O Jazz Punk, Véio!
Medeski, Martin & Wood – Entrevista com Billy Martin

por Diego Fernandes
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26/07/2002

Eles são o que há.

Não quero que isso soe muito exagerado aos leitores, mas, bom, dane-se: em termos de jazz, eles são a única banda que importa atualmente. E, a bem da verdade, este que vos escreve os considera também uma das coisas mais rock'n'roll da atualidade. Como o crítico Rob Mitchum do site Pitchfork sabiamente observou, por mais controverso que isso soe, o jazz é um gênero musical estagnado e morto, vivendo essencialmente através de aparelhos (re-re-reedições de clássicos), um estilo trancafiado em um gueto purista medonhamente conservador que conta com um número de artistas contemporâneos expressivos que não chega a encher os dedos de duas mãos (os amantes de música pop mais atentos já devem ter notado que o jazz escorreu quase todo para o rock, ainda que diluído e por vezes descaracterizado).

Se há luz na escuridão, esta luz atende pelo extenso nome Medeski, Martin & Wood. O trio é uma das últimas entidades musicais que se propõe a manter viva a chama da música improvisacional, empolgante, emocional, e – principalmente - inovadora que o jazz veio a representar com o surgimento de nomes como Miles Davis, Charlie Parker e Chet Baker. Caso você discorde dessa afirmação e concorda com a máxima headbanger de que "jazz é coisa de velho", pare de ler esse texto, agora, e volte para seus CDs do Nickelback. Já.

Formado por John Medeski (teclas em geral), Chris Wood (baixos acústico e elétrico) e Billy Martin (bateria e percussão), o grupo, que adota a clássica e tenaz formação "piano trio" (baixo-bateria-piano), chuta sempre em direções inesperadas. Seja ao incorporar batidas rap, seja apostando na interação com DJs, seja em seu descarado flerte com o pós-rock, a banda até agora acertou a mão em tudo que fez.

A exemplo de Miles Davis, adotam uma postura iconoclasta e parecem estar andando para o que críticos e especuladores possam vir a achar do gerenciamento de sua carreira - participaram de um disco com Iggy Pop (o subestimado Avenue B), tendo o grande Iguana chegado a chamar Medeski de "mestre do órgão Hammond". Por outro lado, gravaram um disco junto com John Scofield (o álbum A Go-Go), considerado o mais expressivo guitarrista de jazz da atualidade. Como elogio pouco é bobagem, o estilo de Chris Wood ao baixo chegou a ser comparado ao do mestre Charles Mingus.

Tendo recentemente lançado o belíssimo álbum Uninvisible (lá fora apenas), e com dois de seus álbuns mais aclamados (It’s A Jungle In Here e Shack-Man, ambos do período em que a banda lançava pela Ryko/Gramavision) sendo agora lançados no Brasil pela Trama, o baterista Billy Martin concedeu entrevista por e-mail ao Scream & Yell. Além de baterista, illy B, como gosta de assinar, é um pintor diletante, tendo feito várias ilustrações primitivistas para as capas e encartes dos CDs da banda. illy B está também lançando trabalho solo por seu próprio selo, Amulet Records ("A arte da percussão, vanguarda e além"), intitulado Drop The Needle, onde experimenta com bases hip-hop e remixes breakbeat. Atencioso, ainda que oscilando entre o simpático e o lacônico, illy B deu seu parecer sobre pós-rock, MPB e sobre as possíveis causas da popularidade da banda. Confira.

Em primeiro lugar: a banda continua instalada em Nova York?
Sim.

Como a confusão de 11 de setembro afetou vocês?
Foi chocante, e tínhamos uma turnê agendada pelos Estados Unidos para o mês seguinte. Continuamos a turnê e a finalizamos em Nova York no feriado de Halloween (31 de outubro) com um grande show para uma casa lotada de espírito muito positivo. Nós sentimos que nosso trabalho é manter o espírito musical e o espírito das pessoas vivos.

