Eu
tô velho. Bati nos 31 anos, jogo só meio tempo
de um rachão de futebol e consigo pogar apenas umas cinco
músicas (para ficar sem ar o resto do show, agarrado
a uma latinha de cerveja que se revezará com o dobro
do tempo). Mas, mesmo assim, vivendo nesse país lindo
e miserável todo esse tempo, ainda não entendi
como certas coisas acontecem. Não me incomodo apenas
com a divisão de renda errada. Me incomodo com quem ganha
muito e continua só querendo ganhar mais, ao invés
de ajudar o próximo que, convenhamos, no Brasil está
cada vez mais próximo.
Em música, deixei de analisar interesses de rádios
e gravadoras. A massificação que privilegia um
grupo minoritário de pessoas na mídia acaba deixando
outras no limbo. Não que eu vá querer ver todo
mundo que eu admiro famoso, mas que eles têm direito de
uma fatia desse bolo, ah, isso eles têm. Mas esse descaso
é latente. E isso soa injusto, incomoda a razão.
Mas tudo volta ao lugar quando vemos pares (pessoas que, como
a gente, estão fazendo um trabalho honesto) reconhecidos.
O Mundo Livre S/A é, desde o começo dos 90, uma
das principais bandas da música popular brasileira (rock,
forrô, caetanices e etc... são tudo a mesma coisa,
música brasileira, meus amigos). O S&Y renasceu numa
tarde do final de 1997 em que entrei numa megastore e comprei
por miseros R$ 6,90 um dos melhores discos nacionais de todos
os tempos: Carnaval na Obra. Foi ouvir e querer ter acesso
a algum veículo de comunicação para dizer
a todos o quão maravilhoso é esse álbum.
A saída? "faça você mesmo!". Fiz um zine
em papel e tasquei como melhor de 1997 o referido. E hoje aqui
estamos nós. Eu, um velho de alma moleque (será
que eu vou ter 13 anos para sempre?) carregando um sonho nos
ombros há quase seis anos e o Mundo Livre, uma banda
sensacional fazendo música que importa. Os dois shows
que seguem abaixo foram registrados em épocas diferentes.
O
show do KVA (uma casa de shows em SP especializada em forrô)
aconteceu há menos de 72 horas. Meu corpo está
moído, mas minha alma está lavada. O outro foi
há quase dois anos atrás, mas não tinha
registro aqui no site porque na época ainda não
havia site e quem acolheu essa resenha foram a batalhadora revista
Rock Press e o grande Cardosonline. Aqui, os dois textos se
juntam para transformar-se em um recado passional:
Salve
Zero Quatro, Salve
Salve a música
São
Paulo
23/06/02
KVA
"A
gente não queria vir. Quando nos convidaram para tocar
aqui, em pleno domingo a noite, nós, com oito anos de
experiência, dissemos que não ia rolar. Mas a produção
insistiu e que bom que viemos. Está sendo a melhor noite
do Mundo Livre S/A em São Paulo desde que começamos",
dizia ao microfone um Fred Zero Quatro visivelmente emocionado
com a acolhida que o público predominantemente adolescente
deu à banda na fria véspera de uma segunda-feira
de trabalho.
Nem
mesmo o som da casa, péssimo, conseguiu abafar o tesão
dos pernambucanos. Nem o tesão do público. Se
o som estava ruim, o clima estava sensacional, com rodinhas
de samba de um lado, sessão de pogo do outro e muita
gente sem voz, gritando as letras políticas de 04 que
deviam, mais do que nunca, freqüentar as combalidas FMs
movidas a jabá.
Foram
vinte e uma canções no set list. Da abertura com
Girando em Torno do Sol (do cru e punk Guentando a
ôia) até a derradeira Super Homem Plus
(do último álbum, Por Pouco), muitos momentos
beirando o antológico marcaram a apresentação.
Em Destruindo a Camada de Ozônio, Romário
foi trocado por Ronaldo e Rivaldo (se Felipão ouvisse
ficaria feliz). Quem
Tem Bit Tem Tudo foi dedicada a uma rapaz com uma camiseta
do exército zapatista, logo atrás de mim.
Porém, o ponto alto dos vários discursos emocionados
foi quando, ao anunciar uma das três novas canções
que foram testadas/apresentadas ao vivo, Zero Quatro disse que
o novo álbum estava em pré-produção,
mas não tinha previsão de lançamento já
que a banda está sem gravadora, pra concluir: "Não
somos nós que estamos sem gravadora. São as gravadoras
que estão sem o Mundo Livre. São as gravadoras
que estão sem vocês". Certeiro.
O
som ruim da casa prejudicou pérolas como O Mistério
do Samba (desnuda sem os sopros), a sambalada Meu Esquema
(com o baixo acima dos outros instrumentos, atravessando) e
Bolo de Ameixa (de arranjo embolado). Porém, a
nudez que prejudicou algumas canções simplesmente
deu nova cara para aquela que é uma das grandes canções
do Mundo Livre: Compromisso de Morte. Se nas mãos
de Carlos Eduardo Miranda, em Carnaval na Obra, ela soava
co-irmã do Radiohead de Ok Computer (os álbuns
foram gravados simultaneamente), ao vivo nesta noite, as guitarras
esparsas e principalmente o baixo a frente levaram a canção
ao território berlinense de Bowie, encaixando perfeitamente
com o futurismo trágico da letra.
