Doce Miséria - A suavização
de Nick Cave
por
Nick Hornby
Texto
originamente publicado na edição
de 28 de maio de 2001 da revista New Yorker
Traduzido
por Lara André
laraandre@hotmail.com
A
absoluta onipresença da música pop apresenta um
tremendo desafio para os fãs mais velhos. Quando eu tinha
15 anos, era satisfatoriamente difícil ouvir a música
que eu adorava. Ela não era tocada em supermercados ou
em aviões; não era detonada nos carros que passavam
na rua; não havia um canal de TV dedicado a ela. Na Grã-Bretanha,
naqueles dias de pré-divulgação, o único
programa da BBC voltado ao rock era tão pobre em recursos
visuais que era preciso se contentar com faixas musicais tocando
em cima de clássicos do desenho animado. Para ouvir Led
Zeppelin em 1972 eu tinha que estar no meu quarto, e eu gostava
daquilo. Se você tem 15 anos hoje, como é ser perseguido
a cada passo pela música de que você gosta? Eu
não tenho as estatísticas em mãos, mas
parece improvável que Yesterday tenha recebido
tanta exposição durante os seus cinco primeiros
anos de vida como o último single do Destiny’s Child
teve nas últimas semanas.
Como,
então, dada a transmutação da música
pop em uma espécie de poluição sonora,
é possível para um artista criar algo que soe
misteriosamente convincente? O álbum de Nick Cave
de 1997, o austero, porém assustador The Boatman's
Call, começava com Cave cantando, em um tom lúgubre
e irremediavelmente baixo, "I don't believe in an interventionist
God" ("Eu não acredito em um Deus intervencionista").
No mundo da música contemporânea, há muito
pouco espaço para a hesitação teológica.
Ou Ele está ou não está. Era um primeiro
verso que conduzia a um pacote inteiro de mensagens. O adjetivo
polissilábico sugeria um certo grau de conhecimento literário.
(Cave tem um romance publicado, And the Ass Saw the Angel
– E o Asno viu o Anjo - na sua bagagem). O verso também
contava, em um ritmo funéreo e introvertido, que The
Boatman’s Call não era brincadeira de criança.
Se você estivesse se sentindo deprimido e derrotado, então
esse era o CD que você queria ouvir, a não ser,
claro, que você concorde que tais sentimentos são
mais bem expurgados com uma dose estimulante de Britney (*1).
Sobretudo, essas primeiras poucas barreiras sugeriam que aqui
estava um artista que iria habitar seu próprio mundo
relativamente sem ser perturbado. A mais lamentosa e misantrópica
canção em The Boatman’s Call intitulava-se
People Ain’t No Good (As Pessoas não Prestam):
você sabia que nunca ouviria isso enquanto experimentava
uma calça jeans ou devorava um Egg McMuffin (*2).
Os
discos de Cave têm sido sempre intensos, mas nem sempre
calmos. Seu primeiro grupo de sucesso, o Birthday Party, fazia
um barulho de inspiração punk e propositalmente
apocalíptico cujo principal objetivo, aparentemente,
era aterrorizar a platéia para dominá-la. Quando
o Birthday Party se separou, em 1983, Cave (um australiano,
que com sua palidez em contraste chocante com o cabelo escuro,
pode ter ajudado Tim Burton
a imaginar Edward Mãos de Tesoura) formou seu
grupo atual, o Bad Seeds, cujas gravações
começaram menos irritantes e assustadoras, sem sucumbir
à doçura de boa parte do rock adulto. É
como se o cantor tivesse tido sucesso em converter uma energia
qualquer previamente manifestada como raiva em algo não
menos feroz, porém muito mais sedutor.