O MM&W tocou no Brasil no Free Jazz Festival de 99, batizou uma das músicas de seu primeiro álbum [Notes From The Underground, inédito no Brasil] de Hermeto's Daydream, e The Dropper [penútlimo álbum da banda, também inédito no Brasil] mostrou alguns elementos percussivos brasileiros como cuíca, berimbau e surdo, além de uma música chamada Partido Alto. Qual seu aspecto predileto a respeito da música brasileira? Quem são seus favoritos na música brasileira, aqueles que mais te influenciaram?
O uso de percussão de um modo completamente musical. A influência do ritmo africano misturada com harmonia ocidental e oriental. Batucada grooves like no other music that I know. Os músicos que mais me influênciaram foram Hermeto, Nenê, Naná Vasconcelos, Robertinho Silva, Djalma Correa, Gilberto Gil, Jobim, Elis Regina, a escola de samba Padre Miguel, Egberto Gismonti...

Billy, já ouviu o disco acústico que Jorge Ben Jor gravou via MTV? Bacaninha.
Não, adoraria ouvir isso.

Ok, eu te mando esse disco e tu me manda os últimos do MM&W. Topa?
Trato feito.

Alguns críticos acharam que The Dropper acrescentou um pouco da estética pós-rock ao som usualmente cheio de groove do Medeski, Martin & Wood. Você concorda?
Sim.

Tendo em vista que o pós-rock é genericamente descrito como uma colisão do jazz com o punk, podemos dizer que o MM&W é a banda de jazz mais punk da atualidade? :)
Às vezes.

O que acha de artistas como Tortoise e Mogwai, que utilizam dinâmicas jazzísticas em músicas de teor rock?
Eu gosto um bocado de Tortoise.

Page Hamilton (do finado Helmet), Lee Ranaldo e Thurston Moore (do Sonic Youth) foram discípulos de Glenn Branca [cabeção do jazz vanguardista nova-iorquino]. O que você acha da abordagem que essas bandas têm (ou tinham) do jazz?
Não sei, esse espírito de criar e usar o som criando novos meios de compor e se apresentar parece ser típico da região central de Nova York, e outras cidades e culturas vêm fazendo isso há muito tempo.

O que eu vejo é que um bocado de gente que normalmente só ouvia rock está se interessando pelo som do MM&W e por jazz, de forma geral. Algumas pessoas acreditam que o mérito disso reside nos "álbuns gêmeos" lançados pelos Beastie Boys na década passada, Check Your Head e Ill Communication, que introduziram à audiência rock nomes até então alienígenas como Jimmy Smith e Meters. Por outro lado, algumas pessoas dizem que isso é um reflexo da renovação do interesse das pessoas pelas chamadas "jam bands" representadas atualmente pelas bandas de stoner rock. Qual você acha que é o verdadeiro motivo para essas pessoas ficarem ligadas no som do MM&W?
Há um vácuo no que diz respeito a uma abordagem sincera da música que seja realmente emocional, funky e de vanguarda. Então estamos preenchendo esse vazio de um modo bastante inesperado.

O MM&W causa arrepios em críticos de jazz puristas, principalmente devido às técnicas pouco usuais que vocês utilizaram em seus últimos discos, como o uso de overdubs e a interação com DJs. Irrita a banda o fato de não ser considerada "suficientemente jazz" por esses críticos?
Não, na verdade não. O que é frustrante é ver críticos discutindo sua música sem realmente entender o artista ou mesmo sem escutar a banda ao vivo...

Você próprio acha que o MM&W não é estritamente jazz? Essa classificação que alguns fazem do som do MM&W como "acid jazz orgânico" chega a incomodar?
Às vezes. Para mim, acid jazz é leve, iluminado. Nossa música vai mais fundo que isso. Não somos estritamente jazz.

Algumas pessoas tendem a pesquisar artistas influenciais do jazz após ouvir o som do MM&W e toda a música que se vale de elementos jazzísticos em voga hoje em dia. Os artistas que recomendaria a essas pessoas são...
[John] Coltrane, [Thelonius] Monk, Miles [Davis] , [Charles] Mingus, [Duke] Ellington, [Louis] Armstrong, [Sidney] Bechet, Sun Ra, Albert Ayler, Ornette Coleman...

