueira com overdubs vocais, o ápice da canção
se dá no momento em que o garoto se sente rodeado por cavalos (uma
alusão ao nome do álbum que antecede uma releitura curta-e-grossa
de "Land of 1.000 Dances"). Repleta de imagens ligadas a sexo, a canção
se encerra com um frágil sussurro. Fã de Doors, Patti deu
um passo à frente na fusão entre desvarios poéticos
e o rock com facetas dionísicas implementados pelo quarteto de Los
Angeles.
A capa de Horses é uma das
mais célebres da história do rock'n'roll e reflete todo o
planejamento da cantora: uma imagem que mistura Rimbaud, Baudelaire, Frank
Sinatra e o cineasta Jean Luc-Godard, criando uma persona situada entre
o simbolismo francês e a nouvelle vague de Las Vegas. Durante um
longo período, ela explicou arduamente ao fotógrafo Robert
Mapplethorpe o que pensava para a capa do disco, que anos depois recebeu
até um artigo entusiasmado da feminista "linha-dura" Camille Paglia.
PARTE
2 - Patti Smith - Elegia ao Punk como Modo de Vida |