O novo CD de Cave, No More Shall We Part, é,
trocando em miúdos, tão transcendentalmente bonito
que pode ser perdoado pelo pequeno espasmo de impaciência:
se Cave tinha tudo isso dentro dele, por que desperdiçou
todos aqueles anos berrando para as pessoas? (Uma resposta possível
pode envolver drogas; Cave, em um estágio inicial de
sua carreira, teve um certo hábito bastante divulgado,
e um ou dois problemas legais). A abertura da primeira canção
do álbum, a petulantemente triste As I Sat Sadly by
Her Side, soa, com sua delicada percussão e seu arranjo
sinistro, como uma resposta amedrontada ao clássico bem
sucedido de Van Morrison, Astral Weeks,
e no pop branco você não consegue nada muito melhor
do que isso.
Infelizmente,
o resto da canção absolutamente não sobrevive
à promessa da introdução. Com mais de seis
minutos de duração, As I Sat Sadly by Her Side
pode não ser a mais longa canção pop já
escrita, mas quase não há a sensação
de que somos levados em uma jornada musical. Cave apenas progride
obedientemente em um verso atrás do outro – a música
não tem refrão – como se ele estivesse comendo
um prato cheio de comida boa, porém simples, na casa
dos avós. Como resultado, a atenção é
voltada para a letra, que parece mais adequada à cena
européia do século XIX do que a um CD do século
XXI. Tente cantar "You are not a home for the hearts of your
brothers / And God does not care for your benevolence / Anymore
than he cares for the lack of it in others" ("Você não
é um lar para os corações de seus irmãos
/ E Deus não se importa com sua benevolência /
Não mais do que Ele se importa com a falta disso nos
outros"). A punhalada de Cave em uma espécie de eternidade
sobrenatural pode freqüentemente resultar em pesados trava-línguas.
Uma canção chamada Fifteen Feet of Pure White
Snow menciona Matthew, Mark, Mary e Deus, de modo que quando
o narrador pede para alguém "put down that telephone"
("sufocar aquele telefone") isso soa comicamente anacrônico;
há muito poucos roqueiros contemporâneos que não
conseguem arranjar uma referência a uma chamada de telefone,
mas de algum modo Cave tem conseguido se colocar nesse grupo
seleto.
A
canção-título do álbum, no entanto,
And No More Shall We Part (E Nós Nunca Mais
Vamos Nos Separar), contém um clímax tão
notável que a mão pesada presente no resto do
álbum pode ser entendida como um processo arriscado de
busca de precisão. A canção começa
como um hino resignado ao comprometimento romântico (Cave,
o mais ingênuo dos compositores confessionais, casou-se
recentemente, apesar de que é certo afirmar que você
já terá ouvido músicas mais felizes cantadas
por um recém-casado). Então, subitamente, tanto
a linha melódica como a letra mudam, e o título
agora refere-se a Deus e não ao ser amado. "Lord, stay
by me / Don't go down / I never was free / What are you
talking about?" ("Deus, fique comigo / Não se vá
/ Eu nunca fui livre / Do que você está falando?").
É um momento emocionante, engrandecido apenas porque,
até esse ponto, Cave tem guardada a arma secreta do álbum:
as divinas vozes de suas cantoras de apoio, Kate e Anna McGarrigle.
Até o mais imaginativo anfitrião de um jantar
festivo não teria feito as etéreas McGarrigles
se sentar em quaisquer lados do infernal ex-cantor do Birthday
Party; a música delas tem uma pureza que Cave, em determinado
ponto de sua carreira, teria considerado risivelmente afetada.
Na verdade, a combinação acaba por fazer todo
sentido. O segundo álbum das McGarrigles, Dancer
with Bruised Knees (Bailarina com Joelhos Feridos),
é embalado com uma espécie de morbidez que Cave
entenderia; de qualquer forma, as McGarrigles têm sempre
soado como se elas fossem se sentir melhor em uma época
mais antiga, menos confortável. Ao final de Hallelujah,
a terceira participação no novo álbum de
Cave, as irmãs cantam, a cappella, "The tears are welling
in my eyes again / I need twenty big buckets to catch them in"
("As lágrimas estão brotando em meus olhos novamente
/ Eu preciso de vinte baldes grandes para armazená-las"),
e você não pode jamais imaginar que elas tenham
sido realmente solicitadas a fazer um trabalho tão alegremente
miserável como esse.