Falando sobre Uninvisible: quando escutei o disco pela primeira vez, senti uma forte presença de efeitos dub, principalmente na faixa título, efeitos de eco malucos mixados com o som tipicamente balançante de vocês, o que soou bem legal. Além disso, senti um clima sinistro e inquietante por toda parte. Concorda? O que, exatamente, o MM&W quer colocar entre as orelhas do ouvinte?
Trevas e luz. Funky e esquisito e belo.

Aqui no Brasil, as pessoas não têm acesso à maioria de seus álbuns em edição nacional, e importados são obscenamente caros. Vê algum problema em baixarem suas músicas da internet?
Se elas não podem comprar nas lojas, elas baixam em MP3. Mas por quê isso acontece? Temos que dar um toque pra Blue Note Records [tradicional gravadora de jazz americana, atual lar da banda].

Sobre It’s A jungle In Here e Shack-Man, os álbuns que estão sendo lançados no Brasil através da Trama: como você descreveria o feeling de cada um? O que esses álbuns representam?

It's A jungle In Here foi o primeiro a ser produzido de maneira mais independente, logo após Notes From The Underground. Shack-Man foi um dos melhores e mais desafiadores discos que já produzimos, completamente independentes da gravadora, exceto pelo fato de que nos deram um pequeno orçamento. Decidimos entrar fundo na selva do Hawaii, só nos três e o engenheiro/produtor David Baker.

Qual seu disco favorito do MM&W? Qual o propósito por trás dos vários trabalhos solo que vocês três mantêm?
Acho que Shack-Man é um clássico. Eu realmente adoro The Dropper, também. Nós três tentamos fazer coisas fora da banda para manter as coisas interessantes sempre que voltamos a tocar juntos. Trazemos a energia de fora para dentro da banda.

O que é que você curte mais: pintar ou espancar sua bateria?
Adoro as duas coisas, mas venho tocando bateria há muito mais tempo e com muito mais afinco.

Qual é que é a desse vídeo da banda produzido pela Industrial Light & Magic de George Lucas?
Um belo vídeo. É um roteiro bem simples, sobre a gente saindo de casa e indo para nosso estúdio Shacklyn no Brooklin, tocando enquanto caminhamos pela rua, e termina com a gente tocando num show ao vivo no clube Providence, de Rhode Island. Mas na verdade filmaram a gente entrando no Tonic, em Nova York.

Quem são os artistas no jazz moderno que você acredita que merecem ser ouvidos?
Sun Ra, Other Dimensions In Music, Masada, Marc Ribot, The Lounge Lizards.

Qual é exatamente o objetivo principal do MM&W?
Fazer música juntos e continuar evoluindo.

E, finalmente: quem se sai melhor, os americanos no jazz ou os brasileiros no trato com a pelota?
Não vejo diferença!



It’s A Jungle In Here (1993) – Trama

Em seus primeiros anos de carreira, a banda viveu basicamente em um motor-home, escursionando e tentando estabelecer um vínculo com sua audiência. Neste, que é seu segundo disco (perguntem ao pessoal da gravadora de João Marcelo Bôscoli por que essa bizarra seleção aleatória), a banda esculpiu uma perfeita carta de intenções, contando com participações especiais de feras do quilate do guitarrista Marc Ribot e do saxofonista Jay Rodrigues. Disjunções rítmicas, batidas a um só tempo descompassadas e harmoniosas, experimentalismo muito bem dosado, tudo convivendo em insuspeitado equilíbrio. Medeski se reveza o tempo todo entre seu piano Wurlitzer tradicional e os timbres mais do que especiais do órgão Hammond, enquanto Wood desfere acordes sóbrios e perfeitamente funcionais nas quatro cordas e Martin chuta tudo pro alto com uma poliritmia dos diabos. Aqui tem de tudo: a escuridão do jazz cerebral ("Beeah"), decaídas orquestrais ("Where’s Sly?"), quebradeira (a empolgante "Shuck It Up"), releitura de um tema de Coltrane ("Syeeda’s Song Flute") e, pérola das pérolas, um medley que consegue unir de maneira perfeita Thelonious Monk ("Bemsha Swing") com Bob Marley(!) ("Lively Up Yourself").