As
três canções novas mostram que a banda não
perdeu o gosto pelo ataque. Azia Tropical (ou Azia
Amazônica, o título ainda é provisório)
nasceu após uma sessão do filme Efeito Colateral
e começa com o verso "Schwarzenegger na Colômbia,
entretenimento máximo". A melodia segue cadenciada até
explodir em barulho. Caiu a Ficha não é
tão inédita assim. Teve mais de 54 mil downloads
quando liberada em um site, em 11 de outubro passado. Em clima
bossanôia de uma beleza/delicadeza total, Zero Quatro
convida todo mundo para dançar sobre os escombros, mas
com atenção.
Acaba
o show e um barulho ensurdecedor toma conta do ambiente. É
o público clamando pela volta do quinteto. E eles voltam,
para um segundo bis, não programado, agradecendo muito
para encerrar o show com Super Homem Plus. Se você
já foi em algum show em que sentiu-se parte do evento,
vai saber exatamente a emoção que foi ver o Mundo
Livre tocando ao vivo em São Paulo num domingo frio,
mas para um público quente, muito quemte.
Repertório
*Livre Iniciativa e A Bola do Jogo de Samba
Esquema Noise;
*Destruindo a Camada de Ozônio, Free World,
Girando em Torno do Sol, e Seu Suor é o Melhor
de Você de Guentando a Ôia;
*Alice Wilhians, Édipo, O Homem Que Virou Veículo,
Bolo de Ameixa, Compromisso de Morte e Quem
Tem Bit Tem Tudo do Carnaval na Obra;
*O Mistério do Samba, Concorra a um Carro, Por Pouco,
Mexe Mexe, Super Homem Plus, Meu Esquema, Melo das Musas
e Treme Treme do último álbum, Por
Pouco;
* Inéditas - Azia Amazônica, Inocências
e Caiu a Ficha.
São
Paulo
27/08/00
Sesc Pompéia
As
coisas andam estranhas para o rock nacional e não é
de hoje. Depois da geração oitenta, poucos nomes
se destacaram, e os que se destacaram não refrescam muito.
Num mundo povoado por Jota Quests e Sandys & Juniors é
difícil ter esperança. Mas sempre há uma
luz. E foi essa luz que eu vi, ao vivo, no início da
noite de domingo, no Sesc Pompéia, em São Paulo.
Primeiro
o susto. Na bilheteria um cara pergunta: "Será que tem
convite pra hoje? Ontem esgotou!". Mas a garota do guichê
informa que o Sesc decidiu abrir o outro lado do palco, por
culpa da procura, o que foi uma deliciosa constatação
de que a banda tem um público fiel.
No
palco, a versão brasileira do The Clash. Sim, é
isso que o Mundo Livre S/A é: o nosso The Clash. Lógico
que não tem nada a ver com som e sim com atitude. Tem
a ver com criar canções matadoras recheadas de
textos ácidos, e, principalmente, brasileiros. Eu nunca
pensei que fosse me culpar por não saber sambar.
O
show divulga o novo (e mais pop) álbum deles, Por
Pouco. Abre com a genial Concorra a um Carro que
vai direto no peito do freguês: "Lidere ou suma, vença
ou morra". Depois começa o passeio pelo repertório
magistral da banda. Teve muita coisa, mas também faltou
muita coisa. É o tipo de show que a banda devia tocar
tudo mas, como não dá, fica devendo umas e outras.
Os
grandes momentos foram vários, mas, a se destacar, temos
a genial e descarada O Mistério do Samba, que
abre o disco novo e que contou ao vivo com a participação
do trio de metais do Funk Como Le Gusta (que também participa
do álbum). Matadora. É difícil explicar
como é ouvir uma canção pela primeira vez
e se arrepiar. Um arraso. Outra para receber o carimbo de matadora
é Alice Wilhiams, faixa que abre o clássico
Carnaval na Obra. Uma aula de como fazer barulho com
cavaquinho. E tem banda que com três guitarras não
consegue isso. Outro destaque é a nova Meu Esquema,
sambalada de primeira, com letra bacana bacana ("Ela é
meu treino de futebol, ela é meu concerto de rock and
roll").
E
assim fomos indo, passeando aqui e ali por pequenas pérolas
do rock nacional. Passeando por sambas envenenados por guitarras
e rocks levados com cavaquinho. E ao fim do show, saindo do
teatro, uma chuva torrencial castigava São Paulo, lavava
a alma. O Mundo Livre S/A é, hoje, a última banda
que importa nesse cenário nefasto que se tornou o rock
brasileiro. Pobre de nós que ficamos entregue a programação
idiota das rádios, a programas sem limite de besteirol
nas tvs e a políticos bandidos no horário eleitoral.
Feliz de quem, como eu, esteve no sábado e no domingo
no Sesc Pompéia, em São Paulo. A luta continua.
E, espero, cedo ou tarde você vai se entregar ao mundo
livre...
Repertório
*Livre Iniciativa e A Bola do Jogo de Samba
Esquema Noise;
*Destruindo a Camada de Ozônio, Free World cantada
em coro e Seu Suor é o Melhor de Você de
Guentando a Ôia;
*Alice Wilhians, Édipo, o Homem Que Virou Veículo
e Quem Tem Bit Tem Tudo do Carnaval na Obra;
*O Mistério do Samba, Concorra a Um Carro, Por Pouco,
Mexe Mexe, Super Homem Plus, Meu Esquema, Melo das Musas
e Treme Treme do álbum, Por Pouco.
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