Em
The Secret Life of the Love Song, um discurso contemplativo
que serve de prefácio para seu novo livro, Complete
Lyrics, Cave descreve suas canções de amor
como "tristes, violentas, crianças de olhos escuros"
e prossegue comparando-as a "linhas da vida arremessadas nas
galáxias por um homem que se afoga". A última
contribuição a esse tuberculoso trabalho é
Love Letter, uma canção tão rica
e memorável como qualquer coisa que Cave já produziu.
A arrogância – o narrador diz algo de que ele se arrepende
e envia uma carta para sua amante na esperança de reparar
o erro – é um pop banal, e apesar das falácias
patéticas à la Hardy (*3) (ventos maldosos, céus
pesados de chuva) a letra fracamente sustenta o peso do desespero
existencial de Cave. A música é lenta, angustiante,
dolorosa, com as McGarrigles novamente entrando no finzinho
da música para acrescentar uma sombra de tristeza de
partir o coração. Em The Secret Life of the
Love Song, Cave refere-se "ao que a Língua Portuguesa
chama de 'saudade', o que pode ser traduzido como uma falta
inexplicável, uma nostalgia indescritível e enigmática
da alma", mas para começar ele não pode contar
a nós ou aos outros músicos, como você alcança
a saudade.
Nada
mais em No More Shall We Part é tão
tocante como Love Letter, em parte porque a maior parcela
das outras canções funciona teatralmente ao invés
de musicalmente: é uma experiência vagar por entre
o terreno destruído de Hallelujah, mas isso não
vai se adequar muito confortavelmente no dia normal que você
reserva para ouvir rock. God Is in the House, uma sátira
interiorana que Randy Newman (*4) já pode ter sido pego
assobiando, é o mais perto que Cave chega do meramente
engraçado, mas essa música ainda contém
mais selvageria do que seu típico humor. "Homos roaming
the streets in packs / Queer bashers with tyre-jacks / Lesbian
counter-attacks" ("Seres humanos perambulando pelas ruas aos
bandos / Ameaçadores de gays com macacos hidráulicos
/ Contra-ataques lésbicos") canta o narrador de Cave,
burguês apavorado e temeroso de Deus - em outras palavras,
mais uma música que você não vai querer
colocar para repetir no CD player.
No
More Shall We Part, assim como muito do trabalho de Nick
Cave, é algumas vezes tão relutante em agradar
e tão exigente de sua atenção quanto uma
criança pequena. E isso ainda pode explicar porque é
um alívio entrar em seu mundo asfixiante, ocasionalmente
exausto. Em uma época em que até mesmo o mais
furioso ou intimidador hip-hop ou heavy metal parecem desenhados
para nos vender algo – um filme, uma partida de luta livre ou
um estilo de vida – a música de Cave não parece
remotamente interessada em vender nada. Isto é, é
uma música feita por um artista, nos moldes antigos,
no senso do século XX. Não vai fazer Cave ganhar
um monte de dinheiro, mas é a música dele, e nossa,
se nós quisermos que ela o seja, e pela qual nós
devemos ser gratos.
Nick
Hornby é autor dos livros Febre da Bola, Alta Fidelidade
e Um Grande Garoto.
Tradução
de Lara André, editora do site Quadradinho
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*1 – gíria australiana:
cerveja(s).
*2 – famoso sanduíche
do McDonald’s desenvolvido em 1971 para ser consumido idealmente
no café da manhã.
*3 – Thomas Hardy (1840-1928),
poeta e romancista britânico do Naturalismo, autor de
livros como “Tess of the D'Urbervilles” (1891), que deu origem
ao filme “Tess” em 1979.
*4 – Randy Newman – aclamado
compositor americano de estilo crítico e irônico,
mais conhecido por compor trilhas sonoras de filmes como Awakenings,
Forrest Gump, Toy Story, A Bug’s Life, Pleasentville entre outros,
tendo sido indicado a 13 Oscar.
Leia,
ainda:
Faixa
a Faixa de No More Shall We Part, por Leonardo Vinhas
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