Shack-Man (1996) – Trama

Isolados no meio da selva havaiana (no rancho The Shack), e "com uma pequena ajuda do sol", segundo a própria banda, o trio cometeu outro álbum inspirado – desta feita, levemente mais orientado ao groove. O órgão Hammond de Medeski adquire feições funkeadas que tornam os timbres ainda mais redondos, de acento quase soul, e Martin mostra-se interessado em experimentar cada vez mais, esmurrando seu kit em cadências multidirecionais. Contém a reinterpretação de um tema tradicional da música americana ("Is There Anybody Here That Love My Jesus"), clima noir carregadíssimo (na bestificante "Dracula") e groove, muito groove (exemplificado à perfeição nos tantalizantes loops de "Bubblehouse"). A energia bruta manipulada e a completa falta de afeição a clichês manipulada pela banda com absurda precisão em Shack-Man foi suficiente para projetá-la definitivamente -- inclusive no meio rock’n’roll, para felicidade dos mais antenados.


Uninvisible (2002) – Blue Note (imp)

Vamos encarar isso: o rock precisa ser salvo. Do quê, exatamente? Oras, me parece óbvio: de se tornar uma instituição. Caso você não esteja lembrando, instituição é uma coisa inatacável, cuja estrutura e regras morosas podem matar o indivíduo no cansaço (e em geral matam mesmo). Se é essa a perspectiva para o maldito futuro do rock, se tornar mais ou menos o que o Oasis é hoje, bom, me mostrem onde EXATAMENTE fica a cabeça que eu mesmo atiro, no meio dos olhos, depois ajudo a enterrar. O verdadeiro rock não compactua com convenções sociais -- o que não quer dizer que o rock não vista sapatos e use gel de vez em quando, assim, quando dá na telha. Rock não significa três acordes e cabelo despenteado – não SOMENTE. Rock é estilo de vida, e sua capacidade de surpreender e levantar o dedo médio para tudo que não importa e faz uso de mediações escusas é o que o mantém vivo. Ou deveria. Supõe-se que a trilha sonora apropriada para essa insurreição pessoal deveria ser algo que dispusesse de vigor, criatividade e capacidade de alterar seu estado de espírito, certo? Bom, então permitam-me dizer que MM&W é rock. Tem que ser. Sem meias palavras, Uninvisible é incrível -- reitera a perigosa afirmação de que, se um artista é realmente bom, seu último trabalho tem de ser o melhor. A faixa-título já entra matando. É difícil resistir. O clima é nublado, fantasmas circundam -- velhos músicos negros desencarnados arrastando correntes ao redor. O que vem sendo mostrado por um punhado de artistas ligados à vertente minimalista do pós-rock é que a sobrecarga e o conseqüente esvaziamento ligados à pós-modernidade por vezes são combatíveis com ausência de palavras, abstração e propósito concentrado. Jazz? Cabe dizer que o som do MM&W não é propriamente minimalista – em verdade, certas passagens são tão grandiloqüentes que te fazem se sentir um fdp malvado rodando a cidade num Mavericão. O range de emoções que o trio percorre sem o uso de palvras (ok, há uma participação especial em estilo spoken word, uma exceção) é assombrosa. Salvar o rock não é o tipo de tarefa fácil, nem tampouco rende grandes louros (Cobain estourou os próprios miolos), mas é necessário, ciclicamente. Necessário que surjam artistas dispostos a comungar com seus instrumentos, entregar-se por completo, sangrar entre as notas. Também não é tarefa para uma única banda ou artista. Diversidade é um grande passo. Mas... jazz? Palavras de John Medeski: "Não quero entrar nessa discusão de ‘o que é jazz’ e ‘o que não é jazz’ -- porque a verdade é que eu estou cagando pra isso." Pensem nisso. Melhor: dêem uma ouvida nisso, como quem não quer nada. Se não gostar, deixe de lado, esqueça – fazer o quê? Mas, sim, jazz. Pode apostar.